Office in a Small City por Edward Hopper

Ácaros e outros micro-organismos

Quem o visse quase comovido um minuto atrás não poderia crer que fosse a mesma pessoa.
Assim como quem o visse menino, arrastando seu caminhãozinho de madeira.

Por bem pouco, o serviço não escapava ao meu controle. Algumas interferências ocasionais e detalhes de meu próprio esquecimento faziam de minha mesa um espaço confuso, de documentos e relatórios ligando-se como por fios invisíveis e… – mas olhe só o que ando dizendo sobre o serviço, que os poetas me perdoem. De fato, tudo se soma à mesma confusão. Sim, eu precisava de ajuda. Mas não podia pedir a alguém ali. Tinha vontade de entregar os pontos, talvez encerrando minha estada na Leôncio & Barradas Advocacia Ltda. com um grito lancinante – um grito tão pavoroso que todos os colegas o ouviriam à noite enquanto vivessem. Mas algum chato sempre deixava um papel a mais sobre minha mesa, um relatório a mais, um dossiê a mais, um parecer a mais, uma estatística a mais… Só eu não podia mais.

Agora, os trabalhos físicos me atraíam. Eu me prontificava gentilmente a transportar pastas e fichários para os colegas, a carregar um ou outro pacote de documentos ao arquivo geral, subir escadas, mudar armários e estantes de lugar, não, ninguém me reconhecia. No grande e mofado salão sem janelas que servia ao arquivo geral, onde o ar quase se fazia plasma em consequência da proliferação de ácaros, encontrei outros dois escravos, aparentemente sem muito que fazer, talvez querendo o mesmo que eu, afinal é o inconsciente, a escuridão o que nos guia, por isso é que sempre tropeçamos. Como se lêssemos, uns nos gestos dos outros, a nossa falta de pressa em deixar um ambiente tão insalubre, ficamos trocando comentários insípidos, sem propósito, mas que no fundo nos punham muito felizes. Um desses colegas tinha acabado de lembrar algo particularmente muito irônico sobre determinado cliente, em seguida associando-o a uma gíria e a um animal específicos. Estávamos rindo solto, com grande deboche, quando entrou o Heitor Expedito, assim nos surpreendendo em um flagrante de felicidade e harmonia, e como nos fotografando com os olhos. Porém, no instante seguinte, tornou-se pensativo, num daqueles raros momentos em que ele se aconselhava consigo mesmo. Arrastou uns passos ao redor, silencioso como se caminhasse sobre a superfície da Lua, perlustrando as pesadas prateleiras e as infinitas estantes do arquivo geral, como se há muitos séculos não entrasse ali, ele que não era nem superintendente, nem supervisor – quando muito, pouco mais que um de nós –, moveu a cabeça quase comovido e disse:

“Foi assim que eu comecei.”

O quê?! Assim como?, quase perguntamos ao mesmo tempo, como fazem os personagens gêmeos dos quadrinhos. Mas, no fim, não perguntamos nada. Ele pretendia nos dizer que fora ali, bem ali, naquele espaço poeirento, superpovoado de alegres micro-organismos, que teria exercido suas primeiras funções, provavelmente como o rapazinho faz-tudo, responsável pelos arquivos e por outras mil picuinhas aparentemente indispensáveis. Já quase participávamos de sua crise de ternura, quando ele próprio se interrompeu, com um pigarro quase inaudível, com isso quebrando o encanto de tão vivas reminiscências e voltando-se para os papéis que um dos colegas tinha em mãos.

“Esperem aí… Mas que relatórios são esses?”, perguntou, com as palmas das mãos erguidas à altura do peito, como muitas vezes fazia.

Que todos nós andávamos com relatórios e petições e memorandos e laudos e atestados e certidões e procurações e anexos e certificados sempre à mão, por circunstâncias do trabalho ou porque pretendêssemos disfarçar a ausência de tais circunstâncias.

“São referentes às notas de readmissão dos conteúdos provisórios de ações pendentes, como solicitado pelo último parecer bimestral do diretor”, explicou o colega que os portava em mãos, circunstancialmente.

“Hum…”, fez Heitor Expedito, aparentemente compreendendo tudo.

A maior parte de tudo o que esse colega acabava de dizer fora habilmente inventada naqueles mesmos instantes, e era mais do que claro a nós todos que o Heitor Expedito não estava assimilando sequer a metade da explanação, pois demorava a decidir-se, embora nada houvesse para ser decidido.

“E aonde vão com isso?”

“Ao arquivo secundário de pendências, já que as liquidações efetuadas foram transferidas para a ordem geral de deferimentos em curso.”

Heitor Expedito pensou um pouco e disse: “Ah, sim. Muito bem. Levem esses relatórios ao arquivo secundário então, e não vão me fazer confusão, hein? Vamos lá, vamos com isso.”.

Virou-se com agilidade, de cabeça baixa, como procurando por qualquer coisa em uma das prateleiras inferiores. Fingia naturalidade, mas parecia contente com o resultado: um flagrante casual que fazia dele um importante observador e o desfecho amigável, sob a regência de sua autoridade. Quem o visse quase comovido, um minuto atrás, não poderia crer que fosse a mesma pessoa, assim como quem o visse menino, décadas atrás, na calçada de sua casa, arrastando por uma cordinha seu caminhãozinho de madeira. Quem diria, hein, tio? Que lindo ele era.

35. Paradoxo do registro e do esquecimento – sequência

33. Camelos, dromedários e o melhor de um mundo pior – anterior

Guia de leitura | Sobre o livro

Imagem: Pintura rupestre pré-histórica. Patagônia, Argentina. Autor desconhecido.

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Comentários

Uma resposta para “Ácaros e outros micro-organismos”

  1. Avatar de saura

    lendo-o…
    com admiração
    saura

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