Office in a Small City por Edward Hopper

Gino (e a história resumida de sua estranha existência)

Por mais que se tentasse ver o contrário, era inegável que o pequeno Gino possuía desde cedo um ar patético, além de cultivar hábitos estranhos, não bastassem as singularidades impostas pelo destino.

Foi na granja Belaroba, próxima ao eterno rio e cercada pelo muro inalcançável, que nasceu um pinto raquítico, bico torto e cabeça grande, desprovido de qualquer sinal de beleza física, logo recebendo o nome de Gino Grandecoco.

O tamanho descomunal de sua cabeça tornou-se rapidamente alvo de comentários por parte das famílias mais próximas, tanto que, em pouco tempo, as novas alcançaram todo o galinheiro. Era inevitável que uma galinha contasse a outra sobre a anormalidade do rebento, acrescentando por vezes uma comparação de humor mesquinho, o que naturalmente rendia gargalhadas às escondidas. Os galos, senhores da granja e sempre muito ocupados com a administração dos galinheiros, tomando conhecimento do fato, limitaram-se a discretas risadas em segredo. Era costume dos galos não sorrir nem gracejar na presença dos frangos, uma questão de honra e disciplina.

Se por um lado as galinhas mais velhas comentavam o fenômeno secretamente a fim de não ofender a mãe do rebento, uns jovens frangos inescrupulosos cacarejavam apelidos cruéis que se adequavam à aparência do infeliz.

Por mais que se tentasse ver o contrário, era inegável que o pequeno Gino possuía desde cedo um ar patético, além de cultivar hábitos estranhos, não bastassem as singularidades impostas pelo destino. Os demais pintinhos não demonstravam qualquer preconceito, pois não haviam sido ainda contaminados pelos ensinamentos dos mais velhos e não conheciam distinções sociais ou raciais: pintinhos amarelos e negros brincavam juntos por toda parte. O mesmo se dava com relação a Gino, porém, de uma maneira inexplicável, era ele quem se alienava voluntariamente e não tomava parte nas correrias que se realizavam pela granja. Era característico seu desinteresse pelas brincadeiras que tanto atraíam pintinhos da mesma idade. Sem algum motivo aparente, ele se detinha, quedava-se contemplando um pequeno arbusto que vinha brotando da terra, mantendo-se longo tempo absorvido por tão pouco.

E cresceu estranho.

No alto de sua enorme cabeça, surgiam os primeiros sinais de uma crista que despontava timidamente. Despertava nos semelhantes de sua geração a consciência de que frangos e frangas eram partes distintas, que deveriam afastar-se para tornarem a se encontrar um dia, de outra forma, não a mesma com que brincavam e corriam pelos terreiros. Era o início de uma nova série de descobertas que excitava a curiosidade dos adolescentes.

Os jovens frangos aliavam-se em nome da masculinidade, formavam grupos, dividiam uma amizade viril que buscava vivenciar aventuras e oportunidades de provarem sua condição de sadios reprodutores. Imaginavam que seriam um dia aqueles galos portentosos e sisudos que eram os senhores da granja, os mais respeitados e invejados representantes da sociedade galinácea. Admiravam esses galos, admiravam-se a si mesmos como galos do futuro. Estufavam o peito, queriam andar como eles, ser como eles, certos de haverem nascidos para tão invejável destino.

Mas Gino, pobre Gino, nada tinha de um grande galo: franzino, físico nada admirável, a enorme cabeça destacando-se de forma ridícula entre as dos demais. Além disso, ele havia observado que a mesma seqüência evolutiva que fazia dos frangos galos os levaria, um pouco mais tarde, à inevitável decadência física, à morte e ao esquecimento. Chegara, portanto, a uma conclusão: o ciclo se fechava. Tanto os galos como as galinhas tinham um destino comum: o fim. Essa primeira observação transformou vários pensamentos que lhe pareciam imutáveis, e assim a vida adquiria, para ele, dimensões diversas do simples ideal de tornar-se um reprodutor. Ao jovem Gino, não interessava caminhar com o peito cheio de glória. Limitava-se a vagar de cabeça baixa, meditativo, pois não lhe bastava ostentar penas coloridas ou aumentar a produção de ovos – antes buscava razões para que o próprio ciclo se desse. E ganhasse um sentido, um propósito.

