Office in a Small City por Edward Hopper

Vencidos, uma questão de tempo

Nós mesmos nos conduzimos cegamente a tudo o que nos acontece.
Morremos porque a natureza nos quer de volta.

Se vou morrer hoje, tudo bem, eu pensava. Só o que me trazia um incômodo nervosismo era imaginar como morreria. Um só daqueles mísseis, se atingisse o apartamento, se atingisse, digamos, o centro da sala, não me daria tempo para um último suspiro. Força de expressão, claro: por que eu haveria de querer um último suspiro? Se atingisse outro cômodo, quem sabe, talvez eu morresse sob escombros, gemendo alguma coisa incompreensível ou amaldiçoando todas as guerras do mundo.

“Para de andar pela casa!”, advertiu Franco entre dentes, num sussurro contido e irritado. “Fica quieto em algum canto, porra!”

Eu voltava quase instintivamente para perto da mesinha, no canto da sala, agachava-me ao lado dela, afrouxava um pouco o capacete, como se assim pudesse, ridiculamente, proteger-me. Era o único móvel ali. Outra possibilidade era a de uma dessas explosões, deflagrando um abrupto deslocamento de ar, atirar-me prédio afora, estilhaçando a ampla janela de vidro, fazendo-me um cadáver carbonizado e distorcido lá embaixo. Haveria sangue?

“Cadê a tua arma?”, perguntou Victor com voz neutra, quase sem ter o que dizer.

Apalpei a lateral da calça, ele se voltou para a máquina junto à janela, sem dar muita atenção à resposta. Devia estar tão tenso quanto eu, mas não demonstrava. Eu também não demonstrava. Franco parecia ser mais indiferente do que nós, mais ousado – talvez não lhe importasse muito viver. Ficava na cozinha, estado de alerta, olhando quase todo o tempo pelo vitrozinho estreito, arma engatilhada, eu nem entendia por quê. A esquadrilha logo estaria sobre nosso telhado, sobre nossas cabeças, e aquelas pistolas não serviriam para nada.

“Quietos!”, ordenou Franco, a um tempo sussurrando e gritando, de costas para nós, estendendo um braço horizontalmente, os dedos no ar, num sinal de que estacássemos – mas não estávamos fazendo nada, falando nada.

Eu não estava propriamente nervoso. Percebia em mim uma indiferença intermitente, uma capacidade quase terapêutica de distrair-me, esquecendo-me de tudo que me levara até ali, como se uma nuvem entrasse e saísse por meus olhos, por vezes uma sensação de alívio e, ainda assim, uns sinais avulsos de grande preocupação.

“Vocês ouviram?”, Franco inclinando-se pela porta da cozinha.

“Não. Não ouvi nada”, adiantei-me.

Somos o que restou de um pelotão mal orientado, formado por jovens confiantes e ingênuos: nós. Franco levava muito a sério sua posição de sentinela, na cozinha imunda. Victor estava a cargo da máquina: ficava de pé, junto à larga janela de vidro, por onde se mostrava a vasta lateral cinzenta do outro prédio e um céu não muito diferente. Essa ampla janela, que constituía praticamente toda uma parede da sala, causava-me arrepios, fazia-me sentir muito mais vulnerável. Eu quase podia ouvir o tilintar dos estilhaços. Tudo era uma questão de tempo. Tudo, em nossa vida, é uma questão de tempo, penso eu.

“Vou comer esses chocolates”, avisei – uns pequenos bombons de chocolate que estavam o tempo todo sobre a mesinha de canto.

“Não, nada disso”, falou Franco, tão irritado quanto antes. “Estamos sem provisões de alimentos. Deixa isso pra depois.”

“Alimentos”, eu quase ri. “Vamos morrer dentro de alguns minutos. E você quer guardar alguma coisa pra depois?”

“Nós vamos sair dessa”, ele respondeu. “Tenho fé que sim.”

Victor nada dizia. Talvez estivesse contente com essa afirmação, até confiante, quem sabe. Eu não acreditava como eles. Não tinha fé como eles. Chegava a pensar que nós mesmos nos conduzimos cegamente a tudo que nos acontece. Que no fundo não morremos por uma causa. Apenas atravessamos o tempo, com nossas escolhas. Nem pela pátria, nem por um amor. Trata-se, como sempre penso, de uma questão de tempo. Morremos porque a natureza nos quer de volta.

“Para de andar de um lado pra outro, já disse!”

