Office in a Small City por Edward Hopper

Projeto esvanecendo-se. O que ela faz durante o dia?

Nossa civilização não está pronta para isso.
E minha ociosidade não pode converter-se em frivolidade, algo assim sem rumo, não pode declinar à rendição.

Pensei absurdamente em epitáfios. Epitáfios em meio às minhas corridas. Eu andava pelas partes conhecidas do bairro, conhecidas de mim mesmo, e então alguma carga de adrenalina forçava à aceleração, correr para além das fronteiras de arbustos e barrancos em terrenos irregulares que eu não conhecia, passava agora pelas pegadas em Laetoli a igrejinha deprimente a casa sem graça, ainda faltam as lajes-lápides que imaginei sepulcros de crianças, vamos logo, passe por tudo tudo tudo rápido correndo lembrando olhando as sarjetas as calçadas com trincados falhas sulcos, cenários dos jogos com bolinhas de gude, um menino angustiado outra vez, grandes apostas, ousadias imprudentes, a falência, a perda total, o choro no chuveiro, começar do zero, pedir dinheiro aos pais para comprar novas outras primeiras bolinhas de vidro, castanhas pretas cor de champanhe, voltar à disputa voltar ao jogo voltar à guerra com os meninos vizinhos… Dentes forçando limites da resistência. Tentando manter minha dignidade. Não deixar que minha dignidade escape de mim. Mesmo com um círculo de gente gargalhando na minha cara. Voltar com a velha lata vermelha de extrato de tomate com minhas novas bolinhas prontas para a guerra. Ponto de partida. De volta ao percurso. Encerrar o percurso. Último plano. Cinco quarteirões sem aclives nem declives. O portão de casa, entre árvores arbustos folhagens de muro. Coco Chanel está lá dentro, em algum lugar.

Quarta ou quinta vez com ela. Não tenho certeza. A Josie já estava à porta, um pouco aberta. Ela o espera. Ela o aceita. Atua. Batom vermelho e muita sombra nos olhos, e isso o fez pensar em prostituição, um alerta cultural, algo automático. Depois compreendeu que esses sortilégios eram inocentes da parte dela, compreendeu que ela só queria agradar, queria ficar bonita ao recebê-lo, e tanto ele estava certo disso que ela nunca lhe havia pedido nada, não esperava que ele lhe desse nada, que a ajudasse com dinheiro, enfim, nada. (A Marjorie às vezes lhe pedia dinheiro, alguma coisa avulsa. Veja na minha carteira, pode pegar.) Mas, ao fim desse dia, não havia muito na carteira, só umas notas pequenas. Nota de 20, outra de 5. Estava distraído alterado, quase em transe, percebendo uma lentidão mental que eu não me esforçava por vencer, porque podia jurar que havia mais ou menos 150 reais em minha carteira, em cédulas diversas, até a tarde, horas atrás, e a carteira que eu abria agora mostrava-me 25 reais. Por que pensei que houvesse 150? Que associação teria feito entre esse