Os frangos procuravam chances de provar que eram dignos de seu destino. As franguinhas, maravilhadas, empolgavam-se com as rotineiras demonstrações de força e beleza. Uns disputavam a velocidade com que cavavam um buraco na terra, outros, apostando corridas, realizavam-se em desabaladas carreiras. Os mais robustos arrastavam com o bico alguma pesada raiz. Aos esbeltos, restava orgulharem-se da altura de suas cristas, por isso esticavam ainda mais o pescoço, dando a ilusão de parecerem maiores. Só Gino não participava das demonstrações, pois, além de não possuir nenhuma qualidade física digna de nota, via – e era o único que via – o fim do ciclo.

Afastado das competições, junto às árvores próximas ao rio, ficava muito tempo considerando sobre todo o estranho mundo que o cercava. Viu, no reflexo de uma poça, a cabeça desproporcional encimada pela crista débil que se recusava a crescer. Pensava nos outros frangos e propunha-se vagas interrogações acerca de sua condição: seria ele um erro da natureza ou seriam todos um incorrigível erro coletivo? Concluiu que era ele o errado, pois era infeliz. Cada frango era dotado de uma característica que o fazia honrar sua raça. Os que não tinham força exibiam velocidade. Os que não tinham velocidade dispunham de altura e imponência. Os que não tinham uma coisa nem outra revelavam-se belos, com cristas de cores vivas e graciosas formas. Que lhe restava? Uma grande cabeça que, desgraçadamente, não tinha utilidade alguma. Afinal, cansado de questionar-se, ergueu a cabeçorra numa atitude decidida. Estufou o peito, outra espécie de orgulho:

Sou um frango!”, disse com firmeza. “Com crista ou sem crista, sou um frango, sem dúvida! E desde que eu tenha essa certeza, não é preciso que o prove a alguém.”

As estações se revezaram. Primavera sobre inverno, o tempo impalpável vestiu e despiu as flores e as árvores muitas vezes; o vento gemeu e gritou, passou cortante entre as folhagens, como sempre havia sido e como ainda seria sempre. Na granja, pouca coisa, quase nada, havia se alterado. Um previsto envelhecimento dos galos, o crescimento de novos pintinhos, o amadurecimento dos jovens frangos: o ciclo prosseguia.

Esquecido e sem ser notado, Gino aprendera muito durante esse tempo. Seu amadurecimento fez-se com água e sol, o verde da primavera e o vento do outono, e cada estação dava-lhe um capítulo da vida que outros não leram. Entre toda aurora e ocaso, uma página do tempo deixava-se ser observada e se ia.

As frangas desfilavam seus corpos bojudos pela granja, enfeitavam-se com as diversas cores de suas penas, a meio caminho de tornarem-se perfeitas galinhas. Aguardavam ansiosamente o momento certo em que seriam incumbidas de construir seu ninho e ali depositar seus ovos para chocá-los. Esses eram todos os seus sonhos.

Aos frangos, a pródiga natureza distribuiu cristas e caudas próprias à exibição. Caminhavam pela granja farfalhando as asas, cacarejando alto, estufados de tolice e glória. Rivalizavam-se, buscando ser um melhor que o outro, o que não ocorria, pois cada um se julgava superior ao outro e, assim, tornavam-se iguais novamente. Pouco a pouco, substituiriam os velhos galos que ocupavam importantes cargos na administração da sociedade galinácea. Além de se tornarem reprodutores oficiais, almejavam a reputação de líderes da granja. Esses eram todos os seus sonhos.

Gino, este vivia triste, pois nada do que se lhe apresentava como opção de carreira parecia ter alguma importância. O que aos outros significava o motivo de toda uma vida era-lhe pouco, muito pouco interessante. Ele próprio buscando a solidão, voltava às margens do rio, passava longas tardes observando o vento nos caniços, as águas que nasciam do horizonte inesgotável. Notou que quanto mais se aprofundava nos enigmas, mais a vida ganhava sentido, ainda que se pudesse imaginar o contrário. Porém, a tarde que lhe ensinava tais lições não era a mesma que passava pela granja. E o sol que lhe dava ver algo mais sobre a vida e seus mistérios apenas fazia sombra aos pés dos outros galináceos. Nada se esclarecia efetivamente, mas o conduzia sempre mais a buscar soluções aos problemas da existência. Ainda assim, não atinava com a verdadeira finalidade de suas divagações.

