Office in a Small City por Edward Hopper

A grande árvore da vida

Caminharam até que, das trevas que a tudo envolviam, emergiu a nebulosa imagem de uma porta de arco, solidamente incrustada num altíssimo paredão de pedra, do qual não se via o fim.Era como se um muro intransponível barrasse todo o outro lado do mundo. Aproximando-se, Henrique pôde ler o que se inscrevia no arco superior da porta, e então um calafrio perpassou-lhe os ossos.

Era como se um muro intransponível barrasse todo o outro lado do mundo. Aproximando-se, Henrique pôde ler o que se inscrevia no arco superior da porta, e então um calafrio perpassou-lhe os ossos.

1. A aldeia

À margem do grande rio lamacento, na aldeia onde moravam seus pais, Henrique caminhava sem que alguém o percebesse, cismando sobre o destino das águas, o seu próprio e dos que o cercavam. Sem imaginar que pudesse deparar-se com uma fase tão difícil de seu aprendizado, vivia torturado por tantas dúvidas que pressentia estar caminhando a uma perigosa degradação de sua existência confusa.

Uma angústia por sentir estar se perdendo de tudo aflorava-lhe ao coração, mostrando-se cada vez mais pungente, inevitável. Quem o visse bebendo com os amigos e sorrindo às pessoas não imaginava que pudessem ser tão amargas suas horas de solitária meditação. Afinal, era um jovem amável e inteligente, os que o conheciam queriam-no como companheiro, um membro da comunidade, incentivando-o para que nunca deixasse de crescer em seu próprio caminho.

Porém, ainda que o esperasse uma carreira brilhante ou que lhe sorrissem algumas jovens da aldeia, Henrique pensava em deixar os estudos e não se sentia satisfeito ao lado de um corpo feminino. Algo lhe faltava e, após muito caminhar à margem do rio escuro, começou a desejar desesperadamente um sentido maior para a vida, simplesmente para que pudesse continuar.

Olhava as águas sujas, perguntando-se se alcançariam mesmo o oceano ou se despencariam em algum abismo. Sua vida teria sido desviada de seu curso, arrancada como a folha de uma árvore? Acima de tudo, existiria na verdade a Grande Árvore da Vida?

Desde menino, ouvira sobre a existência de um espírito supremo, a Grande Árvore, que, com sua magnânima sabedoria e incompreensível plenitude, regia todos os destinos, fazia sombra sobre todos os seres. No entanto, tudo o que acontecia era tão desordenado e sem lógica que não parecia estar sendo regido por algum espírito supremo, menos ainda poderoso e sábio.

Mas se existisse algo além da vida, ao menos poderia obter respostas. E a falta de sentido que minava as coisas talvez fosse compensada por poucas palavras que a tudo esclarecessem. Era fundamental que se pusesse a desvendar tais dúvidas e segredos, era também necessário compreender a finalidade de estar vivo, respirando e caminhando, assistindo à passagem dos dias. E ninguém mais do que Henrique precisava de respostas. Sentindo-se alheio ao modo de pensar dos que o cercavam, à dócil aceitação do destino, via-se forçado a buscar no silêncio os vestígios da verdade. Tendo chegado ao auge de seu tormento e, como numa encruzilhada, era preciso decidir.

Por várias noites, insone e amargurado, oscilou entre procurar seriamente a verdade sobre o Grande Espírito da Árvore ou dar um fim à própria vida. Valeria a pena sair em busca de uma fantasia tão nebulosa? A realidade não seria tudo? Teria mesmo coragem de destruir-se? O fato é que deveria escolher, e o fez. Haveria de sair à procura do desconhecido, percorreria todos os caminhos possíveis e não se deteria enquanto não encontrasse ao menos uma pista, um sinal. Se a tentativa fosse vã, cuidaria de acabar consigo mesmo, e tudo estaria em paz.

Abraçado à firme resolução de entregar-se à busca, anunciou aos seus que havia chegado o dia de partir. Uns felizes por ter encontrado seu destino, outros lamentando ter se perdido, os que o conheciam foram despedir-se dele junto à imponente rocha que demarcava os limites da aldeia. Levando alguns pertences e, acima de tudo, sua férrea obstinação, seguiu por uma estradinha estreita e, do horizonte, acenou ao passado pela última vez.

