Office in a Small City por Edward Hopper

Equívocos em série por culpa deles

Depois de toda glória, é preciso voltar.
Ao quarto íntimo, à janela escura, ao que seja seu e não seja a ilusão dos outros.

Robert Motherwell. Duas figuras. 1958.Não posso negar que eu seja do tipo facilmente reconhecível, aonde quer que vá. Não por me conhecerem, obviamente, pois ninguém me conhece. Mas se vou a uma exposição, alguém que troca uma palavra comigo sempre pergunta se pinto também. Na plateia de um concerto, a pessoa ao meu lado quer saber se componho ou se toco alguma porcaria de instrumento. Não, não toco nada, não componho nada, acredite. Por que não posso apenas estar ali, assistindo? Por que tenho que fazer alguma coisa? A moça da biblioteca pensa que sou ator de teatro, não sei por quê – semana passada, foi a segunda vez que me confundiu não sei com quem dessa laia. E uma colega, que faz teatro, pensa que sou poeta. Só não me confundiram ainda com algum autor de telenovelas, mas isso já seria demais. Por coincidência, Copérnico perguntou:

“Você ainda não é muito conhecido, não é?”

Como? Será possível que, após tantos anos, Copérnico tenha se especializado em ironias?

“Mais ou menos”, menti.

“Quem sabe um dia, não é?”, olhou outra vez para Vanessa. “Quem sabe a gente vai ter um amigo famoso.”

Amigo, não é? Como nos tempos de escola, sei. Então é isso o que lhes interessa: um amigo famoso. Pois eu não sirvo. Além do mais, não escrevo para ser famoso. Quem se daria esse trabalho? Não, não escrevo para nada do que pensam. Mal percebe Copérnico que um homem almeja ser grande talvez por vingança. Ser famoso por não ter sido amado. E rico por acreditar nas campanhas publicitárias, no discurso alheio. Escrevo para me esconder ainda mais, se é que ele pudesse entender isso. Escrevo para que ninguém me conheça, para que ninguém saiba quem sou. Depois, para que serve a glória, se já foi inventada a morte? Ora, nem se trata de almejar o aplauso ou as luzes que cegam. Depois de toda glória, é preciso voltar. Ao quarto íntimo, à janela escura, ao que seja seu e não seja a ilusão dos outros. Queria que ele soubesse que eu detesto a glória. E nada me dá mais prazer que zombar de mim mesmo.

“Outro livro…”, fez Vanessa meio sorrindo, meio abatida, como dizendo: “Você mesmo pontuou: por que continuar escrevendo livros? Já não são livros demais?”. Ela tinha razão. Muitas vezes pensei assim. Por que realizar uma obra, se já é tão prazeroso apenas imaginá-la? Mas não era o ato de redigir, como eles pensavam. Todas essas coisas já foram ditas, sem dúvida. Mas não por mim. Já se escreveram infinitos outros livros, sei disso. Mas não como o meu. Não como o meu! Ninguém tem coragem de dizer-escrever o que eu digo-escrevo.

Copérnico ainda perguntou se eu conhecia um escritor de nossa cidade, o doutor Paschoal. Eu disse que sim, para encurtar o assunto. Não queria mais falar nisso, não valia a pena, primeiro porque acabaríamos perdidos em opiniões, correndo inclusive o risco de concordarmos – e quando todos estão de acordo sobre um mesmo ponto, é porque alguma coisa passou despercebida. Também porque só o que existe neste mundo são opiniões. Nem Copérnico nem Vanessa entendiam picas de literatura, tanto que ele acabara de mencionar, com dissimulada reverência, o doutor Paschoal, como fosse nosso ilustre magistrado um talentoso escritor. Sinceramente, não me lembra seu primeiro nome: um homem tão importante em nossa cidade natal, mas era aquele mesmo que possuía, em sua mansão, uma frondosa quaresmeira, sob a qual costumava sentar-se para ler, e seus livros guardavam manchas aborrecidas de cagadas de pássaros. Esses meus colegas só sabiam de literatura o que haviam aprendido na escola, isto é, quase nada. Além disso, eram bem-comportados demais. E ninguém se inicia em literatura sem alguma vez se corromper. Mas não adianta contar isso a uns bestalhões como vocês, eu acrescentava por minha conta, em segredo, pois vocês sempre esperam que a literatura nunca deixe a velha bitola carcomida e que siga sendo outra admirável manifestação dos chamados espíritos ilustres. Claro, vocês não têm jeito mesmo. Eu também, inclusive, só passei a conhecer autores interessantes e obras significativas depois que parei de estudar. Daí eu não ser um escritor precoce, tendo me faltado, por muito tempo, um certo grau de cultura mais adequada a alguém que pensa, mas que posso fazer? Sou muito jovem, estou ainda no princípio, tenho uma vida inteira pela frente. (Aliás, sempre me digo isso de ter uma vida inteira pela frente enquanto releio meus textos mais execráveis, com esperanças de remissão futura.) É claro que o mundo não vai parar se eu desistir de escrever. Nem vai parar se eu continuar escrevendo, espero.

A conspiração dos felizes

 29. Com o tempo, comecei a mentir – sequência

27. Não fale grego assim comigo – anterior

Guia de leitura

Imagem: Robert Motherwell. Duas figuras. 1958.

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Comentários

Uma resposta para “Equívocos em série por culpa deles”

  1. Avatar de Maris Ester A. Souza
    Maris Ester A. Souza

    Caro Perce

    Fico admirada com sua capacidade de criar …pegando gancho no que nos parece tão comum! Você sempre nos surpreende e até sua ironia nos seduz! Tenho lido seus textos com frequência e em minha percepção todos poderiam passar por uma leitura comum, mas não, estes exigem (ao meu ver) várias leituras para que possamos nos deleitar de suas essências!
    E isto não é coisa de poeta!
    Abraços!

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