Office in a Small City por Edward Hopper

Pensamentos preguiçosos e pequenos sustos

Afinal, o que vejo mais do que esta manhã?
O que vejo além do que apenas me cerca, excluindo-se o que tendenciosamente imagino?

Paul Klee. Canção da Arábia. 1932A primeira coisa que vi nesse dia, ainda pela janela, foi o vizinho da casa em frente, que acabava de chegar com seu carro meio engasgado de frio. Fiquei ali, sem pensar em nada, assistindo aos gestos cotidianos dele: homem de uns cinquenta, quase totalmente calvo, mas ainda em boa forma, saúde provavelmente superior à minha. Deu a volta pela esquerda, abriu o porta-malas e começou a tirar sacoletas com frutas, maços de hortaliças e uma melancia que ergueu com facilidade em uma só mão. Imaginem: acordar tão cedo para comprar hortaliças e uma melancia! Ora, que tenho eu com isso, que tenho com sua melancia afinal? Mas o caso é que, quando ele bateu o porta-malas, quase a deixou cair, por pouco mesmo não a deixou cair, o que rendeu-me um susto. Sim, de parar e gelar o coração. (Que coisa eu sou, assustar-me assim com uma melancia qualquer…) Imaginei que, se a melancia de fato lhe houvesse escapado, sairia rolando ladeira abaixo (a melancia, não ele) até cruzar a avenida, onde certamente um caminhão cuidaria de esborrachá-la. Pude vê-lo correndo atrás dela, tentando alcançá-la por uns metros. Embora eu me sentisse pálido, talvez pela necessidade de ocupar-me com alguma coisa ou sei lá por qual outro motivo, pensei: isto não é hora de correr atrás de melancias. Essas palavras ocorriam-me cinzentas, sem nenhuma entonação. Que idiotice! Aquela febre havia me afetado, sem dúvida. Eu já estava pensando sem pensar, se algo assim é possível. Era o vício de articular frases mentalmente, ajustando palavras a uma banalidade qualquer. Eu havia lido muito nos últimos dias, e ler, como todos sabem, não faz bem, além de forçar a vista. Afinal, o que vejo mais do que esta manhã? O que vejo além do que apenas me cerca, excluindo-se o que tendenciosamente imagino? Mesmo tendo lido a respeito de uma coisa e outra, ou não, e mesmo que… O infernal despertador disparou, com seu trinado insuportável, levando-me ao desespero, a um passo de sair gritando pelo quarto. Eu me esquecera de desativá-lo. Saí num pinote, pisando canetas, atirando-me sobre ele como um louco, por fim encontrando o botão que o aniquilava. Quando o recoloquei sobre o criado-mudo, esbarrei no próprio móvel, por pouco não provocando um desastre maior. Mas só o que derrubei foi o maldito despertador.

A febre da noite de terça parecia ter levado embora a minha alma, o que até ontem eu chamava de alma. Cada gesto habitual, escovar os dentes, vestir-me, calçar os sapatos, foi tudo tão vago que passou por mim como se desde que acordara eu estivesse pronto. E estava? Quando me vi no espelho, acreditei que sim. Que estava pronto. Pronto para mais um dia. Só o que não havia levado em conta era o próprio dia: não se tratava de uma quarta-feira como as outras. Apesar de ter sido terça o dia anterior e mesmo sendo quinta o dia seguinte, não era esta uma quarta-feira. Absurdo? Pois não foi. Posso garantir que não foi.

 Quarta-feira (A conspiração dos felizes)

Mas hoje era outro dia – anterior

Aperfeiçoamento no processo de derrubar coisas – sequência

Guia de leitura

Imagem: Paul Klee. Canção da Arábia. 1932.

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