Office in a Small City por Edward Hopper

Chancelaria e viagem

Sombras do real, pois tudo passa enquanto é real.
Perdi o menino para aquela casa, mas ouço que o chamam pelo nome.
Variações sobre um dia translúcido.

“Estes documentos não valem mais”, disse a funcionária de olhos claros.

“Como? São certidões, registros…”

“Não valem mais nada”, reiterou.

Aguardasse na sala ao lado, iria submeter meu caso ao supervisor. Arrastei os pés em direção à porta translúcida, a voz da funcionária agora vinha de trás.

“Muito bem. Pode retornar ao seu quarto”, julguei ter ouvido.

De fato, era improvável. Eu tinha sono, estava doente. Reclinei a cabeça no longo sofá cor de ferrugem, relaxei o corpo, enfraquecido pelos medicamentos. De onde estava, podia ver a cidade aberta, pela larga janela de vidro, um vasto cartão urbano. Mas fechava os olhos, imergia num abismo de sensações letárgicas, tornava-os à luz, dava com a ampla janela, a cidade onde algo (uma casa? uma árvore? uma sombra?) parecia haver-se alterado. Olhos fechados, senti reencontrar trechos de uma sonata de Haydn, maior do que qualquer cidade: uma vizinha a executava ao piano, eu a sonhava a música de minha infância. Houve um momento de névoa e impotência. Fundo de silêncio. Depois, foi como se a sala deflagrasse um movimento, as paredes e o prédio vibrando surdamente, numa sugestão de comboio. Uma viagem (que viagem?) começava ali e me conduzia em seu bojo.

Não era meu nome. Outra funcionária esperava à porta, seu chamado despertara-me de eu estar sozinho. Pois não estava: um homem mais velho ergueu-se do outro canto da sala, seguiu essa moça, e os dois desapareceram pela porta translúcida. Levantei-me também, andei pela sala, não podia ficar ali cochilando, deixar-me vencer. Agora sim, estava sozinho. Não precisava disfarçar muito. Detive-me frente à janela, frente à cidade. O que, afinal, havia mudado?

Não encontrei, na repartição, a recepcionista que me havia atendido. Outros funcionários serviam-se de objetos obsoletos, faltando-me atinar com o que subitamente me incomodava em suas roupas, cortes de cabelo, adereços. Algo com o balcão. Móveis. A cor das paredes. As drogas afetavam-me o cérebro, tolhiam-me a certeza de estar em vigília, consciente e atento, punham-me a questionar de maneira nebulosa a certa realidade dos ambientes, dos objetos, em meio a situações e pessoas absolutamente corriqueiras. Tais efeitos pareciam ter atingido seu pico nesse dia ameno, sem sol, propício ao mais enfadonho declinar das horas.

Movido por uma estranha necessidade, por um impulso crescente, desci à rua disposto a despertar, reagir ao que me prendia: o sofá cor de ferrugem. Por toda parte, seguiu-me a mesma incômoda impressão que passava a Chancelaria, entre funcionários e paredes: fachadas, esquinas, automóveis. Até o ar que inalava parecia outro, as malditas drogas!

No balcão do Café Central, reconheci um corretor amigo de meu pai. Rindo com outros, falando em negócios, gesticulando ostensivamente, antes de tornar a sair, com seu passo ansioso, sua valise, sua parcela de busca. Da última vez que o vira, eu aprendera que o infarto não modificava o rosto de um homem, apenas interrompia uma ilusão em curso, uma engrenagem de obrigações e um dínamo, como uma correia se parte. E ele parecia dormir tranquilo, em seu esquife.

Atordoado, corri de volta à Chancelaria. Subi as escadas, tentei agarrar a funcionária pelas mangas.

“Onde estão minhas certidões? Devolvam as minhas certidões!”

“O quê?”

“Onde está a moça que me atendeu?”

O balcão era outro. Todos ali estranhavam-me, outros.

“Depressa, minhas certidões! Quero ir embora daqui!”

