Office in a Small City por Edward Hopper

Projeto esvanecendo-se. Seu perfume suave estranho novo

Penso em deixar uma cadeira lá para me sentar e ler, mas tem chovido muito por esses dias.
Coisas simples que me inspiram aconchego e uma gostosa solidão.

Tarde fresca em abril, agradável. Brisas intermitentes. Ameaçava um vento, e logo se ia, em forma de sopro delicado entre as folhagens. Sei disso porque olhava pelos vidros do escritório, fazendo nada. Então desci para atender à porta da frente, voz que anunciava uma amiga da Marjorie – amiga da Marjorie? Eu, ocioso como sempre em dias desses, deixando-me ficar em camisetas e cuecas boxer, só tive tempo de buscar uma bermuda no armário aberto e calçar meus tênis iate, por acaso caídos por perto, no caminho do corredor, para receber a visita de maneira menos pior. Abri a porta desconfiado. Ela sorriu fácil. Oi. Eu sorri também, receptivo. Oi, como vai? Então, é aqui que ela mora? Você é o marido dela, certo? Sim, isso, vamos entrar. Brigada. Ah, que casa linda. Lançava os olhos ao redor e para cima. Quase farejava. Eu não a conhecia: era a Liliane Adib. Fiquei sabendo depois, com a Marjorie, que seu sobrenome era Adib. Liliane Regina Adib. Mas que diferença isso faz? Faz que, para a Marje, essas coisas são como um pedigree um sinal diferenciado uma identificação confiável, sobrenome de casada; depois, de divorciada; depois, de casada outra vez; enfim, a Liliane Adib já devia ter sido outras coisas semânticas até se divorciar recentemente e reassumir o nome da família do pai. Enfim, pouco me importa. Foda-se essa gente toda. Fechei a porta, ficasse à vontade. Ela andava tranquila precisa confiante. Pequena, pele clara e saudável, nariz pontudo, queixo triangular, certa distância entre o lábio superior e a base das narinas, lembrando alguma espécie de roedor dos bosques, cabelos castanhos, em parte ondulados, mechas claras a que as mulheres chamam reflexo, olhos grandes, íris cor de café – um brilho permanente em seus olhos, como se lacrimejassem o tempo todo, alegres. Já ouvi dizer que pessoas assim são muito inteligentes, por isso transbordam parte do que não lhes fica contido, convertido em lágrimas positivas. Sei lá. Era uma dessas mulheres que não atendem ao padrão clássico de beleza, aquele das medições áureas, conferido com esquadros, que à primeira vista não se destacam pela aparência. Mas isso era o mais fascinante: um conjunto de pequenas ações, entre a velocidade da fala, os meios sorrisos, a imobilidade súbita, quando fingia surpreender-se com um enunciado qualquer, mantendo-lhe os lábios minimamente abertos. E um encanto passando por toda a sua figura, que parecia desdenhar dos padrões compartilhados e mostrava-se tão bela quanto qualquer outra que se entendesse bela. (A observadora Marjorie, conhecendo meu gosto por singularidades, ao deparar com alguma mulher diferenciada, da música da TV do cinema, ou com alguém que ela de fato conhecesse pessoalmente, costumava dizer-me, quase feliz: “você ia morrer por ela” ou “você ficaria de quatro por ela”.) Blusa de mangas até o antebraço, bolsa clara a tiracolo, caramelo ou marrom amarelada, saia até os joelhos, sandálias de salto anabela cor da bolsa, discretas. Você é a…? Liliane. Sou amiga da sua mulher faz muito muito tempo, amigas de escola, nossa, você nem imagina. Ela sabia que…? Não. Quis fazer uma surpresa. Expliquei que a Marjorie só voltava ao fim da tarde, à noite. Mas que, se quisesse ficar, esperar por ela… Eram umas três, três e meia, acho. Que idiota educado. Ah, não tem importância, eu volto outro dia, venho à noite então. Sorriso bonito, simpatia treinada. Pode ir a qualquer parte com essa autoconfiança bem calculada, suave entre outras amenidades, consolidada pela experiência da mulher de trinta anos, tendo sido a década de seus vinte atribulada e rica, com relacionamentos sérios e menos sérios e sabe-se lá mais o quê, entre separações e renovações, uma habilidade que, em algumas pessoas, costuma ser precoce e instintiva, brota de seus genes. Ela já estava no centro da sala, tendo passado pelo hall de entrada enquanto falávamos, indecisa sobre ir, ficar. o falávamos, indecisa sobre ir, ficar. Nisso, Coco Chanel apareceu à entrada do corredor que vem do