Certa vez, assistindo à passagem das águas, percebeu que poderia explorar o rio em favor da granja, simplesmente canalizando parte da correnteza, desviando-a em direção aos galinheiros. Durante vários dias, organizou mentalmente a construção de um canal. Agrupou ideias, arquitetou planos, traçou esquemas na terra úmida. Foi e voltou muitas vezes ao centro da granja, medindo distâncias com passos, considerando a posição dos galinheiros, buscando a melhor forma de posicionar o extremo do futuro aqueduto, onde a água se fizesse de melhor acesso à população. Os outros o viam entusiasmado, medindo alturas, calculando sombras e distâncias, comentavam sua estranha condição de alienado.

“Pobrezinho… “, dizia uma galinha mais velha. “Como pôde ter nascido assim, tão diferente dos outros?”

“Veja, comadre”, apontava outra. “Deve ter enlouquecido afinal. Vive feliz contando os passos na sombra, vem fazendo coisas estranhas ultimamente.”

Toda a granja passou a entender que Gino Grandecoco, de tanto afastar-se da comunidade, perdera definitivamente o juízo.

Às margens do rio, o frango cabeçudo montava as primeiras armações destinadas a sustentar a seqüência de caniços que levariam água aos pontos centrais do galinheiro. Trabalhava o dia todo, movido por um ardente desejo de ver a obra terminada. Imaginava a água bombeada através da extensa adutora, caindo ao fim do percurso e enchendo os bebedouros transbordantes nos quais os galináceos saciariam a sede, não mais dependendo do granjeiro. Além disso, a água não envelheceria como nas cuias e nos potes que lhes eram fornecidos, mas jorraria constantemente. Em dias de verão, os galináceos poderiam refrescar-se nos tanques próximos ao bebedouro coletivo sem precisarem esperar pelas chuvas. Assim, vislumbrando os diversos benefícios que traria o canal concluído, Gino trabalhava e trabalhava.

Curiosos, os peixes emergiam as cabeças da água para ver o que se passava.

“Mas o que é isso?”, cismou um velho cará cinzento. “Um estranho frangote construindo um engenho de caniços!”

“E vejam”, observou sorrindo um lambari. “O engenho começa bem junto ao rio.”

“Que será que ele pretende?”, perguntou um outro.

“Tolos, não percebem?”, disse o velho peixe. “Roubará nossas águas até que ressequemos no fundo lamacento.”

Gino aproximou-se da margem a fim de esclarecer suas intenções.

“O senhor está enganado. Este rio tem água em abundância, o suficiente para que possamos tomar um pouco emprestada de vocês sem que isso altere as coisas. Posso garantir que não irão notar a diferença.”

O peixe pessimista não pareceu convencido, mas não dispondo de argumentos para prolongar o diálogo, resmungou alguma coisa e voltou ao fundo das águas.

Dias depois, quando a construção já se encontrava na metade do percurso, alguns frangos apareceram para investigar o trabalho do misterioso espécime que tanto passara afastado dos seus. Intrigados com a armação de caniços, entreolharam-se confusos até que Gino lhes explicasse toda a ideia, esboçando desenhos na terra com um graveto. Detalhava, entusiasmado, o processo de desvio e bombeamento das águas, quando um deles o interrompeu:

“Mas para que serve isso?”

Desapontado, Gino enumerou as vantagens da canalização, buscando exemplos bastante simples.

“Se o granjeiro, por algum motivo, não trocar a água dos bebedouros, teremos nossa própria fonte.”

Um deles sorriu, como iluminado.

“Ora, isso é ridículo! O granjeiro nunca deixa de trocar nossa água.”

“Mesmo assim”, ajuntou um outro, “bastaria vir até o rio.”