Pediram que me acalmasse. Copo d’água. A atendente aconselhou-me um pouco de paciência, essas coisas costumavam levar tempo. Outra vez a porta translúcida, a sala de espera, agora frequentada por pessoas tristes. Sentei-me entre elas, no sofá azul-claro, envergonhado de meus repentes nervosos, o que as drogas só alimentavam. Se ainda me lembro, nenhum daqueles funcionários estava ali quando cheguei. Também não reencontrei os que vira ao chegar. Todos se revezaram naqueles poucos minutos, aquela meia hora em que… Aquela hora em que… Quanto tempo? Que ruas, que cidade? Fechei os olhos, revi tráfego e letreiros, o homem com quem confundira o falecido amigo de meu pai.

Ainda faltava algo. Eu suspeitava que as drogas não eram a única fonte de distorções. Ia outra vez pela cidade, e não me lembrava de haver deixado a enfadonha Chancelaria. O grande relógio da praça contava a metade de uma laranja: outra manhã condenada a cair de todo. Mas seu calendário mostrava-se avariado. Revi, quase com alegria, a óptica onde muitas vezes, durante minha triste adolescência, costumava entrar, sofrendo muito pela timidez, para pedir, por favor, que me ajustassem os óculos, que me machucavam o nariz, as orelhas, o rosto.

Distraído pelo passeio, quase não reagi a estar invadindo as proximidades do endereço cuja nitidez delineava-se rapidamente ante meus olhos. Uma esquina. Uma casa. A moeda cintilando na calçada irregular. Eu, menino, havia certa vez detectado um níquel como aquele: atraído por sua condição de estrela, eu o apanhara do chão, correra de volta ao portão de casa, evitando o estranho que se detinha a poucos passos dali e que me havia fixado olhos rápidos de espanto, olhos que não esquecerei. A minúscula moeda retinha-me a atenção, o esgazear-se de meus pensamentos, quando um menino a apanhou, fixou-me rápidos olhos de espanto e correu de volta ao portão de sua casa. Marcaram-me seus olhos de níquel e estrela. Senti uma brisa e aromas antigos. Guisados no inverno, o limoeiro sob a chuva. Folhas, árvores. Então, como se erigisse no ar colunas e arabescos, subiu da casa vizinha e atingiu-me, como a pedra espedaça uma lâmina, o piano inconcebível, um fluir de acordes precisamente belos. Meus lábios se soltaram. Meus olhos moveram-se num súbito mas leve tremor. Nitidez de sinos, orvalho: a sonata de Haydn.

Eu a ouvia como sentindo o cheiro de alguma coisa. Meus sentidos confundiam-se. Sensações de sono. Vigília, lapsos de luz. Sombras do real, pois tudo passa enquanto é real. Sons mínimos e menos mínimos. Luzes, simetricamente. Perdi o menino para aquela casa, mas ouço que o chamam pelo nome. Duas vezes. E quantos nomes tive: apelidos de criança, de escola, de boêmia… Meu sobrenome predominou em determinadas fases. Mas tudo isso era eu? Que outro nome me faria outro? Nenhum. Ainda assim, enternecia-me, e quase respondia aos chamados, à voz da casa. Mais uma vez. De dentro. Do abismo. Do fundo da infância.

O arquiteto está nascendo. Só mais tarde associa seu apego à precisão com os fios tênues da pequena aranha, cintilando ao sol das tardes esmaecidas que, aos poucos, envolve sua mãe e a máquina em que ela costura, os botões e outros tesouros esmaltados que o atraem. O som ritmado desse engenho. A voz murmurando o que seja Joseph Haydn e sua sonata de lâmpadas. A companhia dessa mulher.

Fundação, alicerces. É preciso protegê-los das infiltrações. O homem que chega e se acomoda na poltrona costuma trabalhar dia após dia, ignorando que já está extinto. Como pode não saber disso, se a memória e o rastro humanos provam que todos foram (são e serão) derrotados?

Por que muros de pedra com ornamentos, se não se pode deter a hera e a história? A avó o ensina a reconhecer as horas no velho quadrante: seis, sete… Minutos. Horas. Fragmentos de uma gigantesca engrenagem que tudo tornará ao antigo silêncio, à calma das coisas que apenas são e talvez não desejassem ser despertadas. Ouve do avô as histórias, as anedotas, as mentiras encantadoras, cristal de um cristal maior que também não é seu, esquadrinha as ilustrações dos livros, desde os fac-símiles adornados com arabescos e volutas. Ainda não lhe é dado saber, como, mais tarde, em uma visão fulgurante e desesperadora, que tudo terá sido em vão.

