Office in a Small City por Edward Hopper

Os amantes das irmãs Novaes

Recordações autônomas, indesejadas mas inevitáveis, como a gaveta do criado-mudo em que seu pai guardava o revólver.

Henry Asencio. Luz da tarde. 1972Entre eles, também havia o predileto. Elas o dividiam. Nunca houve questão quanto a isso. De resto, não era de se esperar que duas estudantes vindas da capital, hoje ocupando um discreto apartamento na parte alta do bairro universitário, tivessem quaisquer caprichos além dos que unem as garotas de sua idade. Os colegas acostumaram-se à rotina dos pretendentes frustrados, entre os rapazes da turma e de outros cursos, mas respeitavam a obsessão delas pelo estudo. As amigas receavam apresentá-las aos seus flertes ou namorados, mesmo constatando sempre que nenhum deles chegava sequer a aguçar-lhes o interesse. Berenice Rosário, professora de uma delas no terceiro ano, era a única que suspeitava de algo difuso e bem dissimulado entre as aparências, quase o pressentindo. E estava certa.

Alana e Alícia Novaes, tão parecidas como duas irmãs podem ser, tinham um mesmo estilo de beleza e porte quase altivo, atenuado pela descontração com que contagiavam as colegas. Admiradas por umas, invejadas por outras, não se alteravam por causarem reações, com isso apenas reafirmando o que quase igualmente se observava na mais jovem como na primeira, uma personalidade segura, em parte alicerçada na convicção natural da beleza física e alimentada por uma indisfarçável inteligência. Tanto que Alícia percebia claramente a argúcia com que Berenice Rosário esquadrinhava seus gestos na sala de aula, terminando por preferir ignorar as atenções dela, sabendo de antemão que nada além daquilo poderia alcançar.

Fora da escola, funcionavam como uma tediosa demarcação dos dias os telefonemas periódicos da mãe, avisando que já lhes enviara dinheiro, perguntando quase com indiferença quando voltariam para um fim de semana no sítio ou no apartamento do litoral, depois pelo desempenho escolar, sendo sempre a resposta as excelentes notas de Alícia no terceiro ano, as não tão perfeitas de sua irmã Alana no primeiro, que nem tudo as identificava com a mesma regularidade. Dos cabelos sim, se poderia dizer idênticos: lisos e castanhos, quase sempre oscilantes de tão leves, o comprimento, o volume, a impressão de fragilidade e dissimulação – mas esta talvez fosse uma característica imaginada por uns rapazes levianos, talvez despeitados, que cultivavam suspeitas sobre a sexualidade delas, frisando inclusive sua condição de lésbicas, o que nunca foram.

Ninguém sequer suspeitava sobre seus amantes. Entre eles, havia também o predileto – elas o dividiam. Não havia questão quanto a isso. Serviam-se deles em momentos que só elas sabiam como cultivar, muitas vezes acariciando-os quase com respeito antes de usá-los, algo como quando se examina o produto em uma loja antes de decidir-se por ele. O tubo de um condicionador de cabelos, longo e cilíndrico, outro de desodorante, além de um bastão digno de nota, uns que as preenchiam tão inteiramente que mal podiam mover-se dentro delas. Já outros, menos volumosos, mas fazendo-se de excelente manipulação, de toda forma levando-as ao mesmo longo orgasmo que parecia não ter fim, objetos que elas descobriam, como feitos especialmente para tais funções, caso do artefato que era a imitação perfeita de uma portentosa vela natalina e seu complemento mais próximo, um castiçal de linhas concisas, haste de menor dimensão, ainda assim bem próxima da similaridade fálica, tanto quanto o cabo rombudo de uma escova ainda em uso – este, após introduzido, fazendo surgir junto ao púbis, ou entre as nádegas, uma sugestiva flor de cerdas negras.

