Office in a Small City por Edward Hopper

Sonho 3457. Acompanhando Camila

Subitamente, fui tomado por uma impressão incômoda de que podiam ser os vestidos de três mulheres mortas.
Talvez tivessem sido enterradas ali, sob o piso da sala, e inexplicavelmente teriam descido ao fundo da terra sem que lhes acompanhassem suas roupas.

Amadeo de Souza-Cardoso. Cozinha da casa de Manhufe, 1913.Eu voltava com ela de algum lugar, não sabia qual. Mas sabia que estávamos, até então, conversando em alguma parte da noite na cidade, e eu a estava acompanhando até sua casa. Era algo como os princípios de um namoro, algum ritual de aproximação. Talvez (pois eu não tinha certeza) já tivéssemos nos beijado.

Entramos por uma passagem estreita, seguida à porta da frente, que levava a uma sala mais larga e a outros espaços maiores, externos e internos, porém indefinidos para mim. A casa parecia vazia, mas, mesmo assim, entendi que era hora de me despedir de Camila e deixá-la.

“Você pode ficar mais”, ela me disse. “Fique mais um pouco. Vamos ficar mais um pouco.”

Eu olhava seu rosto bonito. Havia alguma neutralidade, uma espécie de tristeza disfarçada em suas expressões faciais, quase imperceptíveis. Quase nada. Mas eu percebia.

Então, surgiram duas mulheres envelhecidas, com roupas de serviçais, lenços prendendo os cabelos, uma delas com um pano de limpeza entre as mãos – esta última, saída da cozinha; a outra, tendo atravessado uma das paredes. A que me pareceu mais velha tinha um rosto amarelado e rígido, como uma daquelas puritanas inglesas que eu conhecia das ilustrações de livros. A outra, mais baixa e morena, vinha logo atrás, seguindo a primeira.

“Você pode ficar mais, se quiser”, disse a mulher que estava à frente. “Ela está sozinha. E está triste. Fique um pouco mais.”

Moveram a cabeça, um mínimo aceno respeitoso, e entraram pela porta da cozinha, sugerindo, com isso, que se dedicariam, em seguida, a algum tipo de serviço doméstico.

“Vou pegar umas bebidas”, disse Camila sem sorrir.

Correspondendo e querendo agradá-la, eu lhe disse que pegaria bebidas também.

Ali perto, em um canto obscuro da sala, vi três vestidos estendidos paralelamente, como para secar ao sol. Mas isso não era possível, pois estavam no chão, um chão de lajes escuras e frias. Como podiam estar ali para secar ao sol?  Num instante, fui tomado por uma impressão incômoda de que podiam ser os vestidos de três mulheres mortas. Talvez tivessem sido enterradas ali, sob o piso da sala, e, inexplicavelmente, teriam descido ao fundo da terra, sem que lhes acompanhassem suas roupas. Não, era absurdo, eu não podia aceitar o que me passava essa impressão insólita e ridícula, por isso desviei-me dessa conclusão imatura, quase infantil, e, ao mesmo tempo, perturbadora.

“Não pode ser…”, murmurei a mim mesmo.

Entre um vestido e outro, próximo ao rodapé da parede, encontrei o que estava procurando: bebidas. Havia uma lata de refrigerante, rótulo vermelho, e um copo. Abaixei-me para pegá-los, voltei-me para Camila, a uns passos dali. Abri a latinha de coca-cola, despejei seu conteúdo no copo e verifiquei, surpreso, que aquilo era cerveja.

“Nosso contrabando vai ser um sucesso”, brinquei.

Algumas pessoas que eu não conhecia acharam isso engraçado. Mas logo misturaram seus risos a outros ruídos e vozes, e não era possível saber do que estavam rindo de fato. Olhei ao redor, e agora estávamos entre muitas mesas festivas, com famílias e crianças, um dia de sol, à margem da piscina. Ninguém percebia minha presença, e Camila não estava mais comigo. Intrigado, girei a cabeça, girei o corpo, procurando por ela. Um dos meninos, de uma mesa próxima, olhou para mim e disse, erguendo um pouco a voz para destacar-se das outras muitas vozes:

“Ela não está mais aqui! Deve ter entrado!”

Permaneci em silêncio, sem reação, sem agradecer ao menino que tentava me ajudar. Voltei-me para a casa novamente, a uma larga porta lateral que separava, dos limites da casa, o terraço onde se dava essa festa familiar ruidosa, e era a entrada para outra grande sala que eu não conhecia.

Em contraste com as cores das paredes, de umas cortinas aparentemente sem função, uns enfeites e vasos ornamentais, em contraste com tudo que se via nitidamente sob a claridade do sol, o interior da casa era escurecido, cinzento e azulado, cheio de poeira. Cheguei mais perto, fiquei à entrada por um instante e então passei a caminhar lentamente em direção ao interior.

“Camila…”, chamei em voz baixa. “Onde você está? Estou com as bebidas. Quero ficar um pouco mais.”

Havia ferramentas no chão, espalhadas com certa desordem. Também mesas toscas, improvisadas, e pedaços de tábuas irregulares, como se a casa estivesse passando por alguma reforma. Havia também teias de aranha e pontos negros nas paredes, que podiam ser insetos de alguma espécie. Tudo opaco, empoeirado e sem brilho. Entendi que não se tratava de um trabalho de reforma. Era uma casa abandonada há muito tempo. Em ruínas.

Leia mais registros de impressões oníricas: Sonho 3415. A barricada das assassinas

Imagem: Amadeo de Souza-Cardoso. Cozinha da casa de Manhufe. 1913.

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