Ilustração da edição original

2. As cidades

Alcançando um movimentado núcleo da civilização, Henrique passou a observar todas as coisas, todos os lugares, as centenas, milhares de pessoas por infinitas ruas. Acostumou-se a tudo e, enquanto participava dos mercados ruidosos e estações superlotadas, aprendia também sobre as complexas necessidades humanas, os desejos de cada um, os sonhos e o medo.

Viu muitos homens com grilhões nos tornozelos, arrastando pesados relógios. Eram escravos. Para eles, não havia esperança nem solução, mas prosseguiam levando cada um seu relógio inquebrantável. Não se libertavam, harmonizavam-se com os grilhões e os relógios como se fosse tudo um mesmo ser.

Outros, os registradores. Esses tipos circulavam pelas ruas e a tudo anotavam minuciosamente. Henrique cruzou com um homenzinho obstinado, cujos olhos abriam-se enormes por trás de exageradas lentes. Resmungava nomes em voz baixa, olhava para todos os lados e anotava, num bloco de papel, o que via.

“Uma árvore, dois cães, um bueiro…”

Henrique seguiu seus passos, andou ao seu lado. Viu que ele anotava cada palavra como se fosse preciosa.

“Que está fazendo?”, perguntou.

“Não está vendo? Registrando tudo o que existe. Duas nuvens, um hotel…”

“E por quê?”

“Para que tudo possa ser analisado. Ordenando e classificando todas as coisas, estaremos facilitando a compreensão de tudo o que nos cerca. Um muro branco, três postes, uma sombra…”

O forasteiro não soube o que pensar. Parecia-lhe válido classificar as coisas, mas muitas delas eram efêmeras ou sujeitas a transformações sucessivas. Deixou de seguir o registrador, vendo-o perder-se na multidão com seu bloquinho e seus pesados óculos.

Henrique mais aprendeu em seus dias na cidade e, após conhecer tantos tipos humanos e situações, decidiu partir novamente.

Percorreu cidades desconhecidas, e vários anos de sua juventude passaram-se em viagens de viver. Aprendera o bastante para constatar que havia se desviado de seu verdadeiro caminho. Precisava desprender-se de certas aparências e buscar o que de fato reclamava seu íntimo desconhecido, decifrar os limites de tais sombras, o motivo de seus insistentes erros, a origem de certos desejos incompreensíveis que se alojavam no fundo de seu ser.

3. Os rituais

Nesse período, sentiu novamente a mesma necessidade do início, encontrar seu primeiro e maior objetivo: a Grande Árvore da Vida.

Amigos o levaram a participar de um grupo ritualístico, cujo líder era famoso por suas belas palavras e admiráveis conhecimentos sobre o Espírito da Árvore. No templo, Henrique assistiu a um de seus discursos, constatando a atração carismática que o rosto e as expressões do mestre exerciam sobre os que ali se reuniam. As vestes ornamentadas, a voz paternal, os menores gestos, tudo nele era sereno e tranqüilizador. Esse homem, cuja presença transmitia uma estranha segurança, era seguido de perto e por toda parte por um rapaz de olhos brilhantes e rosto como de um rato ardiloso. Todos os movimentos do líder eram assistidos por esse fanático servo que, ao som de suas palavras, movia a cabeça com afetada submissão. O homem falou sobre os ilimitados poderes da Grande Árvore, citando castigos do passado, em forma de catástrofes, que eram a manifestação do Espírito furioso contra uma humanidade desobediente e incrédula. Lembrou os nomes já conhecidos dos líderes de antigas tribos, homens santificados e escolhidos pelo Grande Espírito para guiar os seus em nome da fé. Por causa disso, travaram-se muitas guerras gloriosas, inclusive guerras santas e cruzadas pela paz. O homem terminou o discurso com voz amena, lembrando que, aos olhos do Espírito, todas as pessoas eram iguais. Reafirmou ainda a infinita bondade característica do criador de todas as coisas.

Todos baixaram a cabeça com humildade, agradecendo ao mestre por mais um discurso, menos Henrique, perdido entre tantas contradições. Ele observava o silêncio reinante enquanto se esforçava por compreender o que lhe parecia irônico e inaceitável. Se o Grande Espírito era fonte de extrema bondade, como pôde ter castigado tão severamente alguns de seus filhos? Se todos eram iguais, como podia haver escolhidos? Por que seriam uns melhores que outros, se todos erravam, aprendiam e caminhavam com certa semelhança? Em nome do Grande Espírito, muito sangue se teria derramado através dos tempos. Para quê? Seria aquele o mesmo espírito, a Grande Árvore da Vida, o que tanto ele procurava?