terraço. Foi parando, lenta, no canto da sala, farejando cheirando bibicando por um instante a cesta de vime arredondada na qual a Marjorie deixa as revistas sobre moda arquitetura programação de TV celebridades e divórcios das atrizes. Ai, que lindo. É fêmea: Coco Chanel. Ai, que lindo, olha. É fêmea: Coco Chanel. Ah, que linda. Amei. Vem cá, vem, fofutcha… Inclinou-se à frente, a bolsa lhe escorregou sobre o ombro. Tchic tchic… Coco Chanel nem piscou. Fez uma curva embolada sobre si mesma, virou as costas para nós, foi saindo devagar, voltando ao corredor, caminhando silenciosa e como se flutuasse, dona da maior preguiça do mundo. No meio da sala e da falta de assunto, pensei em algo que a Marjorie aprovaria, com seus bons boníssimos modos. Aceita um café? Ah, não se incomode, não precisa… Vou fazer um café, vamos lá, num instante, deixa a bolsa aí, onde quiser. Ela me seguiu até a cozinha, sem deixar de observar tudo na casa, tudo. Sentou-se à mesinha de parede, sob uns armários que seguiam até o teto. Finalmente deixou de esquadrinhar todas as coisas ao redor e olhou para mim. Sorriu levemente. Água a ferver. De folga hoje? Não, eu… estou com esse período livre por uns dias. Uma ou outra palavra enquanto eu manipulava utensílios. Umas três, três e meia, por aí. E você faz o quê? Sou professor. Ah, que legal. De quê? Linguagens, compreensão de textos… Ahn. Admiro. Deve gostar de livros. Deve ter uma porção de livros por aqui. Ela sorria simpática. Bem perto, no trecho de parede que delimitava os armários na parte inferior, o sol da tarde desenhava barras transversais e espectros confusos com sombras oscilantes de folhas de árvore, depois de refletir-se na cristaleira e projetar-se a partir das peças e das miniaturas de vidro, misturando filamentos de cores tranquilas, quase todas luz branca outra vez, formando um borrão claro, em movimento, como se dançasse sutilmente, desafiando nossa percepção duvidosa de que estivesse quieto e sob controle, conforme o dia passava. Parecia querer incendiar-se a partir de sua própria vibração silenciosa, anunciando-se a si mesmo. Com isso, eu já me esquecia, um bobo alienado, admirando essa esvanecente visão momentânea. Mas logo, por acaso e por encanto, despertei para o contexto em curso, adeus às digressões, olhei para a Liliane outra vez: outra vez ela sorria simpática. Quase fascinante. Pernas cruzadas, um dos pés balançando devagar, girando no ar, eu via a lateral de cortiça de seus sapatos cor de caramelo, e também o vão leve que se formava em seu decote quando ela se apoiava sobre o joelho mais alto. E eu voltava de um instante de transe, como inebriado por alguma droga benigna. Ela disse que estava separada há algum tempo, sem eu perguntar. Sozinha agora. Há tempos também não via a Marjorie, conseguira o endereço com o irmão dela, o Sergito. Ahn. Sei. Mas não sabia dos horários dela, então resolvi passar por aqui sem telefonar, fazer uma surpresa. Ahn. Ótimo. Entre um movimento e outro, toquei por acidente seu pé flutuante, ah me desculpe, não foi nada, que isso. Voltei ao preparo do café, e qualquer coisa ali me dava lembrar de como eu sempre tentava me aproximar e me afastar das mulheres a um só tempo, e não nessa ordem, desde um passado imemorial de mim mesmo, quando, nas cantigas infantis, os meninos e as meninas exercitavam seus pequenos destinos, com o que o acaso lhes oferecia: entrarás na roda ou ficarás sozinho. E o menino emburrado, que se recusava a sorrir, reafirmava suas teimosas convicções, sempre em guarda, em seu poderoso silêncio. Não tenho medo dessas musiquinhas de vocês, não ligo de ficar sozinho, não quero saber de rimas. E ela, quando entra na roda, recebe a mesma predição: entrarás na roda ou ficarás sozinha. Mas agora é diferente, ela responde reage rege: sozinha eu não fico, nem hei de ficar, pois eu tenho esse menino para ser meu par! – e o aponta com o dedo, decidida divertida, também poderosa dentro de si mesma, voz segura e autoridade apoiada por seus anéis de brinquedo. (Agora, os anéis são de verdade. Ainda assim, com risco de se quebrarem.) Mas eu não quero ter um par, não quero ser seu par nem par de ninguém, pouco me importa isso tudo, e as criancices e as ameaças e as bruxarias. E acaba de tocar a Liliane