Office in a Small City por Edward Hopper

O final dos contos de fósseis (trecho)

… que acontecem

Texto apresentado no sarau da Casa do Poeta, fevereiro 2019.

Não resisto, detenho-me diante da casa. Concretada a caixa de correspondência: não recebiam cartas, contas ou cartões os moradores que nos sucederam? Perturbam-me os grandes tipos do aviso (VENDE-SE), o rumor de vozes na sala.

Subo os três (quatro, quem sabe?) degraus da varanda, vejo as vozes na sala. Olhos de atravessar a alma alheia, por sua vez denotando um grosseiro interesse mesmo nos clientes potenciais, o agente imobiliário avalia minha presença com uma ruga de hostilidade, não me ocorre por quê. O interessado, se é que se deva chamá-lo assim, num terno agourento e fora de moda, tem os olhos do filho que o acompanha, mais injetados talvez, o que as olheiras destacam. O rapaz, a boca uma linha num falso sorriso contínuo, nada diz.

“Não que me interesse comprá-la”, explico. “Morei aqui há muitos anos, sabem? Cresci aqui, mais tarde me perdi. Para mim, se os senhores entendem, esta casa não pode ser vendida, comprada, sequer mensurada em qualquer moeda. Custa a um tempo o ouro do mundo e um último grão de areia. Vale a face do universo. E não paga uma brisa.”

Eu, um insano. Assim me consideram, sei disso. Não creem em nada do que digo. Enquanto percorrem os cômodos vazios, conto-lhes do que uma vez sucedeu, do que monstruosamente se engendrou pela mão mais pesada do destino e, passando como legiões afoitas por estas mesmas paredes, tirou o mundo de sob meus pés, arruinou-me a inocência, pôs fim aos meus singelos grandes sonhos de criança.

O final dos contos de fósseis

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