Office in a Small City por Edward Hopper

Dos males, o verão. Parte 1

Cordeiro, a salvação

O que de mais belo conheci na Terra, Nathanael, é minha fome.

 – André Gide, Os frutos da terra

1

Meu dinheiro acabou ontem. A cinco dias do salário. E o escritório não concede vales a quem quer que seja.

Convenci a dona da pensão a também esperar mais uns dias, já estando em falta com minha mensalidade, o que ela aceitou de cara amarrada, pouco escondendo sua irritação à minha presença. É natural. Mas quando é assim, tão logo lhe comunico tais moratórias, subo depressa ao meu quarto, a fim de não vê-la por um segundo mais. Inútil encará-la por mais tempo: ela tem olheiras desanimadoras e nariz borrachudo, e também isso lhe daria margem a pensar, responder-me, desconsiderar minha proposta. Felizmente ela precisa de algum tempo para pensar, e acaba não encontrando nada de muito esperto para me rebater. No fim, acabo lhe pagando tudo: só o que preciso é que tenha um pouco de paciência.

Durante essas breves moratórias, percebo suas indiretas até um tanto sutis (tenho de admitir uma certa sutileza nela) com que me lembra, a cada dia, da mensalidade em atraso. À noite, estando meu quarto trancado, põe-se a varrer o corredor do lado de fora e bate com a vassoura na base da porta, produzindo fortes pancadas. No começo, achei estranho que ela varresse a casa àquelas horas, e uma vez até abri a porta, pensando que quisesse mesmo entrar.

“O que é?”, perguntei-lhe com curiosidade.

Mas ela fingiu não ouvir e voltou-se à porta em frente, onde também deu umas boas pancadas – para disfarçar ou porque o pensionista vizinho talvez estivesse igualmente lhe devendo.

Com o tempo, compreendi que tais atitudes incomuns faziam parte de suas estratégias, assim como o café de dois dias que ela deixava num atraente garrafão térmico, bem à vista, sobre o aparador, e que tomei duas vezes por descuido, amaldiçoando-a em seguida e dirigindo-lhe pragas em voz baixa, enquanto saía para o trabalho.

Cuidei também de pendurar a conta no restaurante, o que fica mais perto de onde moro. Não é um bom restaurante, não no sentido mais nobre da palavra: trata-se de um refeitório encardido, no fundo de um bar, quatro mesinhas de madeira, onde costumo jantar, todas as noites. O dono dessa espelunca é um senhor robusto, mulato, cabelos grisalhos, ralos como uma vegetação rasteira, e bigode, naturalmente. Está quase sempre vestido com a camiseta de seu time, como se fizesse de propósito para tornar mais tedioso o ambiente. Mas não, não é de propósito: ele não se deprime com seu bar e, de resto, é um tipo imune ao tédio, desses que desafiam e invalidam preceitos sociológicos ou de qualquer outra ordem. A essa altura do mês, ele passa a olhar-me de soslaio, pois sabe que estou prestes a pendurar a conta por uma semana, no mínimo. Não é a primeira vez que faço isso. Ele me conhece, e sabe que comigo estará sempre sujeito a um desses adiamentos. Dessa vez, para minha desgraça, ele se antecipou e pegou-me de surpresa, declarando enfaticamente que não mais venderia fiado, que não podia mais, a situação estava difícil, o governo ia acabar de foder com o país, enfim, coisas que todos sabem, mas que para mim significavam um rotundo não.

Eu não poderia ficar cinco dias sem comer, por mais que me esforçasse. Também não dispunha do suficiente para mais uma refeição. E não conhecia outros restaurantes que pudessem esperar por meu salário, não conhecia outros proprietários.

À noite, fiquei andando de um lado para outro, em meu quarto, preocupado com isso, é claro. Nenhum banco me emprestaria dinheiro: não posso fazer saldo médio com o que ganho, nem tenho propriedades, como eles sempre exigem. Isso só funciona nos comerciais de TV, quando umas recepcionistas simpáticas nos convidam a todos (todos!) a tomar um cafezinho com o gerente e… Bem, não era esse o momento de ironizá-los. Eu estava em apuros. Mal conseguia consolar-me pensando nos lavradores, nos cortadores de cana ou nos favelados, como às vezes faço. Sei que há situações bem piores do que a minha, verdadeiramente intoleráveis. Mas não me conformo de estar trabalhando honestamente e mal conseguir sobreviver, o que talvez só em nosso país seja possível. Até quando vai ser isso?, eu me perguntava, arrancando os cabelos. Será que um dia vou parar num daqueles barracos da periferia? E o que posso fazer? Continuar trabalhando, apenas? Suportando tudo como um carneirinho, um cordeirinho que… Veio-me, com a velocidade do raio, a salvação: o Cordeiro! Isso mesmo, o Cordeiro. Esse meu colega de trabalho já me havia oferecido dinheiro uma vez, mas naquela ocasião eu podia pendurar o restaurante, e a inflação que o governo causava era bem menor que a de hoje. Ele empresta a juros, evidentemente.

“Se você precisar…”, dissera ele, com cara de cordeiro mesmo. Um santo.

Cordeiro, a salvação! Amanhã mesmo, amanhã mesmo! Eu vibrava, em estado de graça: Cordeiro, minha salvação! Corri à minha mesinha e anotei o nome dele num pedaço de papel – por hábito apenas, pois certamente não me esqueceria disso no dia seguinte.

Esse Cordeiro é um tipo precavido e sereno, se é que não se faz passar por isso. Falo assim porque sei que ele tem grande admiração por um de nossos supervisores e talvez tente imitá-lo: trata-se de um sujeito também sereno (ou que se faz passar por isso), responsável pelo arquivo de cadastros, funcionário competente, meia-idade, homem correto e pai de família, que fala pouco, por ser uma pessoa muito experiente. Isso é o que o Cordeiro admira, por incrível que pareça. Ele, o Cordeiro, tem um rosto assimétrico, de pele sanguínea, como se estivesse a um passo de incendiar-se, e sempre que sorri, quando sorri, mostra um sorriso levemente oblíquo. Eu sempre o achei feio, e por vezes me perguntava: como será ser ele o tempo todo? Tem uns trinta anos de idade, portanto há uns trinta anos ele é assim, como é. Sorri pouco, muito pouco, como também raramente demonstra qualquer outra manifestação de surpresa ou assombro, tudo isso em razão, como visto, de sua notável serenidade. Assim, mesmo se eu lhe conto que um terremoto acaba de devastar a metade da Ásia, ele se conserva tranquilo e dá de ombros, com um ligeiro sorriso torto, dizendo que isso faz parte do equilíbrio populacional. É sempre mais ou menos isso o que ele responde se lhe falo na miséria dos povos, nas epidemias, nas estatísticas de mortalidade infantil, no crescimento da prostituição… Uma calma, uma serenidade! Um santo.

“Se você precisar…”

A conspiração dos felizes

O verso extraordinário – sequência

Pós-escrito tardio (mas irresistível) – anterior

Imagem: Celia Gomez de Villavedon. Luz incisiva.

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