Office in a Small City por Edward Hopper

Dos males, o verão. Parte 4

Pior é não ser o fim

Além dos camelôs licenciados, há também verdadeiras legiões de ambulantes, em cada ponto do centro. São jovens e velhos, desempregados ou aposentados, homens e mulheres de meia-idade, lutando como podem para sobreviver sob o sol desta terra, contra o verão infeliz de nossas cidades. Ficam de pé, abordando os que passam, oferecendo toda sorte de quinquilharias (das quais dependem suas vidas): relógios quebradiços, óculos de sol, cordões de sapato, tesouras, carretéis, presilhas de plástico, livros esotéricos e até aranhas de borracha para pregar peças nos amigos. “Que boa peça estão nos pregando, hein, parceiro?” A estes também sinto vontade de me dirigir de repente, e não faço mais do que imaginar tais palavras. Que boa peça… E não é nada engraçada, refleti de mau humor. Essa teia em que fomos enredados é tão traiçoeira e viscosa que nem mesmo uma gigantesca aranha amazônica nos assustaria com seus fiozinhos frágeis e inofensivos.

No café próximo ao escritório, gastei meus últimos trocados. Um mulato anêmico atendeu-me com indiferença, enquanto seu colega, um gordinho de cabeça chata e cara de criança, cuidava da chapa fumegante.

“Pingado?”

“E pão com manteiga.”

Isso me sustentaria até a noite, caso não pudesse almoçar, pois não sabia ainda quanto tomaria emprestado do Cordeiro. Ruídos de xícaras e de pequenos talheres sobrepunham-se ao rumor de vozes humanas ao longo do balcão, não o bastante para que se deixassem de ouvir os lamentos nervosos de um inconformado, no outro extremo.

“Foi ontem, ontem mesmo. Ele chegou pra mim e falou que não precisava mais dos meus serviços. É, desse jeito, tá bom? Eu estava no serviço de rua, do outro lado da cidade. No dia daquela puta chuva! Ele me disse, olha, vem pra cá o mais rápido possível, preciso muito te falar, é muito importante mesmo, eu disse, que isso, olha essa tempestade, como é que eu vou poder ir agora? E ele, dá um jeito, cara, se a chuva melhorar, vem depressa, é muito importante mesmo. A chuva parou, eu fui até lá, ele me mandou embora. Doze anos de firma, meu velho, tá bom? Doze anos! Pra levar um pé na bunda desse jeito. E eu tenho mulher e três filhos. Três filhos, tá bom? Já não conseguia sustentar direito, quero ver agora.”

Os dois balconistas o ouviam de onde estavam, inexpressivos, na pausa entre um pedido e outro.

“Feia a coisa”, disse o gordinho. “Todo mundo quebrando.”

“É…”, resignou-se o mulato. “Nós tem que agradecer a Deus de ter emprego, pôr a mão no céu.”

Já agradecem por isso, os escravos. De minha parte, gostaria apenas de acreditar que não estamos todos lentamente enlouquecendo. Esforcei-me para não ouvir o resto da história. Mais um desempregado, suspirei, e olhei para fora enquanto mexia o açúcar, com isso tentando distrair-me. Mas foi pior: em meio ao calçadão, entre tantos passantes, ia um indigente de cabelos sujos e eriçados, em forma de moita, descalço e vestido em trapos, olhando fixamente um ponto qualquer à frente e empurrando uma vassoura em linha reta. A vassoura, muito gasta na base, era praticamente só cabo. O homem, que não talvez não tivesse ainda seus cinquenta anos, não passava de um pobre alienado.

“Olha lá”, riu o mulato. “Outro cearense.”

“Cearense, a mãe!”, defendeu-se o gordinho. “Olha lá o teu fim. É o teu fim.”

Vi como o louco passava sem pressa, em seu mundo também arruinado, e pensei: que estará girando em sua cabeça exatamente agora? (Ele seguia em linha reta.) Onde terá passado a infância? Que mulher terá ficado com ele alguma vez? De onde veio? Aonde pensa que vai?

“Meu Deus!”, falou um careca ao meu lado, como a continuar minhas perguntas. “O que será que ele quer varrer?”

Triste fim para um ser humano. Pior é não ser o fim, nem ele o último desgraçado de nossas ruas. Muita fibra, muita garra, é o que dizem, para conquistar o sucesso, a realização, a fortuna. Tudo isso, em nosso caso, é imprescindível sim, mas apenas para sobreviver, suportar, resistir ao verão indescritível de nosso país. Que calor, nem diga! Antes a morte que um verão assim, quase pensei em voz alta. Sem dúvida.