O mestre dos cultos era muito ocupado, atendia a inúmeras atividades além de sucessivos convites para celebração de cerimônias. Henrique percebeu que dificilmente teria uma chance de conversar com ele e expor-lhe suas dúvidas. Enquanto isso, assistia aos monótonos rituais com esperanças de que, num daqueles discursos, uma frase ou mesmo uma palavra pudesse dar-lhe alguma pista, e foi isso o que o impediu de abandonar da primeira vez as cerimônias de vago significado.

Durante as comemorações de uma data sagrada em que os fiéis rendiam homenagens ao Espírito da Grande Árvore, Henrique viu muitas pessoas unidas numa estranha caminhada que tinha, entre outras finalidades, pedir perdão por muitos pecados. Alguns iam descalços, ferindo os pés nas pequenas pedras, outros preferiam carregar algum peso às costas, impondo castigos a si mesmos. Nada daquilo parecia ter relação com o que o líder pregava. Se o mal, segundo ele, estava dentro do homem, como poderia ser punido fisicamente? E qual seriam os critérios do pecado a toda aquela gente, se os erros significavam algo diferente a cada um e variavam de uma consciência para outra?

Da porta do templo, o líder abençoava a passagem dos fiéis, ladeado por seu prestativo assistente. Henrique encontrou aí a oportunidade para dirigir-lhe a palavra.

“Mestre”, disse ele um pouco nervoso. “Tenho assistido a seus discursos, e muito me agrada a maneira com a qual o senhor nos fala sobre os poderes do Grande Espírito. Mas sinto-me ainda vazio e confuso a respeito de certas…”

“Louva o Espírito da Árvore”, disse o líder com ar bondoso. “As coisas todas vêm a seu tempo, e o teu caminho se iluminará.”

“Perdão, mestre. O senhor não me entendeu. Eu queria apenas algumas respostas, será que não poderia ajudar-me?”

“No que estiver ao meu alcance…”, respondeu o sábio.

Henrique engoliu em seco. Não lhe havia ocorrido que aquele homem tão seguro também estivesse preso a limitações.

“O que eu queria saber… Não consigo formar em minha mente uma imagem do Grande Espírito, que é a Árvore da Vida, e também não compreendo por que se esconde de nós. Como é ele, mestre?”

“Não se pode vê-lo, filho, porque está além do alcance de nossos pobres olhos. Ninguém sabe como ele é, ainda há muitos segredos, e não nos é dado conhecê-los.”

“Por que não?”

“Porque ele assim o deseja. É preciso respeitar seus desígnios.”

“É preciso respeitar”, repetiu o ajudante com cara de rato.

“Mas… É tudo tão vago. Não sei o que devo fazer para encontrá-lo. Se eu sofresse, iria para junto dele?”

“Naturalmente que sim.”

“E se fosse feliz?”

O mestre suspirou e pousou a mão em seu ombro paternalmente.

“Tem calma. Tudo virá a seu tempo. Tua pressa te afasta da verdade. E o Espírito da Árvore é a maior das verdades.”

“A única verdade!”, ajuntou o assistente.

“Olha para toda essa gente”, continuou o sábio. “Ninguém pergunta para onde ir, pois são todos movidos pela fé. Desejam ser punidos por seus pecados e, com isso, sem perceber, caminham em direção à Grande Árvore da Vida.”

Henrique voltou-se para a procissão. Como poderia aquela exaustiva caminhada levá-los a alguma coisa?

“Então, é esse o caminho?”

“Sem dúvida. Não há outro caminho.”

“Nenhum outro caminho”, ecoou o rato.

Henrique desistiu definitivamente dos rituais, pois, além de sentir-se desviado de sua busca, já não suportava os cultos metódicos que a tantos impunham regras inúteis e os embriagavam com palavras impregnadas de beleza e equívoco.

4. Os lagartos

Deixando a serenidade dos templos, hesitou sobre seu próximo passo. Julgou ter explorado nas cidades o que lhe era necessário e não voltou aos centros urbanos. Tomou um caminho qualquer e foi por ele, abandonando tudo o mais.

