Office in a Small City por Edward Hopper

Vina entre os morcegos. Abertura

Medina, seu santo sorriso. Não se aborrece com nada, não desconfia de nada.
Nunca reagiu, nunca agrediu, nunca namorou.

Darren Thompson. NYNY #20.

A maneira trágica, brutal e bizarra com que nosso amigo Delfino tratou de resolver todos os seus problemas e livrar-se do mundo foi confirmada por Medina em um de nossos desastrados encontros de rua.

“Soube do Delfino?”, Medina quase sorriu. Seu sorriso é como um cacoete. Tem algo de automático e instintivo, como se solta o ar.

“Fazer o quê, não é?”, eu disse. “Agora é tarde.”

“Puxa, o Delfino, hein?”, Medina balançava a cabeça, desconsolado. “Delfino, quem diria…”

Esbarro nele com certa frequência, trabalhamos no centro da cidade, mesma rua, intervalo de almoço.

“O Delfino, que coisa…”

“Foi um momento de desespero”, comentei, à maneira dos antigos.

Mas ele só fazia repetir o nome do Delfino.

“Não via o Delfino há séculos”, eu disse. “Que andava fazendo?”

“Meteu-se a abrir seu próprio negócio, sua microempresa, sabe como é… Atolou-se em dívidas, deu nisso.”

Medina contou-me que nosso colega de escola (estudamos juntos por alguns anos, Delfino, o morto, Medina e eu, ainda vivos) ia bem com sua microempresa até que o último plano econômico o flagrasse em num momento crucial de seus investimentos. Os juros se desenvolveram, as vendas caíram e, desde então, durante todo o ano seguinte, ele tentara reerguer-se com o auxílio dos bancos, que lhe franquearam créditos pagáveis a juros, taxas e comissões aparentemente razoáveis, mas que duplicavam rapidamente o saldo devedor com truques que a política econômica apenas fazia favorecer. Pobre Delfino, ele me parecia mais inteligente. Acreditar no governo, acreditar nos bancos…

“Um momento de desespero”, repeti. “E se você pensar… A maior parte dos nossos bandidos de elite deixa o país sem nenhum problema. Ele, que era esforçado e honesto, poderia ter feito o mesmo.”

“Mas como?”, sorriu Medina. “Ele não tinha nem o dinheiro da passagem.”

Medina, seu santo sorriso. Córneas sanguíneas, cabelos anunciando fios grisalhos, o rosto aberto nesse sorriso solto, expansivo e contagiante. Não se aborrece com nada, não desconfia de nada. Nunca reagiu, nunca agrediu, nunca namorou. Sempre sorriu manso, falou manso, sempre suportou com natural otimismo o que o destino e os governantes lhe reservaram, como é próprio dos que veem sempre um lado bom no que não é bom, e nada mais têm a dizer. Quando lhe pergunto como vão as coisas, ele responde: “Vai-se indo…” ou “Na luta, com a graça de Deus.” ou “Graças a Deus, bem demais, com saúde e trabalhando.”. Olho para ele, penso: é um milagre que tenha sobrevivido.

Vina entre os morcegos (A conspiração dos felizes)

2. Que sonhos teriam valido a pena? – sequência

Guia de leitura

 Imagem: Darren Thompson. NYNY #20.

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