valor e o valor real, 25? Algumas moedas na divisão com zíper, impossível saber se eram essas aí mesmo, tanto faz, moedas são como coisas pequenas da vida, devem desaparecer mesmo. Recordei magicamente nitidamente claramente: os 150 reais estavam lá sim, nessa mesma carteira, estavam lá no dia anterior, e eu não tinha mexido neles desde então, para nada. Só se a Marje, sem me avisar… Mesmo assim, apesar dessas faíscas nítidas de memória, as certezas não estavam mais entre as coisas que-eu-mais-tinha. Eu me confundia logo no instante seguinte. As certezas flutuavam. Meus olhos se nublavam. Não valia a pena forçar minha mente exausta. Que importa se havia 150, 25 ou 50 ou 10? O que importava era que, nessa tarde, na tarde desse dia, ele havia experimentado outra vez sua Joss Stone, aromática consistente, frágil e forte, impregnada de delícias. Não, ele não pode abrir mão disso só por um receio, olha como é bom vir aqui e perder o fôlego e salivar forte enquanto a rende no decurso de uma sequência de gestos que a encaminha prepara desnuda, olha só essa pele sem sol olha só essa nudez macia essa borboletinha essa bocetinha, tudo tão lindo aí, e quando ela se deita sobre ele para conversar, e ele segura sua bundinha com as mãos cheias, parece bom demais para ser verdade, e ela, beijo simples e breve, reitera que é bom demais mesmo e que… é verdade. Ele vive seus momentos de preocupante paraíso. Quando eu penso que… Quando eu me lembro que… Ela, um dedo alisando seus lábios. Não não. Não fala nada: você vai acabar se arrependendo do que vai dizer. E após uma cultuada maratona de prazeres, deixa-se cair para dentro de si mesmo, sobre a cama em desordem, tendo dormido profundamente por quase meia hora, enquanto ela entra no banho, dando-lhe os ruídos da água corrente, imitação de um chuvisqueiro contínuo, fingida chuva doméstica, a acalentar-lhe ainda mais a poderosa lassidão entorpecente, isso antes de ser outra vez despertado com os carinhos gostosos dela, antes que tudo aquilo recomece, com energia crescente e renovada. Até o limite biológico. Até que o sol decline lento, anunciando a hora difusa de partir. Ele vê que um rostinho próximo, pouco abaixo do seu, detém-se pensativo breve, o olhar quase piedoso de uma garota agora atenta maliciosa bela simples. Toca a face dele, perto da têmpora. Você é puro… Surpreso em ouvir isso. Surpreso sem reação, quieto dócil calado. Ela não diria isso se não fosse sincero. Então é assim que o considera, depois de um tempo? Interessante. E surpreendente. Devo parecer puro. Devo parecer tolo. Mas não tem importância. Tenho que ir, você sabe. Tá certo, lindo. Vai sim, vai com Deus. Vê se me escreve então. No dia seguinte, ainda pela manhã, vê na rede social as fotos dela, na balada. Com a Quiel.