A nova estrada era cheia de poeira, mas tinha um horizonte largo, além de muito espaço para caminhar. Partira com estranhas esperanças, e tudo era fascinante e desconhecido. Pássaros e árvores nunca vistas faziam-no pensar que a vida podia ser tão mais maravilhosa do que como a conheciam os homens. Ao mesmo tempo, era sórdida e caótica, exigindo ser decifrada. O mundo, um confuso caleidoscópio onde os opostos embaralhavam-se desordenadamente, formando situações sem resposta.

Henrique ainda caminhava quando ouviu um murmúrio de vozes vindo de umas folhagens próximas. Parou para ver, e distinguiu dois lagartos no chão de folhas, um de cor cinzenta, outro verde, empenhados numa espécie de discussão amistosa.

“A vida é um privilégio”, afirmava um.

“A vida é um castigo”, rebatia o outro.

“Devemos nos alegrar por vivermos. Tanta vida ao redor, e nós participando de tudo…”

“Por que alegrarmo-nos? Por toda parte, também se morre.”

“Mas são os seres vivos que nos interessam.”

“Eles morrem um dia. Quando se está vivo, não se quer morrer. Depois que se morre, não faz diferença.”

“Talvez exista algo além da morte.”

“Talvez não haja nada além da morte.”

“Devemos acreditar, cultivar esperanças.”

“Acreditar é fácil.”

Oculto a certa distância, o viajante achou engraçado que os lagartos discutissem com tanta seriedade, mas percebeu que poderia, ali sim, aprender algo novo. Pareciam sinceros e, de certa maneira, mais sábios que o líder dos rituais. Havia um fundo de verdade em tudo o que diziam, tanto o verde quanto o cinzento, e parecia, a Henrique, que o último a falar estava sempre com a razão.

“Viver é bom”, sorria o verde.

“Viver é ruim”, lamentava o cinzento.

Há quanto tempo estariam discutindo? Pareciam incansáveis, nada mais lhes ocupava a atenção além do embate de opiniões a que se haviam dedicado.

“Olhe ao redor: a natureza, o céu e a terra. As estrelas, as cataratas, os campos, como tudo é belo! Os dias de sol e também os de chuva, as flores se abrindo…”

“Sim, tudo maravilhoso. Mas há as tempestades, os ventos devastadores. No inverno, as flores morrem, e as cataratas são geladas. A beleza só existe onde queremos vê-la. Algumas estrelas, por exemplo, são planetas cheios de pedra e areia. O que vemos é luz refletida, um brilho falso.”

“Mas tudo o que existe, árvores ou estrelas, todas as coisas devem ter uma função, existem por algum motivo.”

“Que motivo? Existem porque existem, e são todas inúteis. Como poderiam ter outra função além de existir?”

O furtivo espectador, atrás de sua árvore, já se sentia exausto de tanto escutar. Estava claro que o debate seria longo, mas Henrique entendia estar aprendendo muito em pouco tempo, o que o animava a ficar sempre mais. Difícil era decidir qual deles seria o melhor ou mais certo, pois um mesmo grau de coerência os equilibrava, os afastava e os unia. Os lagartos prosseguiam, com admirável seriedade.

“A vida é curta, devemos apreciar as coisas que nos cercam.”

“A vida custa a passar, há muita desilusão e angústia pela frente.”

“Conheço alguém que, vendo a vida como apenas uma, decidiu dedicar-se inteiramente ao bem.”

“Conheço alguém que, vendo a vida como apenas uma, decidiu dedicar-se inteiramente ao mal.”

“Eu me sinto feliz por ter nascido e estar aqui.”

“Quanto a mim, lamento ter nascido sem que pudesse escolher.”

“A vida é uma bênção.”

“A vida é uma maldição.”

“Você um dia há de concordar comigo.”

“Portanto, você um dia também há de concordar comigo. E trocaremos de lugar.”

“Ainda que você me convença, poderemos estar errados os dois.”

“Digo-lhe o mesmo.”

“Um dia, tudo será melhor.”

“Ou pior.”

“Tenho esperanças.”

“Eu não.”

“A vida encontrará um caminho.”

“Um caminho para quê?”

Henrique percebeu que o debate não teria fim. Os lagartos jamais chegariam a um acordo, mas cada um encontraria sua própria verdade, era o que parecia. A certeza de um sendo sempre o oposto da certeza do outro, com imprevistas variações, mas a cada um cabendo uma verdade, qual fosse, e sendo assim contrários, harmonizavam-se reciprocamente.