Adib, e não quer mesmo provocar o mínimo sinal de coisa nenhuma, e essa mulher me entra com esse aroma de folhas, e outras como ela continuam brincando de roda  ao nosso redor, põe aqui o seu pezinho, põe aqui ao pé do meu, e eu sei que sempre há muitos motivos para um menino se arrepender. Café pronto, demarcando outro minuto outro tópico outro diálogo. ?. Adoçante, prefiro. Xícara estendida à sua frente, posta na mesinha. Brigada. Muita gentileza. Colherita: tique titique… Que bom que vocês estão bem, nessa casa linda, não vejo a hora de falar com ela. E só podia acabar assim, com um marido assim, tão prestativo. Ah não, não sou assim sempre, acredite. Seu focinho de animalzinho silvestre parecia farejar o café e tudo ao redor, sem perder a simpatia um só instante. Não acredito não. A Marjorie sempre soube escolher bem. Ela sempre teve bom gosto, sempre soube o que queria. Sempre foi muito exigente com suas escolhas, até com ela mesma. Sentei-me do outro lado da mesinha. Contei sobre a Marjorie, como ela estava, o trabalho dela, atualizações genéricas ocasionadas por perguntas básicas, também genéricas. Ah, mas que saudade dela, faz muito tempo, viu? Imaginei que sim: nove anos de casados, outros de namoro, e eu não conhecia essa Liliane Adib. Notei também que a Marje nunca me falara dela antes – ou pode ser que tenha falado, eu é que não tenha prestado atenção, bem possível. Professor então? Que escola? Falei-lhe da universidade, quase uma saliva amarga com gosto de café, eu mentindo e não querendo tocar no assunto. Ah, que legal. Deve ser trabalhoso, admiro, muita coisa muito texto muita coisa pra corrigir muita leitura, na sua área, não é? É… É. Só então eu notei que a xícara que ela segurava não fazia par com o pires. A Marjorie me veio à ideia de imediato: para ela, esse tipo de coisa soava impensável, quase uma grosseria. Sim, que, para gafes desse tipo, sempre lhe faltava qualquer dose de humor. Mas eu agora observava, no desenho e nas cores daquelas peças, tão delicadas quanto sólidas, uma sutileza que as fazia semelhantes, por isso me confundi. Elas se pareciam muito. Talvez a Liliane houvesse percebido tal disparidade logo na primeira, e deve ter optado por ignorar a constatação, o que, para mim, consolidava um sinal de inteligência clara pragmática desprendida oportuna – e continuava conversando e sorrindo. Aposto que você tem muitos livros e gosta de ler. Acertei? Era difícil assimilar seu rosto por muito tempo: seus olhos marrons vibravam minimamente, inquietos. Certo nervosismo permanente, de fundo suave. Desviei-me, toquei minha xícara. Simpático também, forcei um sorriso pequeno. Eu leio muito sim, é o meu mal. Ela olhou para a frente e para o alto outra vez, achei até que fosse perguntar a marca daqueles armários a qualquer momento. Ah, que mal mais bom. Eu também gosto muito de ler, só não sei se temos o mesmo gosto, nós dois, eu mostrava uns autores pra Marjorie, eu lembro, geralmente ela me ouvia, confiava nas minhas dicas. Que interessante, ela nunca me disse isso. Ah, mas faz muito tempo… Sim, pode fazer muito tempo, mas não importa. A literatura tem esse poder de permanência. Um livro velho pode ser reencontrado com o mesmo prazer, e o que ele significou fica na memória, independente do conteúdo e… quem sabe alguns desses livros estão aqui com a gente até hoje. Ela ficou animada com a ideia. É mesmo, quem sabe? Estão lá em cima? Levei-a ao escritório, às estantes que ela quis ver. A porta estava aberta, como quase sempre a deixávamos, e de qualquer maneira eu tinha acabado de sair de lá. Estantes em duas paredes, interrompidas por móveis baixos. Umas com portas leves de vidro fino, outras em madeira diferente e mais clara, prateleiras abertas acessíveis. Em algumas dessas regiões, livros técnicos sobreviventes dos tempos de faculdade, da minha e da Marjorie, didáticos e paradidáticos que ainda há pouco eu usava em minhas aulas, literatura nacional e estrangeira sem distinção entre poesia e prosa, trechos de lombadas brancas da coleção Os pensadores, por onde desfilavam todos os sistemas filosóficos do mundo, coisas que, na prática, nunca serviram para ninguém, e uma porção de outros livros variados úteis e inúteis. Afinal, de que serve ter muitos livros?