No escritório do andar superior, Coco Chanel acomodada no pequeno sofá de canto, de repente e por nada, eu me peguei olhando fixamente pela janela, sem piscar, e me senti também como um gato, com a paciência própria dos felinos, quando administram sua solidão. A imagem da Josie nua comigo passava entre as folhagens, ocupava espaços do dia claro. Ontem mesmo, de frente a mim, bem sentadinha sobre minha ereção incontrolável: pequena e a um tempo exuberante, imune a qualquer pensamento estranho a ela própria, exercendo decididamente sua feminilidade sua liberdade seu tesão seu prazer, uma lição de vida que eu deveria definitivamente aprender, assimilar para sempre.

Toquei uns livros que estavam à mão, páginas com marcadores, continuar a leitura. Você prossegue lendo e acumulando coisas, coisas que acabam sendo, em parte, essas que-você-mais-tem. Você está se armando. Estocando um arsenal. Prevendo um golpe, esperando ser assaltado. Ser usado. É por isso (também) que a Josie gosta de você. Outro motivo é a carência, a realidade de ela estar sozinha.

Meus instintos me levam às fêmeas, fácil entender. Mas nada é simples para os humanos. O caso de voltar à Josie desafiava meu autocontrole. Como se eu não pudesse raciocinar resolver decidir sobre minha conduta, o que só cabia a mim mesmo, essencialmente. Eu não podia me comportar como um gato, absurdo. Mas quando me encaminhava ao endereço aconchegante dessa garota despreocupada, minhas sinapses, possuídas pela visão de algo fascinante à frente, ativavam sensações maravilhosas, que suplantavam qualquer ansiedade avulsa. Salivação oportuna. Hormônios agitados. Recordava com alegre ironia que havia caído, perdido o emprego, desmoronado impotente por causa de uma bobagem infundada, boatos ridículos envolvendo a idiota da Silvaninha, e agora que de fato agarrava uma mulher pelos cabelos e me punha à prova, com toda a minha potência, nada me fazia cair. Não, eu não pretendo cair novamente. Ninguém conseguirá me derrotar mais. Vou assumir, com toda coragem, até mesmo as mentiras, e fazer a todos confusos constrangidos surpresos diante de um homem que não se importa com nenhum tipo de acusação. Eu apertava o passo, ela me espera, estou próximo, estamos próximos. Imagens específicas, singularidades. Seus óculos de sol sobre uma estante clara, na saleta de entrada. No piso, por acaso, bem ao lado do sofá, encontrei um de seus brincos, cuja recuperação a iluminou discretamente, desenhando-lhe um sorriso e um instante de legítima felicidade. Pequeno pôster com uns tipos mal-encarados de uma banda. Um vaso de vidro estreito, de base plana, em forma de tubo de ensaio. A Josie acredita em fantasmas.

Já ouvira algo sobre seus pais, de sua vida pregressa no interior de Minas, costumes irritadiços de um e de outro parente, seu pai repetindo chavões enfáticos quando classificava atitudes diversas de seus padrões culturais como algo “além da minha compreensão!”, “acima da minha compreensão!”, funcionário público de baixa renda, mas bem instalado, e a mãe dela fazia coisas escondidas do marido, como quando tinham de ir a algum evento social, e ela rezava em segredo a uma santa de gesso, pedindo a graça de que ele se comportasse bem entre os convivas pelo tempo que durasse o encontro. Ele a ouvia com curiosidade e interesse, e já quedava encantado com a comédia enriquecedora de sua vida, quando então voltava o foco a ela principalmente especialmente isoladamente, prestando atenção a ela apenas, ao que ela alegava causar-lhe alergias, no que nem sempre ele acreditava, que lhe pareciam maneiras infantis de ela procurar ser amparada, mas nas quais, com o tempo, passou a acreditar. Tem vontade de dar um presente a ela. Essas coisas vão crescendo. Sonham dormir juntos, acordar num chalé de madeira escura no litoral, ao som de aves marinhas. Imaginam um filho ou filha deles. Timing dos amantes. Ciclos, um ciclo. Vão se viciando. Vão se acostumando, como se acostumam todos a todos.

Sonho que a Josie brinca de se esconder em minha casa, no armário de roupas. A Marjorie está dormindo, e eu tenho de me livrar dessa menina travessa o mais rápido possível. A Josie magicamente sorri divertida, dentro do armário, ao fundo de umas roupas penduradas, vestidos particularmente, mal acomodada sobre alguns calçados da Marje. Josie, minha linda, entenda… – sim, um pesadelo tenebroso.

O que ela faz durante o dia? Não pode ser que fique à toa na maior parte do tempo e em sua restrita dimensão de espaço, esperando que eu me prontifique a vê-la. Não existem dessas graças assim disponíveis, à mão de um oportunista hesitante que nem mesmo a sustenta. Não na vida real. Eu não me perguntava isso antes, porque não tinha nada a ver com a sua vida. Mas agora tenho. Então, o que ela faz durante o dia? Versão Josie: currículos em consultórios médicos dentários clínicas e similares, quer ser mais ou menos o que era antes, atendente secretária assistente meio telefonista meio sorrisos de covinhas, a sorte daqueles que a encontram e se alegram com seu rostinho de frente. Sabe atender sabe agradar sabe cobrar, débito ou crédito, via do cliente, agenda com fitinha azul, como não? Não. Não pode ser só isso. Entregar currículos? O dia todo? Todos os dias? Essa menina tem um currículo? Certificado do ensino médio, talvez. Ou nem tanto, será que ela terminou o curso? Mas pode ser que sim, já que ela pensa em fazer faculdade, é estranho… – lembrar de perguntar-lhe isso.