Acontecia-lhes, não com frequência, improvisar uma noite de brincadeiras com alguns deles, começando, às vezes, como uma traquinagem sem pretensões e terminando em vastos delírios, o que mais recentemente dera-se numa quarta-feira, em meio à semana e à absoluta rotina das aulas: Alícia e Alana beberam vinho e viram-se como numa festa sem par, com a ajuda de lubrificantes caseiros, óleo de milho, manteiga acetinada e creme de margarina, Alana comentando, em certo momento, que, se alguém viesse a saber, não deveria se surpreender, pois ela já havia visto, em filmes e revistas especializadas, verdadeiras doentes obsessivas que se aproveitavam de artefatos bem mais bizarros e desproporcionais, incluindo certas frutas, legumes, peças de automóveis, armas e outros tantos e até inomináveis que fariam vexado um adolescente lascivo, acostumado a ver perversidades, enquanto os amantes delas eram menos fesceninos e escolhidos entre os mais razoáveis, sempre semelhantes às configurações de um adulto normal. Quem sabe Berenice Rosário, que secretamente buscava decifrá-las, caso experimentasse também o bastão ou o castiçal, por exemplo, compreendesse sem dificuldade os motivos delas.

Assim como um dia qualquer tornava-se, inesperadamente, um pequeno festim, outros havia em que o tédio as limitava, por sorte nem sempre influenciando-as ao mesmo tempo. Uma tarde de sábado, Alana à janela do apartamento, observando o céu encoberto, ocasionalmente supondo ser invadida por uma lenta e pesada nuvem que levava a alguma outra parte a substância de que se fazia seu sorriso, em contrapartida trazendo-lhe recordações autônomas, indesejadas mas inevitáveis, como perfeitamente podia rever a gaveta do criado-mudo em que seu pai guardava o revólver, ela com mãos frágeis abrindo-a lentamente, então examinando aquele objeto escuro, com grande medo, associando-o de alguma forma à sua infância no colégio de freiras, onde as colegas tinham o vício de furtar-lhe pequenos objetos pelos quais sentia, antes de seu zelo habitual, um afeto inconfessável. Também passando, como à sua frente, desenvolviam-se as nuvens: sempre que voltava da escola, magoada por lhe haverem infligido alguma injustiça, tornava a puxar a gaveta proibida de seu pai e corajosamente tomava a arma entre as mãos, por um período de tempo que durava bem menos do que parecia fazer supor, Alana outra vez ante a janela de tempo infinito, a gaveta com cheiro de pólvora e o colégio onde as meninas roubavam, enquanto o céu lá fora anuncia o que ela não sabe, pois, quando as nuvens passam, o que elas carregam é o silêncio que só romperão outras tormentas.

A porta, com um ruído de chaves, trazendo Alícia e um sorriso.

“Algo muito interessante à janela?”

“Não. Estava distraída. Acho que esqueci alguma coisa, mas…”

“Então venha aqui ver o que encontrei”, disse Alícia separando duas sacolas de compras da bolsa larga que deixou sobre o sofá. Ela havia adquirido um colherão de madeira cujo cabo, longo e abaulado, era como feito para elas. Não era fabricado com esse fim, obviamente, o que o tornava ideal e até raro. Alana mal pôde esperar que Alícia o mostrasse muito, que pouco depois o levava ao quarto, untando-o com um de seus melhores cremes, livrando-se da saia com um gesto rápido, de costumeira habilidade, descendo a calcinha quase como se a fizesse cair aos joelhos, depois aos tornozelos, trocando os pés para deixá-la no chão, porém sem mesmo se desfazer da blusa de alças ou descalçar os sapatos, senão o essencial para que se movimentasse sem embaraços. Alícia, que não tinha a mesma pressa, foi à cozinha em busca de um refrigerante, então suspirou com uma estranha sensação de felicidade, imaginando que logo mais iria encontrar o novo parceiro já aquecido de uma primeira investida e bem melhor lubrificado.

“Alô. Quem? Ah, sim. Como vai, professora? Não, estamos estudando. Adiado por quê? Ah, sim, agora me lembro, ele já havia me prevenido, que cabeça a minha… Como? Não entendi. Claro, ela está aqui. Por quê? Você… A senhora pensou que por algum motivo… Ah, sim. Quer que deixe o recado? Não, mas acho que ela… Não sei, deve estar descansando, acho. Em todo caso… Seria um prazer, mas posso entregar-lhe na quinta. Se preferir… A senhora também gosta de vinho, eu sei, posso até deixar uma… Me desculpe, não, não estou rindo, desculpe, acho que confundi as coisas. Tenho estudado muito e… Claro, sabe como é, não? Como? Quem? Não, não. Ele não é meu namorado. Não, nem mesmo um amigo. Só um colega. Por que a senhora pensou que… Ah, mas que coincidência. Não, não sei. Não estou sabendo. Não. Não… Sem dúvida. Na quinta, a senhora disse? Então está certo. Eu é que agradeço, obrigada.”