Gino silenciou, e eles se foram, rindo e gracejando, deixando atrás de si o incansável construtor.

Logo que a notícia sobre seus obstinados projetos alcançou os ouvidos dos galos mais velhos, convocou-se uma reunião de emergência para que se esclarecessem os propósitos do que consideraram uma construção clandestina. Concluíram que semelhante canal poderia trazer complicações futuras. No caso de uma guerra com os peixes, o inimigo poderia facilmente envenená-los, sem sair do fundo do rio. Como não compreendiam, inclusive, o funcionamento do engenho, decidiram paralisar as obras definitivamente.

“Temos vivido assim por muitos anos”, discursou o sábio líder do encontro. “Não podemos permitir que um frango de ideias absurdas instale, em nossos galinheiros, sem nossa autorização, construções que ameacem nossa segurança. Proponho que se suspenda qualquer atividade relacionada a esse perigoso projeto.”

Gino recebeu a ordem com tristeza. Viu-se forçado a abandonar seus planos e, por mais esta vez, perdeu a esperança de transformar a granja num lugar melhor para se viver.

Um frango de bom coração, que fora seu amigo de infância, foi procurá-lo após conhecer tais notícias.

“Somos jovens ainda”, disse-lhe o amigo. “É inútil ficar perdendo seu tempo aqui. Pare de tanto pensar e venha comigo.”

Gino contou-lhe da estranha e infinita busca a que se havia destinado.

“Agora não posso voltar atrás. O ovo está quebrado, e eu estou aqui. Preciso de razões para estar aqui. Preciso descobrir o que está se passando por toda parte. Esta é nossa única chance, a vida.”

O outro tentou dissuadi-lo, dizendo que não havia respostas. Cada um cumpria sua parte, um pacto com a natureza. Ela lhes concedia a vida, eles, em troca, contribuíam para expandi-la, em nome de sua raça.

“Isso é tudo”, disse o amigo. “Agora, como você disse, estamos aqui. Tratemos de nos acasalar, construir nossos ninhos e dar início a novas ninhadas. Por que nos torturarmos com mistérios? Assim é o eterno ciclo. Nossa morte, a vida de outros frangos, outras frangas, novas ninhadas. Nada podemos fazer, Gino. Assim sempre foi. Assim será sempre, e isso é tudo.”

“Não”, retrucou o cabeçudo. “Não basta continuar o ciclo. É preciso que nos preocupemos com o destino das sucessivas gerações que levarão adiante a nossa raça, nas asas do tempo. Ou nada faz sentido, e não é justo que continuemos existindo.”

“Compreendo suas razões, Gino. Mas basta que ajudemos a povoar a granja e… Bem, ninguém sabe o resto.”

“Não, meu amigo. É o mais cômodo. Mas não basta. Posso estar errado e mesmo ser um louco. Mas sinto que não basta.”

“Que fazer então? Ninguém tem as respostas que você procura, Gino.”

“É verdade, ninguém tem. Mas creio que algum dia, em alguma parte, alguém como um de nós compreenderá. E tudo passará a ser diferente.”

Em homenagem a um dos galos mais velhos, que havia conseguido, com asas experientes, voar até o muro que estabelecia os limites da propriedade, houve uma festa na granja. Considerado por muitos um dia histórico, toda a comunidade aplaudiu o velho líder que, entrevistado após a façanha, declarou, para surpresa geral e ao contrário do que se pensava, que o muro não era o fim de tudo, sim um marco que os separava de outros horizontes. A notícia de que se estendiam mais terras com árvores e montanhas do outro lado causou um forte impacto nos habitantes da granja: havia algo além do muro!

Gino recebeu as novas com grande satisfação, pois tudo aquilo coincidia com algumas de suas ideias e lhe servia de primeira pista para o esclarecimento de alguns enigmas, tarefa a que vinha se dedicando há tanto tempo.

“Enfim, algo que parece sensato”, animou-se. “Se de onde estou posso ver a outra margem, a curva do rio e as árvores no horizonte, é bem provável que isso tudo continue do outro lado, além do muro.”