Colunas devem sustentar o teto, mas quem sabe qual será seu peso? O menino acorda chorando, corre à cama dos pais. A mãe lhe prometera noite de bons sonhos, entre mansas carícias. Os pesadelos a ignoram. Torna a dormir e a despertar. Olhos inchados. Por que não torna a dormir, querido? Não quero mais sonhar.

Ali estão os operários, os pedreiros. Antes de adormecer, imagina, como querem os pais e os amigos, ser alguém, no futuro. Sonha que se sepulta na noite de lua, nos fundos da casa, asfixia-se sob a terra e livra-se do mundo. Mudam-se. Bairro, cidade. Evoluem os estudos, surgem oportunidades. O sonho se repete. Toda casa é um pouco sua sepultura.

Contrariando o projeto elétrico original, o prédio comporta corrente polifásica. As luzes da cidade emergem contra cada noite. Nos dormitórios, de odores característicos, à frente dos crimes e segredos dos casais, crianças nutrem-se de sono e silêncio, sempre a deflagrar outra geração, cada uma delas morta a seu tempo. Uma mulher encera a varanda. Um homem acena a um conhecido. Tudo o que praticam, entre um dia e outro, entre o ócio e o ofício, os conduz, mesmo que o saibam, ao plano do mais amplo esquecimento.

Uma criança inspira sonhos, futuro. De nuvens à deriva, ramos inclinados, róseos e algodão, o menino na relva faz seu azul imensurável. No presente, nada eu via desse menino, que planos e esperanças. O presente, apenas eu – não, mas não o mesmo. Sem heróis. Sem grandes viagens. Pior: sem azuis. Oculto-me furtivamente entre os pilares do parque e surpreendo-me outra vez sobre a sela do cavalo predileto, meus pais acenando a meu sorriso toda vez que o giro do carrossel os devolve a meu encontro. Agora, cavalgo e giro. Não só meu pequeno mundo, também minha vida, uma casa de pedra. Agora, eu os revejo e ainda aceno. Quero crer que fizeram o possível.

Não os ritos, os eventos. Um aroma, um objeto. Agonia de não termos sido senão o que fomos. Uma palavra pode deflagrar a viagem que sirva a cada um. Atravessar de volta o plasma feito líquido, o plástico ou vidro translúcido, como voltaram a mim a moeda e a sonata. Eu já acreditava que, em meio às cascas e ao entulho cotidiano, podiam surgir pequenos tesouros. Custava tempo. Mas vinham. Pareciam esgotados. E davam-se aos olhos. Outras moedas fizeram de mim um colecionador secreto: a poesia, a pintura. A música ou uma mulher. Mesmo aquela que hoje (hoje?) não passasse de outra incômoda lembrança, mas que um dia houvesse significado o amor. E eu, que era dado a aventuras e lances arrojados, entrevia agora a vertigem de uma aventura maior, sem inimigos, sem metas, quase um voo. Um vento novo. Em vias de volatilizar-se. Voltei inúmeras vezes, à repartição. Inúmeras vezes saí às ruas. Era tudo meu.

Meus contemporâneos movimentam-se a duzentos anos da música de Haydn. Estamos duzentos anos atrás de outros duzentos anos. Sempre em alguma parte, algum ponto do que não se mede, do que nada é e surpreende. E assim como os homens da ciência desvendam fenômenos inicialmente indecifráveis, assistimos ao decurso dos conflitos, à morte e à tragédia, esperando secretamente que um dia um cidadão de gênio traga à luz o mecanismo dessas sombras, despertando-o talvez com uma palavra, um nome. Sinto a lassidão outra vez. Valerá a pena ter sido um desses cientistas? Sou um cidadão sob as sombras.

Se retrocedo às noites de Cristo, encontro-o com seu grupo de seguidores e os convenço a partir, evitando assim a prisão e o martírio, vejo uma multidão de papas, pastores e outros parasitas implorando-me, por amor a Deus, que não interfira na crucificação. Brinco com outras ideias, tudo não passa de reação, sistema nervoso alterado. Não me encontro na máquina de Wells. O que vejo, antes julgo ver, só a mim cabe ver e, como minha própria vida, não me antecede nem ultrapassa.