Por causa da solidão e da privacidade, será que ela anda nua pela casa? Seminua, que seja. Que diferença isso faz, se não estou lá para ver? Não importa. A curiosidade nos levou às estrelas. E minha curiosidade particular, com variações de voyeur adolescente, é apenas uma amostra sem futuro de tantas conquistas maravilhosas. A Josie seminua, melhor que nua. Fascínio de preliminares. Melhor que nua, sim, é o que sinto, o que penso. Vestida a cada novo encontro, quando me espera. Uma conquista maravilhosa. Acidental. Aconteceu de ser. Ela não fazia parte das metas. Não faz ainda hoje. E isso me encanta e gratifica justamente. O acidente o acaso a oportunidade me atraem. A intromissão na ordem esperada das coisas. Enquanto eu, o velho bom menino, aceito e obedeço, contido e conduzido pelo conjunto de decisões alheias, desde a voz mais próxima até as emanações quase abstratas de poderes inacessíveis, eu quase sucumbindo a um conformismo absoluto, acontece algo que desorienta os organizadores do mundo, que os surpreende, e, guardado em segredo, continuará desorientando ainda suas linhas traçadas nas tábuas nos códices nas pedras, desrespeitando suas projeções desafiando sua supervisão ameaçando sua ilusão episcopal de controle – sem que eles saibam! Que são as ações motivadas por fortelatentes sinais de vitalidade. Alheias às agendas. Golpeando seus projetos de construção social com a natureza provisória das situações improváveis que ocorrem entre os dias devidamente numerados, como os bemóis e os sustenidos cravam-se entre as teclas brancas e sua sequência lógica. Em minha imaginação de hormônios inquietos, auxiliares de minha desonra, a Josie passeia despretensiosa pela casa. Passa de uma divisão a outra, distraída. Em minhas noites brancas ela se move naturalmente à luz do dia em seu alvéolo, simples e silenciosa, com sua calcinha preta.

A Josie deve se sentir sozinha. Por muito tempo do dia. É assim quando estamos fora de alguma coisa do mundo. E… que mais? Ontem eu fui com a Quiel no centro. Ver umas coisas com ela, bater perna, comprar. Ver lojas, na Barão. Umas roupas. Coisas de maquiagem, de mulher. Só isso? Mas não todos os dias, suponho, e o dinheiro dela não vai durar sempre. (Eu tinha me esquecido da Quiel. E de repente um alerta automático, uma preocupação nova, que eu já deveria ter considerado: será que a Josie conta a ela sobre mim? Sobre nós? Seus segredos? Preciso saber que não. E descer de mais esse degrau perigoso de uma escadaria de hesitações e receios.) Você quer ir comigo, lindo, vamos um dia lá no centro, nós dois, vamos, passear um pouco? Ah, eu ia amar você comigo, vendo lojas… Diz que vai comigo, vai, vamos, quero muito te mostrar umas coisas. Sim, eu sei que é espontâneo da parte dela, sei sim, pelo jeito de ela falar, esse improviso, a entonação de voz, é algo de agora, não planejado, num instante ela me vê ao seu lado, centro da cidade, vagando ante as vitrines de umas ruas de vidro. Comprar-lhe um presente talvez. Comprar-lhe coisas, de vez em quando, pense nisso. Não. Não. Definitivamente não. Diga isso a ela, educadamente. Diga que não será seu companheiro de passeios de mulher. Mas calma, tenha paciência. Ela está sendo espontânea, só isso, não merece respostas bruscas. Imagine-se a cena, eu e a Josie, juntos por aí. Mãos dadas, quem sabe. Braços dados, à moda antiga. Não posso (versão real: não quero), de jeito nenhum. Não podemos. Nossa civilização não está pronta para isso. E minha ociosidade não pode converter-se em frivolidade, algo assim sem rumo, não pode declinar à rendição. Ainda estou inteiro, com tudo que fortemente penso.

Projeto esvanecendo-se

32. Mas foi também em um desses e-mails… – sequência

30. Sonho com Josie na galeria – anterior

Guia de leitura

Imagem: Pintura de Scott Harding.

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