… a Biblioteca de Alexandria tinha como meta “adquirir um exemplar de cada manuscrito existente na face da Terra”. Eu não admiro mais esses projetos grandiosos. Eu mudei. Eu decaí. Eu cresci…

E não adianta ler aos montes, empanturrar-se de livros, é preciso atender a um filtro uma seleção um caminho, que na literatura pouca coisa vale a pena. Vem ver. Fica à vontade. Ela esquadrinhou as estantes, curiosa. Peguei alguns livros mais antigos, ficavam todos mais ou menos próximos, na mesma região das prateleiras, reservada justamente aos mais antigos. Estes vieram com ela, tempos de solteira. Se não me engano. Mas este aqui… não tenho certeza. Deixa eu ver. Ela parecia interessada nos livros, que eu dispus sobre a mesa maior, mas logo percebi que não estava tão interessada assim, que só os folheava à toa, sem se deter em nada, mal olhava as capas. Confesse, você já está imaginando tudo, ela já está nua sob seu peso. Mas não pode passar disso, é o que dizem. E você também se diz isso, um pouco. Não se gratifica com essas frutas e flores que às vezes caem na sua mão. Sempre uma renúncia supostamente honrada. Em que estante está o troféu do que você não quer? Em um instante, desses que me vêm completamente por si mesmos, olhei pelos vidros da janela vertical, de onde podia ver o cantinho de jardim que mais me agradava. Penso em deixar uma cadeira lá para me sentar e ler, mas tem chovido muito por esses dias. Coisas simples que me inspiram aconchego e uma gostosa solidão. Quase sentia outra vez o aroma desse recorte de jardim depois das chuvas de ontem. Um aroma que, no momento, apenas mal memorizado, se confundia com o cheiro dos velhos volumes que eu acabara de manusear. Percebi então que havia mais nuances envolvendo meu olfato instintivo, algo que muito levemente eu farejava sem querer e parecia farejar-me também, subia de meus ombros ao pescoço, rondava ao redor, enquanto ela me trazia um dos livros, aproximando-se quieta, talvez compenetrada, páginas abertas, seu braço tocando-me lateralmente, quase nada, um arrepio delicado, ela logo se afastando discretamente, um passo distante adiante, de alguma maneira um pouco à frente, como se esperasse que eu lesse, por sobre seus ombros, o que tentava escrever no invisível, quase isso, ou tocasse seus ombros, ou considerasse sua presença encantadora forte invasiva, e eu senti com mais força seu perfume suave estranho novo, em meio a essa tarde fresca agradável, de brisas intermitentes. Isso, como eu disse, foi em abril.

Projeto esvanecendo-se

27. Quando nós ainda… – sequência

25. As festas na Maga. Pequenos atrevimentos – anterior

Guia de leitura

Imagem: Árvores e flores na calçada. 2018.

por

Publicado em

Comentários

2 respostas para “Projeto esvanecendo-se. Seu perfume suave estranho novo”

  1. Avatar de Creusa Maria Maia de Queiroz
    Creusa Maria Maia de Queiroz

    Perce, você nos enriquece cada vez mais, visto que sempre há um novo encanto a cada nova leitura de seus textos. É maravilhosamente deslumbrante, pois a leitura corre solta e vai tomando forma numa trama em que as personagens se complementam para que o enredo ganhe o significado desejado. Desde a apresentação das personagens, já se evidencia o caminhar do conflito. Assim, aguça cada vez mais a vontade de continuar a leitura. Essa estratégia nos leva a buscar o imprevisível pela complexidade psicológica das personagens co-protagonistas. Seu texto deixa o leitor tomar a decisao do desfecho, segundo as suas próprias expectativas. Isso é fantástico. Parabéns!!!

    1. Avatar de Perce Polegatto

      Creusa, muito obrigado pelas palavras e pela atenção. Sinto-me realmente gratificado em ouvir isso de uma leitora como você.

Comentar