Voltei ao meu canto. A aviação inimiga estava a caminho, disso todos nós sabíamos. Ela não recuaria e não tinha nenhuma instrução de permitir que nos rendêssemos. A ordem era destruir. Éramos nós, o alvo: fácil, conhecido, já identificado. Não poderia ser pior. Não mais que uma questão de tempo. O que serviria a alterar o rumo dos próximos acontecimentos? O fim imediato e surpreendente da guerra? A chegada milagrosa de uma força-tarefa de reforço? Um veículo que nos resgatasse, com uma ação extremamente rápida? Nada disso parecia possível.

Levantei-me outra vez, fui até a máquina. Passei a mão, os dedos, por sua lateral metálica, como se a acariciasse. Victor me olhava sem mover um músculo.

“Isso ainda funciona, Vic?”

“Claro que sim”, disse ele sem alteração na voz, sem estranhar a pergunta.

Victor sabia manejar a máquina e pedia que eu me tranquilizasse. Como? Tranquilizar-me? Eles chegarão a qualquer momento, com uma esquadrilha de caças de última geração, equipados com recursos que nem conhecemos. Victor acha que derrubará algum deles, um que seja, com essa geringonça antiquada? Isso, a que chamávamos máquina, não passava de um minicanhão de artilharia antiaérea usado no último conflito, a Quinta Grande Guerra Continental. Nem se fabricavam mais algumas de suas peças, como a escala multimétrica ascendente, as grapas paralelas ou os fiéis de bronze. Até sua lâmina de baixo porte era obsoleta. O governo não havia atualizado as armas, porque ninguém acreditava que pudesse ocorrer um novo conflito. Sempre pensamos que um dia o mundo vai ter paz.

Eu ainda examinava nossa melhor arma quando ouvi um murmúrio contínuo, a um tempo suave e vibrante. São eles, pensei. Não quis dizer em voz alta. Meus companheiros também ouviam, claro. Para nossa surpresa, um dos caças aproximou-se da janela, deteve-se no ar, flutuando diante de nós, como um helicóptero.

“Fran, corre até aqui!”

Franco juntou-se a nós: estávamos todos muito espantados com aquilo.

“Eu não disse que eles tinham recursos que nós nem conhecíamos? Olha isso!”

O piloto, fisionomia irreconhecível, fitava-nos de onde estava, a alguns metros de nós, bem à nossa frente. Podíamos ver sua viseira escura, seu capacete fulgurante. Victor, gestos muito rápidos, apossou-se da máquina, braços enérgicos, acionou de pronto um dos gatilhos, e nada aconteceu. Fixou em frações de segundo um cabo lateral que parecia ter se soltado, tentou novamente. A máquina não disparava.

“Vai, Vic, acaba logo com isso! Rápido! Ele está se posicionando!”

“Não posso”, grunhiu Victor. “Essa porra dessa nossa máquina não é mais nada!”

O caça, de aerodinâmica precisa e porte magnífico, girava lentamente sobre si mesmo, em pleno ar, mesmo sendo muito pesado e revestido de metriceno sólido. Eu não entendia como isso era possível, que tipo de tecnologia eles haviam criado, enfim, não podia pensar muito naquele momento, que tão diretamente nos ameaçava. O piloto sem rosto posicionou sua aeronave de combate. Apontou, em nossa direção, os dois lançadores de mísseis. Por um instante, divisei a extremidade das ogivas robustas, quase cintilando sob a pouca luz. Só uma questão de tempo, bem pouco tempo agora: faltava apenas, por parte do inimigo, o toque em um botão, o gesto mínimo que nos aniquilasse a todos.

Não partiu dele o ataque esperado. Não o que devastou ferozmente tudo o que eu via, toda a realidade ao meu redor. A esquadrilha continuava passando acima dos telhados, roncando cada vez mais alto, como se um número muito grande de aeronaves houvesse sido enviado só para nos render, o que era absurdo, éramos apenas três, com uma máquina fora de linha e pistolas portáteis obsoletas. Um estrondo rápido e ensurdecedor. Um sibilar mínimo, como se algo faiscasse em algum lugar bem perto de nós. Vibrações surdas mas ruidosas, como trovões devastadores. Trovões. Clarão de relâmpagos. A chuva despencou quase toda de uma só vez.

Inconsistência dos retratos – Guia de leitura

O capitão na corte dos cadáveres – anterior

A onda dentro de um vidro – posterior

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Imagem: Hans Hofmann. Sem título. 1949.

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