Admitindo isto, tinha pela frente uma vasta dimensão a ser explorada e compreendida, um espaço diante do qual a granja não passava de um cercado insignificante e ridículo.

Fascinado com as novas perspectivas, Gino empenhou-se em descobrir uma maneira de voar até o muro. Passou a dedicar todo seu tempo ao aperfeiçoamento do que seria a primeira etapa de uma fantástica aventura. Após muitas observações, concluiu que poderia desenvolver suas asas com uma ginástica específica, inventada por ele mesmo. Escolheu uma rocha saliente junto à margem do rio e, do alto dessa plataforma natural, arriscou uns primeiros saltos, buscando a maior distância possível e esforçando-se por manter o corpo suspenso pelas correntes de ar. O projeto de voo terminava sempre com um bom banho, mas ele não desistia. Sentia estar progredindo, mesmo lentamente.

O velho cará cinzento espichava a cabeça para observar as estranhas manias do frango.

“O que ele está fazendo desta vez? Se não enlouqueceu definitivamente, inventou um novo esporte sem nenhum propósito.”

Gino não se importava. Já não precisava da plataforma: as asas revelavam-lhe um ligeiro desenvolvimento. Com alguns passos, podia deixar o chão e flutuar alguns metros. Não caía mais no rio: sobrevoava as águas e retornava à margem dominando sempre mais a difícil, mas não impossível, arte de voar.

Nos galinheiros, outros empenhavam-se em repetir a proeza de alcançar o alto do muro, sem resultado. Embora os velhos galos insistissem nas chances dos mais experientes, raramente um dos galináceos idosos conseguia, com um voo desesperado e sem técnica, sequer chegar perto do topo do muro. Gino assistia às experiências dos outros frangos, via que os voos eram desordenados e sem rumo, quase casuais, e só mesmo uma milagrosa lufada de vento os levaria à altura que pretendiam. Alguns, após frenéticas reviravoltas, chocavam-se contra o muro. Furiosos com o fracasso, culpavam o vento contrário e as condições desfavoráveis.

“Eles apenas querem”, observava o cabeçudo. “Mas não se dão o trabalho de pensar. Voam com fúria, por uma recompensa, não imaginam talvez o que significa ver o outro lado.”

Apesar de sua enorme cabeça, o voo de Gino já alcançava consideráveis altitudes com mansidão e leveza, guiado principalmente por um imenso desejo de conhecer o inexplorado.

No dia em que a Granja Belaroba comemorou mais um de seus aniversários, os habitantes reuniram-se na área central, entre o muro e os galinheiros. Discursos, bandas e desfiles, homenagem aos líderes e aos galináceos mais velhos, aplausos, muita festa.

Em meio às solenidades, um dos mais respeitáveis administradores subiu ao palanque e anunciou a decisão do Conselho Galináceo Superior.

“A grande surpresa que tínhamos para este dia é um magnífico prêmio àquele que conseguir pousar no topo do muro. O concurso é aberto a todos.”

O líder foi vivamente aplaudido, e logo teve início uma série de tentativas, aos olhos de uma multidão delirante.

O primeiro concorrente era um frango de peito estufado e penas coloridas que causou boa impressão, especialmente junto ao público feminino, pois as franguinhas, na verdade, mais viam as penas coloridas. Anunciados seu nome e sua nobre ascendência, o que muito agradou o público em geral, o belo espécime preparou-se para voar, correu em direção ao muro, batendo vigorosamente as asas, numa carreira emocionante e desesperada e, justiça seja feita, levou a cabo todo o trajeto com muito empenho até dar com a cabeça na base de seu objetivo. Recebeu os aplausos da comunidade, mesmo porque seu conhecido sobrenome, de alguma forma, intimidava as vaias e os escárnios que seriam próprios de tais situações. O entusiasmo do público feminino era o mesmo. As frangas não se incomodavam com o tal muro, viam sim as penas coloridas que o elegante concorrente ainda ostentava.

