Office in a Small City por Edward Hopper

Raimundo Terra planeja seu suicídio

Atores, atrizes? Não passam de produtos, quem não sabe disso? Usados, como todos.
Parecem deuses, mas têm intestinos.
Selada a última carta, desce às ruas. O apartamento, trancado pela última vez. Última, suspira. Tem o absurdo cuidado de levar o guarda-chuva, que uma garoa alternada com chuvisqueiros insiste sobre a cidade por esses dias. Próximo aos edifícios, o céu baixo e cinzento como o de suas memórias mais tristes, como o que vira o menino em companhia de seu pai, que naquele dia distante lhe dissera: “De um céu assim, nada podemos esperar.”.

Protege os envelopes como se neles seguissem documentos valiosos. Nas cartas, despede-se asperamente dos poucos amigos, dos familiares, e aproveita para devassá-los com imprecações, acusando-os de hipocrisia e egoísmo dissimulado, como se esses fossem graves defeitos, não características humanas comuns. Deixa-lhes instruções sistemáticas de como proceder na divisão de seus bens terrenos, literalmente irrisórios, lembrando que já destruiu os álbuns de fotografias e toda a correspondência acumulada ao longo dos anos. Confessa, aos destinatários, baixezas e obscenidades inomináveis, especialmente para incomodá-los, com a franqueza irrefreável que a morte lhe inspira. Pede também que enterrem seu corpo, se algo restar dele, onde bem entenderem, ah: e que não rezem em seu nome, embora concorde docilmente que isso não fará nenhuma diferença.

No caminho, distribui o dinheiro retirado do banco aos indigentes que esmolam nas escadarias do teatro e das grandes igrejas. Decide praticar sua última má ação, repartindo-o entre os mais infelizes, proporcionando-lhes assim a desgraça de se arrastarem por mais tempo. Os cegos não podem avaliar a sordidez dessa esmola, e não se surpreendem com seu atrevimento. Mas os que veem arregalam o rosto espantado, ao constatar os matizes preciosos de uma efígie da República caindo do cidadão obscuro, que não espera pelos agradecimentos. Um velho sem pernas grita-lhe um deus-te-abençoe.

Cartazes do cinema. Fita de grande sucesso, histeria da temporada. Conhece o ator principal, que não é ator, apenas repete frases memorizadas sem nenhum escrúpulo, e se deixa filmar apesar disso. Atores, atrizes? Não passam de produtos, quem não sabe disso? Usados, como todos. Parecem deuses, mas têm intestinos. E apesar disso, apesar de tudo, também lhes cabe a morte. São vermes. E têm de exercitar-se, bronzear-se, manter por mais tempo suas boas aparências, para saírem estampados em mais cartazes no ano seguinte. Por mais tempo. Um pouco mais de tempo. Deuses por mais tempo. Vermes para sempre.

Dias atrás, um colega apalpara-lhe a barriga.

“Você anda uma geleia, hein, Terra? Por que não faz um pouco de ginástica?”

“Porque vou morrer.”

O outro pareceu não ouvir o que seria uma brincadeira.

“Mas, olha, os médicos dizem que isso faz mal.”

“Não diga.”

Enfia os envelopes, um a um, no vão da caixa de correio. Alguém colou ali um adesivo:

ELE TE AMA

ELE VOLTARÁ

“Muito bem. Que volte. Quero estar bem morto quando uma palhaçada dessas acontecer.”

Enquanto isso, as cartas chegarão todas no dia seguinte, e, ao serem lidas, um morto as terá escrito. Raimundo Terra fica fascinado com essa ideia de sincronismo, o entrecruzar-se das ações, as cartas sendo classificadas no Correio Central, funcionários e máquinas seletoras trabalhando para que cheguem cada uma ao seu destino, por fim um carteiro arremessando o envelope, na manhã dos jardins. E ele, morto há várias horas. Enfia o último envelope no mesmo vão. Treme de felicidade. Cada carta ao seu destino. Cada um ao seu destino.

Ouve dos muitos semelhantes, com quem esbarra, palavras avulsas, fragmentos de frases, coisas que movem suas conversas e suas vidas, aos poucos sentindo que não as reconhece mais, as palavras, e transita feito um estrangeiro em uma língua, em uma realidade que não decodifica nem compreende. O universo ainda é o mesmo, pensa. Nós é que não cabemos mais nele.

Praça, estação do metrô, escada rolante para as plataformas. Fecha o guarda-chuva também pela última vez, último chuvisqueiro. Vai até a entrada do túnel, onde o trem ainda desliza com alguma velocidade. Um movimento, um impulso, um instante. Toda essa gente na plataforma, o cotidiano em sua inércia insípida, haveriam todos de assistir ao seu fim. Tivessem algo a contar uns aos outros, aos filhos, aos netos: uma vez eu vi um sujeito que… Vissem, e vissem também que a vida não é apenas pegar trens e ônibus e ganhar dinheiro e criar filhos, que não é tão enfadonha ou tão exata, que ainda há homens como ele, que ainda há um ser humano de verdade, disposto a mostrar-lhes a febre e a fúria, com o argumento de sua própria morte. Os gritos, o pânico, as mães tapando os olhos das crianças e, à noite, conversando com elas: o que você viu não era de verdade, filhinho. Não é o que a televisão ensina quando alguém vê a fome, a miséria ou a guerra? Telenovelas e apelos publicitários mostrando gente bonita e feliz, com isso reafirmando a todos: o que vocês pensaram ter visto, queridos, não era verdade.

Claridade dos faróis. Ruído do trem nas entranhas do túnel. Só o coração se acelera um pouco. Faróis na perspectiva dos trilhos, rumor crescente. O momento. Que mais? O momento.

De repente, põe-se a vociferar, brandindo seu guarda-chuva.

“Olhem, olhem todos! Isto é pelas guerras que vocês não veem! Por meus amigos desaparecidos, pela justiça que não se faz! Pela fome!”

Faróis e coração, o sangue cresce.

“Isto é pela falsa democracia que vocês aceitam! Pelo sexo que reprimem, pela religião que cultivam, pelos deuses que amam! Estão ouvindo?”

Suor frio. O ruído, o momento. Pessoas imóveis, assistindo a tudo.

“Pela mediocridade de todos os que vivem!”

Seus lábios se contorcem, retesam-se num sorriso mórbido, os olhos faíscam de ódio e horror. Trem mais próximo, vento do túnel, sangue fervendo-lhe pelo corpo, o instante do salto.

Aos olhos atentos dos curiosos, o objeto escuro, um abutre desajeitado e frágil, desaparece num relance, esmagando-se nos trilhos. Os outros o olham ainda uma vez, antes de entrarem nos vagões. Duas estudantes acham engraçado. Um homem grisalho balança a cabeça negativamente. Partem todos, deixando-o sozinho.

Raimundo sobe as escadas de volta, imaginando com uma careta o destino de suas cartas e, mais próxima de seus passos, a chuva fina que o molhará com indiferença até sua casa.

Imagem: Wassily Kandinsky. Sobre branco 2. 1923.

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