Office in a Small City por Edward Hopper

Dos males, o verão. Parte 2

O verso extraordinário

Os santos não eram santos. Mas sendo essa a imagem que guardamos deles, ou melhor, que nos guardaram cabeça adentro, o importante é que nos inspirem. Há ainda homens que não são canalhas. Esses talvez pertençam àquela seleta galeria de sábios, meia dúzia deles, por assim dizer, que a cada geração sustentam o universo. Mas veja, aliás, como já foi dito, não devemos considerar as exceções: o mundo é feito de gente vulgar, não de sábios, que estes não fariam guerras tanto quanto não cultivariam batatas ou não assariam pães, sendo a sua vocação pensar. E os sábios, como sabemos, são pessoas que talvez tenham atingido o seu absoluto, e por isso desistiram de compreender o mundo. Quanto ao Cordeiro, bem, isso me confundia. Ele parecia não ser claramente uma coisa nem outra. Certa vez, contei-lhe da inundação nos estados do Sul, algo sobre as crianças de uma creche, que haviam desaparecido nas águas. Ele respondeu o seguinte – com um ligeiríssimo sorriso torto:

“É… A natureza tem seus meios para controlar o crescimento desordenado da população.”

Meios. A natureza tem seus meios… Um verdadeiro sábio, em grau tão elevado e sublime que já não se deixa impressionar pelas atribulações mundanas. Irritado com seu estoicismo, nesse dia eu o agarrei pelo braço antes que se virasse, pois ele já ia se virando, como sempre faz, dando o assunto por encerrado com seu comentário conclusivo, e talvez eu tenha até exagerado em minha força sem me dar conta disso. Por acaso, ocorreu-me retrucar dessa vez, ocorreu-me dizer-lhe:

“Mas, olha, se você morasse lá, na cidade inundada, pensaria assim mesmo?”, perguntei sem soltá-lo. “Quero dizer: é isso mesmo o que você pensaria, com naturalidade, se estivesse lá e fosse um deles e…”

Ele me estranhou, chegando a mostrar-se, de certa maneira, desconfiado.

“O calor tem sido mesmo infernal. Ontem, por exemplo, foi um dia terrível. Os termômetros da torre indicavam…”

“Se você estivesse lá e fosse um deles…”, disse eu ainda, para que não fugisse do assunto assim, bem debaixo de meu nariz.

“Todos nós estamos sujeitos a isso”, ele disse.

“É, eu sei. Eu sei que sim”, insisti. “Mas se você estivesse no meio dessas estatísticas, acharia tudo tão natural, tudo tão certo? Eu digo, se amanhã esta cidade cair com um terremoto, você vai estar pensando em fazer parte da estatística de equilíbrio populacional, antes que uma viga lhe caia na cabeça? Aí é que está. Não é? Fácil falar desde que… O desemprego e o aumento dos…”

“Isso tudo é muito complexo”, ele me interrompeu, com a mesma admirável serenidade de sempre. E virou-se.

Complexo ou não, o certo é que ninguém aceitaria ser parte de tais estatísticas. A morte é sempre assistida, nunca vivida. Senão, não seria a morte. Raramente alguém se imagina a si mesmo arrastado por uma correnteza ou esmagado num terremoto – tão longe, na Ásia… O que vê é outro corpo, outra pessoa, e até admite um calafrio ao presenciar a morte alheia. Mas o calafrio vale a pena. A morte é a última coisa que nos ocorre, isto é, a nossa própria morte. A morte é um poço. A morte é um poço que… A morte é um poço, eu repetia em meu quarto, a morte é um poço. Bem nos ensinava o velho Nietzsche que uma estrela bailarina pode se originar do caos. Lindo, não? E não é que funciona mesmo? Pois aí está meu pensamento, cintilante e intenso, emergindo de minhas toscas preocupações mundanas. Fiquei entusiasmado com essa frase fortuita. Pareceu-me abrangente e bem a propósito, algo assim como uma máxima selecionada para um almanaque, numa dessas seções chamadas Gotas do saber (a morte é um poço), podia inclusive imaginá-la a um canto da página, com meu nome por baixo, ou melhor, a inicial de meu primeiro nome, meu sobrenome em seguida. Corri de volta ao papel sobre a mesinha e anotei: a morte é um poço.

Mais tarde, achei que não ficaria bem num almanaque. Melhor seria se eu tentasse escrever algo em torno dela, burilando a ideia, desenvolvendo a mensagem (e que mensagem, convenhamos!), um artigo ou ensaio sobre a morte. Ou sobre poços. Talvez um poema… Um poema! Seria o último verso. Sim, o último, enfatizando a profundidade de tais palavras. Tão simples e profundas palavras que eu me admirava de nenhum poeta haver pensado nelas. (Ora, mas como posso saber? Não li todos os poetas do mundo. Muito menos os de meu país.) O fato é que decidi escrever o tal poema, que eu não sabia ainda como iria ser, mas que terminaria com o único verso que eu já tinha pronto: a morte é um poço. Deve ser assim que os poetas fazem. Pronto o poema, ninguém se lembra muito bem do recheio, desde que um ou dois versos de efeito fiquem na cabeça de quem leu. O resto fica perdoado, no esquecimento. Aliás, seria, no caso, o meu único poema, um desses que entram para os livros didáticos, ficam em nossa mente desde os tempos de colégio e com o qual se fazem trocadilhos e até se mencionam em canções de rádio, de tão conhecidos. Por muito menos do que isso, deputados, senadores e oficiais do exército tornaram-se imortais – da Academia, bem entendido. Sim, vou escrevê-lo amanhã mesmo. Sem falta.

A conspiração dos felizes

Leia mais dessa história: Cordeiro, a salvação – anterior

A ameaça sombria de destinos possíveis – sequência

Imagem: Emmanuelle Vial. Partição (detalhe).

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