Nem é outro o hospital ancorado na mesma quadra, muros alternando-se entre grades de ferro e gramados abertos. Percorro com os olhos a ala da maternidade, onde a vida me trouxe à vida. Sei que a chuva e o verão intenso impelem o prédio através do tempo. Sei também que a saída dos fundos comporta o necrotério e, à parte as experiências que nos enriquecem ou nos iludem, o que somos não mais que oscila entre o entrar e o sair. Sim, eis o limite. Tudo passa por nós. Água e alimento, trajes que vestimos e despimos em meio a milhões de pessoas que perseguem grandes objetivos, cada uma delas a composição frágil e transitória, célula entre células, de um tecido quase abstrato, mas cuja trama sustenta e permite a evolução da consciência. Outros que também são nós, que também sou eu, e aos quais não me resta senão dirigir-me em sonhos, aperfeiçoando os depoimentos em que confesso minha estranha relação com a vida e minha carta aos homens insensíveis. Temperatura, pressão. As drogas trazem-me vertigens.

Minha ideia de tempo dilatou-se, por isso me perdi. Não posso nem desejo acelerar ou retardar minhas realidades, como se puxasse um fio. Uma conversa inoportuna e um momento de sensualidade caem a um mesmo plano, na medida em que tudo se desgasta e se solta de nós. Os dias suspensos na eternidade aparente, apenas vislumbrada. O pintor de paredes transportando os edifícios a outra era – um agente microscópico, infeccioso, a modificar fachadas, sua cota de edificação e desmantelamento na marcha que conduz nossa espécie ao futuro e a novos panoramas urbanos. Humanos, eu disse? Que tenho eu com isso? Busco o relógio da praça, não o encontro. Não terá sido montado ainda? Essa gente será o passado? O presente? O prédio da Chancelaria. Sinto-me face ao dia que não terminará, quem sabe, embora eu não almeje senão realizar-me seja como for, conquistar o tempo necessário à concretização de meus abstratos, seja este dia ou esta página, agora que tão intensamente atravesso as tardes de perdidas luminosidades, tão parecidas com a minha infância, de mesmo calor e mesmo incômodo, até finalmente intuir que um dos objetivos da vida é, magicamente, estar aqui. Medicamento sob prescrição médica: que diferença faz? Esbarro em tantos semelhantes sadios, mal os reconheço. E sei que o mundo é feito principalmente dos que não puderam realizar-se.

As pessoas na sala de espera não sabem que viajam, pois não há viagem maior do que estarmos vivos. Não têm noção de nossa velocidade, mesmo à espera. Meus pais acenam do fundo da sala, como no carrossel. Tudo gira ao redor e me confunde. Em meio ao torvelinho que me cerca, compreendo por fim o que tenho de fazer: destruir a porta translúcida! Essa que limita a sala e me transporta, toda vez que retorno. Meu corpo avança e atira-se ao centro do vidro, que se rompe com estrépito, os cacos cortantes fragmentando-se como se chovessem sobre mim ou me atacassem, cubro a cabeça com os braços, caído no chão, corredor e escadas repetindo o ruído e o estrondo certamente ouvido em todo o edifício. Sou eu quem grita? Ou o estrondo ecoa ainda por tudo o que sou? Lentamente o silêncio.

Lentamente. O silêncio. A uma estranha distância, muito ao fundo de qualquer coisa, os sinos e o orvalho, o inconcebível piano de Haydn. A ampla janela, a cidade onde algo (uma casa? uma árvore? uma sombra?) parece haver-se alterado. A funcionária de olhos claros abre a porta translúcida, é o meu nome. Ergo-me do sofá cor de ferrugem. Sim, minhas certidões. Claro, como pude me perder? Então, devo voltar outro dia? Quando? Seu colega, no outro extremo:

“Afinal, que dia é hoje?”

“Ah, não me amole”, ela responde. “Você sabe muito bem.”

Lisette Maris em seu endereço de inverno – Guia de leitura

12. Vista do mirante (Sonho 772) – próximo

10. Tarde e jogos com Ester – anterior

Leia mais histórias no limite do real: Sonho 1081. A carruagem veloz

Imagem: Michael Alford. Liverpool Street.

por

Publicado em

Categorias:

,

Comentários

Comentar