Office in a Small City por Edward Hopper

Um dia, você abriu o jornal… (trecho)

… que acontecem

Texto apresentado no sarau da Casa do Poeta, na Livraria Paraler, abril 2019.

O trecho a seguir é parte do romance Marcas de gentis predadores. Liana, a personagem principal, questiona Danilo sobre uma antiga colega dele (eventualmente sua amante), que vinte anos antes teria se suicidado. Conforme ele conta a sua atual companheira, com suas perceptíveis contradições, sobre o que teria acontecido, no pensamento de Liana cresce sutilmente, gradativamente, a hipótese de um homicídio. Mas não há como saber, não há como provar nada, já que ela tem apenas as versões digressivas de Danilo sobre esse evento do passado, um caso arquivado que há muito tempo ninguém investiga mais. Mesmo assim, Liana já não vê como voltar atrás em sua suspeita, e entende que Danilo matou essa moça, chamada Ana Lúcia, e de alguma forma conseguiu sair impune. É importante, para ela, definir essa questão, afinal é seu relacionamento com ele que está em jogo.

Os nomes dos personagens nunca são aleatórios. Danilo lembra dano, prejuízo: ele pode mesmo ter matado Ana Lúcia – e não apenas isso, mas a dúvida sobre o que de fato aconteceu no passado também causa prejuízos no presente, pondo em risco seu namoro com Liana. Ana Lúcia sugere “sem luz”: uma pessoa complicada, instável, impulsiva, depressiva, que poderia mesmo ter se suicidado. (Usei Ana pensando em uma aproximação do prefixo da negativa, no latim, como em arquia/anarquia, aeróbio/anaeróbio. Assim, a composição Ana Lúcia poderia inspirar o significado de “sem luz”.) E Liana é a ligação entre os dois: o Danilo do presente e a Ana Lúcia do cold case. Lianas são cipós, que unem uma árvore com outra, formando às vezes um trançado, uma trama entre elas. As letras de seu nome se encontram nos nomes dos dois outros personagens.

. . . . . . . . . . . .

“Olha, Danilo, eu percebo que você vive no seu mundo, gosta dele, e eu respeito isso. Mas agora, depois de tudo o que me contou sobre a Ana Lúcia, fica difícil continuar assim, sem um esclarecimento, sem um… Você entende, não é?”

“Sem um o quê? Do que você precisa? Continuar com o quê? Continuar comigo?”

Liana não continua, lembrando a si mesma de não perguntar muito, nem naquele tom, decidindo que não deve prejudicar o momento, essa tarde íntima, enfim. Mas sua curiosidade quase a faz crer que valerá a pena estragar tudo por uma resposta. Por uma boa resposta, uma pista mais consistente, mais clara que seja. Enquanto Danilo disfarça em silêncio, ela pensa em Ana Lúcia, como se, num instante, essa garota, passeando num sonho, solta das sombras, pudesse dizer-lhe oi e sorrir. Não tem uma imagem dela, e forma uma figura qualquer, alguma atriz adolescente da tevê, do cinema. E para sentir-se melhor, sempre Liana se põe no lugar da pessoa morta. Morre por ela, secretamente, com isso matando-a também por sua vez. Depois foge, reencontrando a si mesma. Não podemos morrer por todos. Os mortos não precisam de nós, por isso temos de nos livrar deles. E isso, para ela, passou a ser sua maneira inventada de matar o medo em si mesma, vivenciando a morte alheia. Mas não, ela não se conforta com explicações pela metade. Não é nada disso. De fato, não sabe por que procede assim em sua mente, em sua morte. Daí a sequência de estratégias lúdicas, experimentadas no escuro, com o batimento acelerado, ainda que imerso na imobilidade do corpo que não responde. Esses pensamentos, que parecem inofensivos, depois de assumidos e retomados por hábito, podem crescer. E assombrar por toda a vida uma pessoa.

Um dia, você abriu o jornal…

por

Publicado em

Comentários

Comentar