O segundo aventureiro era um frango de asas largas, que parecia um forte candidato ao prêmio. Correu uns metros, estendeu as asas na horizontal e, após um forte impulso, levantou voo. Descreveu diversos círculos, próximo ao chão, buscou furiosamente alcançar altitudes mais elevadas, porém nem mesmo ele sabia manipular suas forças de forma satisfatória e, ao contrário do que se esperava, seu voo foi rasante, sem nenhum senso de direção, levantou muita poeira e não chegou a nada.

Outros tentaram, poucos alçaram voo, menos ainda alcançaram alguma altitude, e nenhum deles chegou a tocar a parte mais elevada do muro. Em meio às sucessivas e frustradas tentativas dos galináceos, o administrador voltou ao palanque e propôs que se encerrassem as festividades, pois não se encontrava, entre os candidatos, um frango capaz de voar de maneira convincente. Interrompendo o orador, uma voz tímida e ansiosa fez-se ouvir da multidão em silêncio.

“Um momento, um momento”, pediu Gino, abrindo caminho em direção ao palanque.

Aproximou-se trôpego, postou-se desajeitadamente ante o galo administrador e baixou um pouco a cabeça, como era seu natural. Todos o conheciam. O frango cabeçudo e estranho que vivia às margens do rio, cuja existência sem sentido não trazia qualquer proveito à sociedade galinácea. Era curioso e inédito que Gino surgisse daquela maneira, em meio à multidão. Todos os olhos convergiram para sua figura; os habitantes da granja ansiavam pelo desfecho da cena. Um grande silêncio caiu sobre todos. O velho líder procurou ser direto.

“Sim, rapaz. Diga o que quer.”

“Eu… gostaria de tentar.”

Um murmúrio farfalhou entre os espectadores. Risadas abafadas e cacarejos confusos encheram o ar. O galo entortou um pouco o bico, pois não sabia sorrir.

“Vamos encerrar as comemorações agora, rapaz”, disse ele prevendo outro fracasso. “Quem sabe em outra oportunidade…”

Ao som dessas palavras, muitas vozes se confundiram. A multidão reunida na área central foi aos poucos se dispersando, sem dar mais atenção ao frango cabeçudo e às suas estranhas atitudes. Gino permaneceu imóvel ante o palanque vazio, fitando o alto do muro como um tolo. Então, no meio de tudo, pôs-se a correr, abrindo asas desenvolvidas pela ginástica, e ergueu-se no ar num voo calmo e tecnicamente perfeito. A multidão voltou-se para ver. Uma infinidade de olhos perplexos acompanhou a trajetória do frango rebelde. Gino alcançou o alto do muro, pousou por um instante apenas e alçou voo novamente, deslocando-se para cima e sempre mais, descrevendo círculos suaves acima das muitas cabeças que se reduziam a grãos, vistas do alto. Alguns apontavam o frango voador, mostrando aos outros que ele parecia sorrir nas alturas. Algumas voltas mais no espaço azul, e Gino seguiu uma linha reta imaginária, apontando para além do muro, ao horizonte de outras terras, por fim deixando o campo de visão de seus semelhantes, desaparecendo para sempre.

Gino Grandecoco, desde então conhecido como o Grande Frango Voador, tornou-se uma espécie de lenda que até hoje é contada na Granja Belaroba, geração após outra. Muito se falou a respeito do cabeçudo, de sua estranha maneira de viver e seu voo inigualável com destino a dimensões desconhecidas.

Muitos ovos foram chocados, muitas ninhadas sobrepuseram-se no tempo. Mas a lembrança de um ser que um dia voara tão alto não foi jamais apagada. Os administradores da granja eram outros, as leis se modificaram, construíram-se canais de irrigação até o centro dos galinheiros, a exemplo das experiências do frango pioneiro. A inacabada construção de caniços é hoje um monumento histórico que os jovens pintinhos vão visitar com os pais, movidos por gratificante curiosidade. Se, por um lado, a memória coletiva é fraca, por outro a obra de Gino permanece no tempo. E todo aquele que passar alguma vez por ela saberá, com toda certeza, que ele viveu.

Este é o segundo conto da coletânea A canção de pedra, publicada em 1985.

1a versão, 1983. 2a versão, revisada, 1989.

Leia mais de A canção de pedra: Lauro e o monstro

Imagem: Tom Thompson. Rio do norte. 1915.

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