Office in a Small City por Edward Hopper

Dos males, o verão. Parte 3

A ameaça sombria de destinos possíveis

Quando acordei, vi dois envelopes meio enfiados por baixo da porta, o que misteriosamente renovou-me uma centelha de esperança. Rasguei rapidamente o primeiro: Este é o momento ideal para você adquirir o nosso cartão de crédito… Depois, o segundo: Chegou a oportunidade que você tanto esperava para finalmente fazer uma assinatura de nossa revista… Era um periódico sobre pessoas ricas, com quem elas têm se encontrado, por onde têm viajado, com que roupas foram vistas…

A manhã já prenunciava outro dia de altas e hostis temperaturas. Enfiei-me numa camisa leve, mangas curtas, embora o calor despertasse em mim o desejo mal reprimido de sair nu para o trabalho. Pensei que aquele seria motivo de outra pequena preocupação: era uma de minhas últimas camisas passadas, antes que eu as buscasse, às outras, na lavanderia, o que vinha também protelando para não ter de desembolsar o que devia pela semana – pouco, para ser franco, mas, no meu caso, sempre havia que se pensar duas vezes. Recentemente alguém me recitara, por sinal sem que eu o pedisse, a antiga arenga de que o homem mais feliz do mundo não tinha camisa, como sempre sem mencionar quem era esse ilustre desconhecido feliz, o que muitas vezes deixei passar, com meu sorriso preguiçoso de quem não dispõe de mais ânimo para discutir tolices. Mas não nego que cheguei a concordar com isso em outros estágios de minha bárbara ingenuidade. Também acreditava que os pobres eram pobres porque queriam, que os melhores atores eram os das telenovelas, que os favelados eram gente preguiçosa e que o presidente da República se preocupava com o bem-estar de todos nós. Achava mesmo que era de boa prudência essa sabedoria, a tal do descamisado feliz, mas que também era muito bom ter algumas camisas, principalmente se me pudessem refrescar do verão. Aliás, eu odeio o verão.

Antes de sair, fiquei olhando à toa a conhecida paisagem pela janela. A rua quebra-se numa curva logo adiante, deixando ver mais casas e edifícios, uns após outros, até o horizonte que não se alcança com os olhos, mas que, se pudesse ser alcançado, seria simplesmente o mesmo, com tudo o que vejo aqui. No inverno ou com a chegada de frentes frias do sul do continente, essa mesma paisagem torna-se fascinante e onírica, por causa da neblina espessa das manhãs sem sol, o que não permite enxergar nada muito nitidamente e nada além das primeiras construções. Os edifícios mais próximos não passam de maciças silhuetas, azuladas pela densidade do ar. O que eu via por trás das chuvas, entre variações de cinza e escassos azuis, alertava-me para o grande significado da beleza – que obviamente eu nunca soube qual é. Enfim, não é a visão do que costumam chamar uma bela paisagem. Mas alguma coisa nesses telhados recortados, nas muitas janelas, parece-me vagamente poético e me atrai de uma maneira que não compreendo. À parte a fase do ano, não posso ficar olhando por essa janela sem acabar como hipnotizado, em transe. Quando cheguei a este lugar, estava começando o inverno. Mal eu havia deixado as malas no chão e já me esquecia perdido, olhos através da vidraça, vidro ligeiramente embaçado pela respiração interna e pelos vapores imperceptíveis, característicos dessas estações. A proprietária despertou-me para uma primeira parcela adiantada, tendo de puxar-me duas vezes pela manga do casaco.

Saí para mais esse dia, pensando principalmente em falar com o Cordeiro. E sempre que me lembrava de seu nome, visualizava também o pedaço de papel em que o havia anotado na noite anterior, seguido, logo abaixo, por meu maravilhoso verso. Assim, sempre que pensava nisso, não podia recordar de outra maneira, senão na sequência, esses dois itens incompatíveis, bem como sua comicidade indisfarçável.

Cordeiro
a morte é um poço

Como estava no papel. Eu ia repetindo essas palavras em silêncio – Cordeiro, a morte é um poço… – como fosse eu um imenso idiota. E não que não o fosse um pouco, mas era como se o verso fosse o sobrenome do Cordeiro ou algo assim com o efeito de uma manchete de jornal – CORDEIRO: A MORTE É UM POÇO!

Nada disso chega a ser engraçado quando revejo minha situação – e a de tantos outros. Rotineiro é sentir o reflexo de tais crises contínuas quando se vai pelas ruas do centro, onde os miseráveis esmolam, e os menos desgraçados fazem fila até a porta lateral de um furgão de pneus gastos que serve como escritório-posto do Serviço Nacional de Empregos.

“Olha o vegetariano! Quinto andar!”

Esses aposentados multiplicam-se subitamente pelas ruas. Carregam placas com nomes de restaurantes ou vestem-se com uma espécie de avental inteiriço que enfiam pela cabeça e no qual se lê o cardápio, inclusive o prato do dia e as sugestões do chefe, até a altura dos joelhos. Tenho vontade de segurar um deles: “O senhor sabe qual é o prato do dia em nosso país? Nós, os cidadãos. Ah, não é? Prato do dia: nós.”. Vontade, não o faço. Seria ridículo. Seria? Nada mais me parece ridículo hoje em dia.

“Quinto, vamos lá!”, fazia um deles, batendo palmas. “Vamos lá, é só subir!”

A cidade é tão densamente ocupada que alguns restaurantes instalam-se entre a perspectiva sufocante dos corredores, no interior de velhos edifícios comerciais.

“Quinto, olha o vegetariano!”

Observando os homens-cartazes em sua rotina, não posso evitar um mau pressentimento quanto ao meu próprio futuro: será que vou acabar assim, depois de aposentado, um cardápio de restaurante? Após tantos anos de trabalho, ter de me enfiar num avental de propaganda de rua, continuar dando duro desse jeito? É o mais provável, considerando-se a pensão com que a Previdência humilha seus beneficiários e… Não, não! Eu me mataria primeiro. Sem dúvida. E eis que esse pensamento pueril de futuro suicida tranquiliza-me de uma maneira nebulosa, urdindo uma espécie de penumbra em minha mente, mesmo em plena luz do verão. Em vez de aceitar esses aventais cor de laranja e ficar numa esquina gritando chamadas, escolho desde já, e bravamente, a morte. A morte! (Lembro-me do que minha mãe costumava dizer, que, no momento de uma extrema decisão, nunca se escolhe a morte, por pior que seja a vida. Será?) Ora, por que pensar nisso agora? Não tenho ainda trinta anos, e pode ser que eu morra aos quarenta. Portanto…

“Quinto!”, gritou o homem.

Ao quinto, aos quintos! Por outro lado, pode ser que eu me arraste até a velhice, sendo aconselhável que me preocupe desde hoje e passe a pensar mais seriamente em minha decisão de morrer. Enquanto o homem se repetia em seus pregões, acabei me distraindo de meu futuro. E parecia estar ouvindo minha própria voz:

“Vegetariano! Olha o vegetariano!”

A conspiração dos felizes

Leia mais dessa história: O verso extraordinário – anterior

Pior é não ser o fim – sequência

Imagem: Clyfford Still. Sem título. 1957.

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