Office in a Small City por Edward Hopper

Não apagou um agora mesmo?

Difícil reconhecer que tanto essas imagens soam exageradas quanto possíveis.
Tanto quanto sua imaginação produz imagens sinistras, flui também, involuntariamente, a sequência que leva à aproximação daqueles rostos…

Acende outro, não se importa com isso. Mas parece-lhe que o cigarro anterior se esfumou espaço fora sem que o percebesse. É preciso admitir. Não consegue evitar. Mesmo distraído, prossegue ligeiramente incomodado. Continua pensando e pensando circularmente sobre as mesmas coisas. Torna às mesmas dúvidas. Faz a mesma pergunta, sem palavras. Aquela história toda de Júlio ter se envolvido com Treze o intriga, salvo qualquer coincidência ou o que possa apenas contribuir para o decurso natural dos acontecimentos. Chega mesmo a pensar em situações mais drásticas, como tanto se vê em noticiários televisivos. Difícil reconhecer que tanto essas imagens soam exageradas quanto possíveis. Ainda assim, há algo de adequado e harmonioso nisso tudo, ele pensa. Porra, eu não queria admitir isso. Por que caralho eu estou encanado com essa porra toda, do Júlio e dessa putinha pegajosa? Recorda a imagem do colega de quarto e dessa garota, como da última vez que a viu no Fronteira. Sim, como da última vez que os viu, aos dois juntos. Porque formam um casal agradável. Desses que passam a impressão de permanência ou algo até melhor (ou pior) do que isso. Puta, isso parece muito com amor, com essa merda toda que as meninas chamam de amor e amor e amor…. Aquele tipo de coisa que só a gente sente com alguém que só a gente sabe. Eu sei, eu sei, é isso, que desgraça! Porém, não atina com o que seja. Tanto quanto sua imaginação produz imagens sinistras, flui também, involuntariamente, a sequência que leva à aproximação daqueles rostos, primeiro rapidamente, tocando-se de leve os lábios, quase num afago ágil e inaudível, então, ainda de olhos fechados, reaproximando-se, bocas novamente unidas, como se por um instante houvessem desaparecido e logo ressurgissem deformadas entre o movimento suave, tanto quanto agressivo, que é o próprio beijo. Por algum motivo, vê as oscilações do ônibus pela longa avenida, tal como Júlio lhe houvera descrito. O filha da puta sabe contar as coisas dum jeito que a gente vê tudo, eu quase vi os dois lá, naquela desgraça de ônibus e tudo. Ela, pelo que Bruno entende, ao aceitar essa maneira de se encontrarem e de se conhecerem, ao provocar esse discreto namoro, tem aí uma oportunidade de respirar, soltar-se de si mesma, deixando por momentos sua opressiva condição, bem como as reais circunstâncias que a envolvem, a ela própria ou à sua condição, o que é quase o mesmo nesse caso, e que a nutrem, a recompensam e a reprimem. Aí está, novamente, o círculo. Puta, fiquei na mesma de novo. Eles estão aí, na minha frente, fazendo tudo, cadê, cadê o que eu estava pensando agora mesmo? Não apaguei um…? Apaguei um sim, agora mesmo. Despedem-se de uma situação qualquer em que se teriam ajudado de alguma forma. Consegue perceber a proximidade dela, seus lábios finos, pouco convidativos, não muito relaxados, que supõe mesmo pouco umedecidos e até com uma certa aridez. Então, lenta e tão suavemente quanto súbita, ela lhe dá a ponta de sua língua entre seus dentes, os dentes carinhosos dele, para que a tome para si e responda com um movimento similar, agora sim, e disso em diante, umedecendo-se reciprocamente e aos minutos seguintes, entre a textura e o sabor inconfundíveis de um beijo naturalmente prazeroso, inevitável, humano. Puta, mas puta que pariu mesmo! Não gosto nada, nada, dessas porras sentimentais. Bruno por fim desmancha toda essa imagem, porque começa a sentir-se incomodado, impaciente, confuso. Quase vendo. Quase acreditando.

 Os últimos dias de agosto

28. Arca com retratos do pai. Parte 1 – sequência

26. Como cães farejadores – anterior

Guia de leitura

Imagem: Lea Kelley. Período de polinização (lua azul).

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