Office in a Small City por Edward Hopper

Onde não havia palavras

Não me lembrava que rei ou general antigo havia atravessado que fronteira.
Mas queria muito saber por que tudo aquilo havia desaparecido.

Nada mais intencional terá melhor resultado em nossos dias, aliás, bem pouco pôde ser feito desde que Machado, nosso feiticeiro-mor, e desde que Augusto, cientista das sombras, e desde que Graciliano, de pedras cortantes, e Guimarães, o jagunço neossertanejo, e Rachel, flor de areias e semiáridos, e Clarice, olhos obtusos mas certeiros, e Lygia, dama de artes mágicas, e Dalton, vampiro doador de sangue, e desde que Bandeira e Drummond, irmãos de sangue e de ternuras, e João Cabral, um mineral de silêncio, e Osman, o arquiteto da última espiral, bem pouco pôde ser feito, acima eu dizia, muito menos por mim, pois desde que a minha Sylvia, estrela de outra constelação, que eu não podia amar senão pela poesia, mostrara-me como era simples desistir, soprara-me o contrário, fazendo ver que eu não podia concordar jamais com sua morte, apenas porque desejava que ela vivesse, lembrando em tempo que um parágrafo como este, só por estar tratando, como trata, de tais referências, declina de toda demanda estética, não exigindo nenhuma continuidade, muito menos coerência ou clareza, tanto que vai deixando por ser este o desfecho, incomode-se quem assim o preferir.

O que, no fim de inúmeras contas, de fato me despertava a atenção, embora eu me houvesse demorado tanto em discerni-lo, eram perguntas que abarcavam e transcendiam o que primeiro se mostrasse aos olhos. Assim, eu não mais considerava tão relevantes certas terminologias e aprofundamentos, por exemplo, não fazia questão de reter na memória os elementos da tabela periódica, a classificação dos seres vivos, meu número de matrícula, as características próprias de cada planeta, o funcionamento do aparelho fonador ou a razão pela qual alguns países mudavam de nome. Não me lembrava que rei ou general antigo havia atravessado que fronteira, mas queria muito saber por que tudo aquilo havia desaparecido, após tantas desgraças. Não mais me interessava aprender sobre o fascinante mecanismo dos relógios, mas saber para onde o tempo nos estaria levando a cada segundo. Não me importava ter dúvidas quanto à anatomia humana: o que eu ansiava por adivinhar era o motivo por que todas as minhas células teriam de se desfazer um dia e por que os átomos que uma vez se juntaram para formá-las teriam de se dispersar fatalmente.

A arte literária, como tais perguntas e tal como eu a vejo, também participa de outra esfera de valores. A literatura tem outro tempo, como nossa mente. Não o que toma para terminar um livro; também algo diferente do tempo hábil das metas das empresas e mesmo dos objetivos das editoras, embora certas necessidades cíclicas sempre se repitam – daí porque são cíclicas. Nesse universo à parte, fazia-se indiferente o título que eu dava às minhas histórias, pois eu era arrastado para dentro delas e de alguma forma as vivia, como cada um a sua, e todas se equivalem, tendo sido uma só ou nenhuma. Na verdade, eu as contava para contar alguma outra coisa. Para que se pudesse escavar alguma outra história por trás delas, a história que as unisse a todas em segredo. De onde cada palavra provinha. Onde não havia palavras.

No mundo real, com o que eu deparava era a indiferença dos meios literários, dos meios editoriais, se bem que não fosse eu o mais obstinado realizador de textos das proximidades. Mas, por força de estar surdamente avaliando certos resultados, não podia deixar de perguntar-me por que seriam meus textos tão piores que os de Cassiano C. Castilho, que era aclamado pelo público e bem tolerado pela crítica. Por que seria ele tão melhor do que eu? É preciso confessar uma certa inveja transcorrendo ao longo dessas frases, mas há também uma busca por algum esclarecimento. Pois não havia dito, páginas atrás, que o sucesso e o fracasso eram critérios comerciais, sem relação com a obra de arte? Quem me pede que escreva? Se disso dependem a compra e a venda do objeto-texto, por que então não se vende ou não se compra outra coisa qualquer, em vez disso? Quando penso em deter-me definitivamente, isto significando nunca mais escrever, sei que, de alguma maneira, algo continuará em mim, mesmo tendo desaparecido aos olhos alheios. Continuará em mim secretamente, e não que eu não o queira confessar, ainda que não possa jamais ser vendido ou comprado. Se tudo o que fiz até agora falhou, é como se nunca eu houvesse feito coisa alguma, restando só a lógica do presente, que é tão imperativa quanto qualquer lei da Química ou da Física, em suma, qualquer outra regra da natureza. E estará fechada para sempre a senda do pequeno bosque, a brecha que eu supunha abrir-me os reinos dos contos de fadas, a geografia dos mundos mágicos, dos quais me orgulhava ser, como um cavaleiro de aventuras parte e retorna, o representante entre o mais das gentes, a pena em punho, incumbido do registro, responsável pela continuidade, servo da palavra contada, após tê-los a todos vivido de maneira singular e ousada, clandestinamente ousada, eu silenciosamente comovido, porém desejando estender-me para além de minha solidão, para além de qualquer ofício e ordem de calendário, desejando o resgate do que um dia acabaria por se perder novamente. Desejando escrever.

49. A primeira história mágica interrompida – sequência

47. Mal dessas idades… – anterior

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Imagem: Ilya Repin. Ponte em Abramtsevo. 1880.

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