Office in a Small City por Edward Hopper

Projeto esvanecendo-se. Quando nós ainda…

O que de fato contava era que ela acreditava em mim.
Considerava meu potencial de entrelinhas meu bom humor involuntário minhas ironias benignas.
 

Eu e a Marjorie fomos felizes por um tempo, um bom tempo, claro que sim, eu me lembro. Unidos próximos cúmplices, compartilhando especificidades e caprichos entre aquelas coisas que-só-nós-mais-tínhamos, como certas canções tristes, de querer morrer, e momentos cinematográficos de arrepiar a nuca e estrangular o esôfago, de tão sensíveis e impactantes. Eu engasgava com a saliva. Nossa, que foda essa cena, hein? Ela, em parte sensível, em parte gratificada com sua própria atuação dramática, enlaçava-me o braço, apoiava-se em mim. Ai, olha, vou chorar de novo com essa cena, olha…

Nos primeiros meses nesta nossa casa aqui, cedida por meu sogro de alto escalão a sua filha merecedora e responsável, nossos dias de folga eram mais leves, nossas noites mais intensas. Nada de incomum nesse casal jovem, em meio a tantos outros casais sortudos mundo afora – eu com vinte e cinco, ela vinte e sete anos. Não era difícil entender e explicar a mim mesmo o tesão que eu sentia pela Marjorie. Mas não ficavam claros os motivos do tesão dela por mim. Não podia ser algo apenas físico, era o que eu suspeitava. Ou eu, apenas por ser homem, servia-lhe a realizar o que bem desejasse ou algo envolvendo o que eu era, talvez, com as coisas que-eu-mais-tinha. Ela dizia brincando, no fundo em tom sério e assertivo, que eu seria ainda o autor de qualquer coisa importante. Mas nem eu nem ela adivinhávamos do quê, embora a Marje insinuasse a perspectiva de algum trabalho acadêmico ou algo como uma teoria científica ou filosófica ou, enfim, nem sei mais, que se dane. E como isso não passasse de outra ilusão mal agendada, pouco me importava que porcaria de grande trabalho autoral seria esse. O que de fato contava era que ela acreditava em mim. Considerava meu potencial de entrelinhas meu bom humor involuntário minhas ironias benignas. E tentava erguer-me pontualmente de meu comodismo e de uma conveniente congênita modéstia, tentando ativar meu ego preguiçoso como se me cutucasse com um tição. Tinha esperanças, digamos, intelectuais em mim. Talvez uma aposta em algumas daquelas coisas que-eu-mais-tinha, como disse, por conta de minhas paixões como leitor ou como apreciador de música e de pintura, pois eu não fingia, não blefava, vivia mesmo apaixonado e encantado pela arte pelo texto pelo fogo libertador e opressivo das ideias.

Numa dessas noites, em meio ao estágio entorpecente alienante de nosso sono profundo e interrompendo a viagem da lua, um estrondo deflagrou um clima inesperado de terror. Despertamos ansiosos e sussurrantes, temendo que alguém houvesse invadido a casa. Ficamos sob a influência de um silêncio suspeito após o ruído forte e repentino de algo sendo destruído no andar de baixo. Desci para ver. Era o relógio de parede, da cozinha, em queda livre e autônoma – um desses relógios Herweg, que prometem durar toda uma vida, mas, no caso, por falta de habilidade minha em fixá-lo a contento, finou-se jovem e desastrosamente, espatifando-se com um som cristalino apavorante, e o vidro que antes protegia o mostrador claro limpo conciso craquespalhava-se no piso da cozinha, como se ali houvessem chovido grãos lascas e miçangas transparentes.