Perto do caixa, uma garotinha entrou correndo à minha frente. Uns seis anos, loira, rosada de sol, tinha de se espichar na pontinha dos pés para alcançar o guichê. Estendeu uma nota aberta ao homem do caixa, enquanto revia a variedade de balas através do vidro.

“Que que o senhor tem aí de cinco cruzados?”

“De cinco?! Cinco cruzados?!”, fez o homem com uma careta. “Olha, menina, cinco cruzados hoje em dia não valem mais nada”, e parecia feliz em dizer-lhe isso. “O doce é dez! O caramelo, quinze!”

Ela assumiu uma vaga expressão de surpresa, como se murchasse.

“O que que você quer?”, perguntei a ela, irritado com a frieza do caixa.

“Queria um caramelo.”

“Caramelo? Que tal um chocolate? Você não gosta de chocolate?”

“O chocolate sai por cinquenta!”, avisou o estúpido por trás do vidro.

“Gosto.”

“Então escolhe. Esse? Então vai… Tira tudo daqui”, disse eu ao caixa, passando-lhe uma nota de cem, minha última. E falei com firmeza, pronto a colocá-lo em seu devido lugar. Mesmo assim, ele nem se incomodava comigo.

“Com o pingado e o pão, dá cento e quinze!”, latiu ele, triunfante.

Dei-lhe mais vinte e acabei levando de troco uma detestável nota de cinco, aquela que, segundo ele, não valia mais nada.

A garotinha agradeceu-me e saiu correndo, cheia de vergonha. Parecia ainda mais rosada. Refleti por um momento sobre seu futuro e lamentei que nascessem crianças em nossa época e em nosso país. Afastei-me logo de tais ideias, com medo de estar ficando psicótico. Não se esqueça do homem da vassoura, eu me dizia. Na verdade, só os pobres têm coragem de continuar pondo filhos neste mundo. E os ricos, claro. Veja os franceses, estão quase sem descendentes. Mas não que não haja pobres na França. Além disso… Ora, chega.

Escritório. Entrei andando rápido, ansioso.

“Cadê o Cordeiro?”, perguntei a um colega, o primeiro que me apareceu.

“O Cordeiro?”

“É, o Cordeiro”, repeti. E quase disse em seguida que a morte era um poço.

“O Cordeiro não vem hoje.”

“O quê? Como, não vem?”

“Não vem. Telefonou dizendo que estava com umas dores de cabeça, indisposto. Estava assim desde ontem.”

“Desde ontem, é?”, falei desconsolado.

Mas era nesse momento que as minhas dores de cabeça começavam. Se o Cordeiro se sentia indisposto em condições normais, como estaria eu dali a três dias, sem comer? Não sei por quê, de repente tive vontade de falar, alto e bom tom, o dedo em riste: “Cordeiro! A morte é um poço!” – por alguma necessidade idiota que não compreendo. (Olha o homem da vassoura, hein?) Mas senti que minha situação era séria, e contive-me. Na mesma tarde, fiquei sabendo que a minha maior esperança conseguira uma licença médica e só voltaria na semana seguinte. Se Deus quisesse, aliás – foi o que me disseram.

A indisposição do Cordeiro custou-me caro. Já nesse dia, não almocei e não jantei. Voltando à noite para casa, encontrei um pãozinho duro, descascado, sobre o granito encardido da pia, e não pude deixar de imaginá-lo em meu estômago (o pãozinho, não o granito, explica-se). Mas censurei-me a tempo, com repugnância. Não, isso não. Durmo com fome, mas não! Não vou me entregar assim! Minha dignidade ainda não está à venda, tem algum valor afinal.

Subi ao quarto com cuidado, para que ninguém me visse. Lá dentro, enquanto mastigava cada pedaço seco do tal pãozinho, procurava não encarar muito seriamente essa atitude furtiva que me enchia de vergonha e ódio a mim mesmo. E cada bocado de miolo, úmido, empapado de saliva, descia-me ao estômago com dificuldade, assim uma espécie de hóstia gosmenta e diabólica. Depois, fiquei andando pelo quarto, tremendo de ansiedade pelo dia seguinte, enquanto procurava uma saída. Será que não tenho nada para vender?

Nem um relógio eu tinha.

A conspiração dos felizes

Leia mais dessa história: A ameaça sombria de destinos possíveis – anterior

Divagações com bolhas – sequência

Imagem: Paul Klee. Monumento num país fértil (detalhe central). 1929.

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