“Quem era ao telefone?”, Alana saindo de um banho, cabelos escorridos e mais escuros.

“Adivinhe. Só uma chance. Continua insidiosa, mas está cada vez mais confusa”, Alícia com uma risada tão meiga que lhe compensava o gosto pelas pequenas maldades.

“Ela mencionou a tese?”

“Não. Acho que vai ter de inventar outro pretexto para nos entrevistar. Espero que não desista. Só de imaginar a cara dela quando souber…”

“Não fale por mim. Eu não gostaria que ela soubesse”, a caçula não correspondendo às sutilezas da irmã, imaginando que Berenice Rosário se encontrasse ainda frente a um mistério irresolúvel, Alana, então, voltando ao quarto, transida de um enigmático silêncio, os pés descalços como se não tocassem o chão, assim não se ouvindo sequer o som de seus passos no corredor.

Alícia passou a observá-la com outros olhos a partir desse dia. Às vésperas dos exames finais e entre os últimos dias de aula, viu que alguma mudança dava sinais de possuir a irmã mais nova, especialmente quando a vira chegar bem mais tarde que o costume, abraçada aos cadernos, Alana detendo-se por um instante frente ao silêncio interrogativo que a esperava e lendo nos olhos da irmã a pergunta. Ambas tinham em mente o rosto calmo e alegre de um rapaz do segundo ano, pouco mais alto que Alana, a curta distância harmonizando-se ao seu lado, da mesma maneira jovial, descontraído e, segundo ela, não menos inteligente. Estiveram juntos durante todo o intervalo, em pouco pareciam conhecer-se há muito, logo estavam bem próximos e dialogavam com agradável fluência, Alana quase sempre sorrindo. Alícia era bastante observadora, dispensando-se no caso que o fosse, para detectar, entre um breve jogo de palavras e um par de gestos, que algo começava ali, entre eles. Alana chega com cadernos. Entende que também num instante se responde nos olhos da irmã a pergunta. Inicia um sorriso malicioso antes de passar ao quarto e reencontrá-la. “O nome dele é Alonso”, diz.

Nessa noite, declarou à irmã que não tinha vontade de estudar, que sentia faltar-lhe algo, mas não sabia o quê. “Quer brincar com algum deles?”, perguntou Alícia tentando motivá-la. Alana não tinha certeza, como também não lhe ocorria claramente o motivo de sua ansiedade, ainda que a memória das feições de Alonso insistisse em incomodá-la. Foram ao quarto, e ela pediu a Alícia que a ajudasse a preencher-se simultaneamente com dois membros de sua coleção, o que não costumava fazer com frequência, para isso assumindo uma posição especial, que consistia em estar de joelhos, uma das pernas sobre a cama, a outra com o pé tocando o carpete, curvando o corpo para a frente e tendo de apoiar-se na grade da cabeceira, ela própria manejando frontalmente o bastão, Alícia inserindo-lhe com delicadeza o colherão entre suas nádegas, vendo que ela mais e mais se torcia numa satisfação crescente, até entregar-se sem defesa ao seu último limite, gemendo de prazer, melancolia e incerteza.

Alícia não está em casa quando Alana põe-se ao espelho, confundindo a lembrança de Alonso à realidade de sua nudez, quando percebe que não consegue esquecê-lo, certa variação de temperatura e um ligeiro avolumar-se dos seios fazendo-a acreditar que está apaixonada. Enquanto se dispersa entre pensamentos mal concluídos, traz por sobre um ombro os cabelos de filandras castanhas, alisando-os, percorrendo-os com as duas mãos, depois simulando prendê-los num rabo de cavalo, sempre sem perder de vista o rosto e o sorriso de Alonso, chegando mesmo a imaginar que um dia pudessem morar juntos, que ele a faria feliz porque talvez a amasse, que a deixaria levar consigo sua coleção de objetos mágicos e a poria a brincar com eles sempre que ela quisesse.

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Imagem: Henry Asencio. Luz da tarde. 1972.

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