Comprei outro relógio na Avenida da Saudade, uma loja de quinquilharias para o lar. Quadrado, cantos arredondados, mostrador branco, no centro o desenho estilizado de uma galinha em alto contraste, pezinhos em movimento, simpática altiva e sempre em frente, como se cacarejasse keep walking enquanto o ponteiro-agulha vermelho dos segundos avançava sem dó. Eu quis surpreender a Marjorie. Achei que ela fosse adorar aquela máquina charmosa, com ar de fazenda, sugerindo uma alegre ingenuidade, que ela quedaria encantada com aquela galinha positiva determinada autoconfiante e que me brindaria, pelo menos, com um belo beijo. Que que é isso, amor? Que coisa brega, meu Deus! Onde você achou esse relógio? Nós vamos pôr isso aí na parede?! Eu estava feliz assim mesmo, e ria. Marje, olha só essa galinha, não é demais? A Marjorie parecia bem-humorada também, e suas imprecações simulavam as de uma comediante consciente. Ah, não, você está de brincadeira comigo! Está ou não está? Mas por que não, Marje? Você sempre gostou de galinhas. Você tinha até um pijama de galinhas, lembra? Você às vezes parecia uma galinha. (O pijama dela era amarelo-claro estampado com inúmeras minúsculas galinhas, umas azulzinhas outras pretinhas outras branquinhas…) O quê? Eu parecia uma galinha? É, quando a sua franja se arrepiava de manhã, quando acordava com os cabelos desfiados apontando pra cima. Palhaço! Me solta! Vem cá, minha cocó linda… Corria atrás dela. Para com isso, me larga, tenho mais o que fazer! Ela flexionava o corpo entre os móveis, torcia-se agitando os braços, brincando de se livrar de mim. Eu não vou pôr isso aí na parede, já falei! Ai, me solta! A Marjorie é forte, e eu tenho que ser firme quando quero prendê-la. Depois percebo que ela não faz tanta força assim: está se divertindo também.

Noite e horas de sono. Tempo perdido. A menos que você tenha um pesadelo intrigante ou seja um sonâmbulo com propensões homicidas, essas horas inertes não servem para nada. Sono que não é só meu. Só em nosso país, dezenas de milhões de corpos acomodam-se para as próximas horas. Um ou outro não despertará. Estatísticas. Coisa pequena, enfim. O planeta nos carrega noite dentro. E nós nos carregamos por dentro. Você apenas gira o corpo na cama, e está alinhado ou desalinhado com outros tantos elementos, entre órbitas conhecidas e galáxias invisíveis, que não são as mesmas de um segundo atrás.

Manhãs de café e intimidades. Sonhei que um trem tinha passado por cima do teu pai. O quê?! Credo! Ela pega a chaleira fervente e a leva até o filtro de café. Credo. Despeja a água sobre o pó. O pó ganha vida. Agita-se borbulha muda de cor: um milagre cotidiano. Do pó ao pó. Credo… Como você pode sonhar uma coisa dessas? Não sei, eu não posso escolher os sonhos que vou ter, não é? Sei lá. Dá aqui a torrada. Brigado. Que delícia de requeijão… Ele deu um grito sinistro.

O relógio nos serviu por um bom tempo. Eu e a Marjorie fomos felizes por um bom tempo. Nossa juventude, transuberando de erotismo, sempre nos garantia um bom tempo, mesmo sob os ventos eventuais de alguma situação obscura. Aliás, já ia me esquecendo de dizer que, depois daquele susto pavoroso com o relógio espatifado, voltei para a cama, e nós nos pegamos com toda força gosto e vontade, em meio à mesma viagem da lua. Nosso casamento aconteceu no auge do verão e reuniu apenas parentes próximos e uns raros amigos íntimos. Eu tinha vinte e cinco anos, caso não tenha contado ainda. Ela, vinte e sete. Isso foi há muitos e muitos anos. Numa terra distante. Em janeiro.

Projeto esvanecendo-se

28. O anjo de ficar – sequência

26. Seu perfume suave estranho novo – anterior

  Guia de leitura

Imagem: Chelsea James. Cômoda branca. 2009.

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