Office in a Small City por Edward Hopper

Mas hoje era outro dia

Pensei ter sentido um novo calafrio, não tinha certeza. Teria sido talvez um último resquício daqueles tremores e impulsos febris.
Ou uma febre menor. Ou um princípio de… Não, não era nada.

Raphaële Colombi. Calçada.À noite, subi ao quarto não pretendendo mais do que deitar e dormir. Estava frio. Como não havia jantado, a febre alastrara-se por todo o corpo, enfraquecendo-me rapidamente, minando-me as vontades, os movimentos mais simples. Podia sentir o líquido raquidiano como a ranger em minha nuca. Agitava-me em convulsões e às vezes parecia estar desfalecendo. Nesse ponto, já não tinha certeza de estar acordado ou não: a febre confundia-me os limites do sono e da vigília. Em certos momentos, podia jurar que estava dormindo. Em outros, era nítida a sensação de estar consciente. Despertava sobressaltado, movido por algum acesso, imaginando que fosse morrer, como se levantando-me assim, de repente, eu pudesse me livrar da morte. Tive medo de dormir outra vez, mas a lassidão me vencia e acabou por derrubar-me novamente, deitando-me a cabeça sem forças sobre o travesseiro. A morte deve ser assim, irresistível. Era o que eu pensava, o que ainda conseguia pensar. Nada mais. E enquanto imaginava uma coisa e outra, o mundo ia se desvanecendo em meu torpor, o que não deixava de ser uma sensação confortadora e serena. O mais forte nisso tudo era um egoísmo que, aos poucos, se tornava predominante sobre todos os outros estados de espírito: diante de minha suposta morte, não valeria a pena ter vivido por uma determinada causa, por uma crença, por um ideal, enfim, por coisa nenhuma. Se, no dia seguinte, eu não estivesse vivo, o que poderia me interessar realmente? Não, nada. Essa é a verdade. Mas seria apenas egoísmo? Não há aí alguma humildade embutida na consciência de minha insignificância em relação ao resto do mundo? Afinal, o que era eu? Uma vida qualquer, como bilhões de outras. Ainda que me sentisse importante em função de alguma vaidade, posição profissional ou qualquer outra tolice que a sociedade ensina para nos enganar, isso também não faria diferença no futuro. O fato é que tudo será esquecido. Mas se for lembrado, não fará diferença outra vez. E divagando talvez por instinto, pois justamente nada disso me parecia importante, fui perdendo depressa o controle sobre meus pensamentos. Nem lembranças, nem música. Nada do que eu havia sido e do que tinha vivido até então era real. Qualquer passado, qual fosse, perdia-se. Eu apenas morria. E mal cabiam sonhos em meu delírio.

Pela manhã, estava vivo. E a febre havia me deixado. Fazia muito frio. Saindo da cama, derrubei o colírio de cima do criado-mudo, o que também me surpreendeu: era a primeira vez que eu o derrubava por um descuido assim. Normalmente eu zelava para que não evaporasse ou coisa do gênero, tendo-o como valioso e necessário. Muitas vezes, os objetos parecem estar contra mim, principalmente em meu quarto. Não sei por que isso acontece. Mas sei que há algo errado comigo quando me ponho a pronunciar mentalmente palavras de trás para diante, sendo que muitas delas já as tenho decoradas desde a infância – sua forma inversa, digo. Ou quando reconto, uma a uma, as ripas da veneziana, de cima para baixo, depois de baixo para cima, com o cuidado de não ter esquecido nenhuma, pois o resultado tem de ser o mesmo, o que nem sempre acontece e me põe inconformado. Também quando desenho com os olhos os ângulos da sala. Quando me ponho a relembrar versos em inglês. Quando deixo de pensar em mulheres. Quando começo a derrubar coisas.

Depois, enrolado no cobertor até a cabeça, à maneira de um monge – e, vinda de minha parte, essa comparação é bem cínica –, fui até a janela para contemplar o dia. No caminho, derrubei um porta-lápis com a ponta do manto: lapiseiras, canetas e outras penas, entre exóticas e pouco usadas, rolaram pelo chão, mas nem me dei o trabalho de apanhá-los, limitando-me a uma vista de relance – quase ao mesmo tempo em que os derrubava –, impregnada de indiferença. Até ontem, eu zelava por essas tralhas também. Mas hoje era outro dia. Monge à janela. E o dia estava como era de se prever em tal fase do ano e a julgar pelo que havia sido a terça-feira: cinzento, frio, sem atrativos.

A pensão onde moro fica numa travessa em aclive, e o calçamento da rua é remendado com pedras mais escuras, mais claras, o que torna as coisas lá fora um tanto assimétricas. Por que disse isso? Não sei. Ou sei um pouco. As impressões nubladas de meus olhos mal acordados e o vazio que girava em minha cabeça confundiam-me. Pensei ter sentido um novo calafrio, não tinha certeza. Teria sido talvez um último resquício daqueles tremores e impulsos febris. Ou uma febre menor. Ou um princípio de… Não, não era nada.

 Quarta-feira (A conspiração dos felizes)

Febre – e outras emoções em cores – anterior

Pensamentos preguiçosos e pequenos sustos – sequência

Guia de leitura

Imagem: Raphaële Colombi. Calçada.

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Comentários

3 respostas para “Mas hoje era outro dia”

  1. Avatar de Nara Duavy

    “Não, não era nada..” No entanto cada palavra traduz a diversas situações..
    Amei..

  2. Avatar de Cainã Ito (@cainaito)

    Muito bom!
    Pensamentos a mil que fez entrar junto.
    E essa frase: A morte deve ser assim, irresistível.
    Ao mesmo tempo ri,seguido de reflexões hahah.
    Parabéns

  3. Avatar de Cássio Jônatas
    Cássio Jônatas

    Foda!

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