5. A última paisagem

O caminho de Henrique levava aos lugares mais surpreendentes. Antes, quando partira da aldeia, podia imaginar o que viria pela frente, as pessoas ou ele próprio. Chegara a uma altura de seu aprendizado em que as pequenas ilusões já se desvaneciam antes de tomarem forma. E, sem deixar vestígios, ele acreditava. Parecia-lhe que desde sempre procurara a Grande Árvore, seus segredos, e de certa forma perdera a noção de tempo: não sabia mais em que pontos de seu trajeto estivera próximo da verdade ou em que outros se distanciara, apenas tudo prosseguia.

A estrada de poeira levava a uma paisagem obscura, noturna, de céu sem estrelas e vegetação escassa. O vento e o movimento dos arbustos, as águas de um regato sujo, tudo ao redor sugeria desolação e morte. Henrique tentou habituar-se ao ambiente estranho, mas, sem que percebesse, já se havia contagiado pela melancolia das coisas. Sentiu-se invadido por um forte desejo de chorar ou gritar. Mais à frente, junto a um tronco caído, divisou o vulto de um homem em silêncio. Aproximou-se, e pôde então verificar o rosto de um velho escaveirado que nada dizia. Estremeceu por um momento, pensando que aquilo era a morte. Mas não, era apenas um homem, um homem como ele, porém mais velho, mais viajado e cansado. Tinha o aspecto lúgubre de um fantasma, estava de tal forma integrado às trevas que parecia transparente ou parcialmente invisível. Percebeu a chegada de Henrique, voltou-se lentamente e sem dizer palavra, dirigindo-lhe apenas seus olhos fundos e gastos. O jovem, com o pranto contido na garganta, perdeu o controle de suas emoções.

“Por favor”, pediu, quase chorando. “Diga-me alguma coisa. Mostre-me o que faz a vida tão triste…”

“A vida é sempre triste”, disse o ancião. “Eu também me entreguei à busca, há muito tempo, não me lembro mais. Os que escolhem este caminho devem acostumar-se à ideia de paisagens como esta, cheias de morte, uma vez que a procura da verdade é tão terrível que talvez não possa ser paga com a própria vida.”

“Mas, diga-me, como veio parar aqui? O que encontrou?”

“Eu encontrei”, disse o homem, “a pior de todas as coisas.”

“A pior… coisa?”, gaguejou Henrique.

“A pior coisa”, repetiu o homem-fantasma. “Encontrei a porta que divide o mundo e é o fim de todas as esperanças. Não quero falar sobre isso, não vale a pena.”

E deu-lhe as costas, os passos lentos.

“Não, espere!”, chamou Henrique, mão a segurá-lo pelo ombro. “Leve-me até ela.”

O fantasma o fixou em silêncio.

“Venha”, disse por fim. Tomou um caminho de pedras que era um declive sempre mais vertiginoso, margeado por grandes plantas sombrias.

Caminharam até que, das trevas que a tudo envolviam, emergiu a nebulosa imagem de uma porta de arco, solidamente incrustada num altíssimo paredão de pedra, do qual não se via o fim. Era como se um muro intransponível barrasse todo o outro lado do mundo. Aproximando-se, Henrique pôde ler o que se inscrevia no arco superior da porta, e então um calafrio perpassou-lhe os ossos.

ONDE TUDO TERMINA

Os dois viajantes entregaram-se ao silêncio. Diante das palavras corroídas, só uma brisa fria sinalizava algum movimento.

“Agora você vê”, disse o velho obscuro. “Eis o fim de todos os caminhos, seja ele qual for. Não se pode voltar atrás. É a última paisagem.”

Devagar, virou-se e voltou pela estrada de pedras com seu mesmo passo. Henrique viu que ele desaparecia na escuridão. Pensou em chamá-lo, mas sentiu que nada mais tinha a dizer. Deixou que ele tornasse ao seu mundo de sombras e, por sua vez, ficou ali, frente à sólida muralha. Era aquilo a pior coisa de todas? A porta escura, como uma tenebrosa sentinela, erguia-se imponente entre as rochas, desafiando os sonhos. Ali, as esperanças batiam em vão: por trás da porta, não havia nada. Toda a caminhada, a busca, tudo se confundia com o gosto amargo da verdade. Angustiado, traído, exausto por tanto viajar, Henrique deixou-se cair, soluçando feito uma criança, o pranto devolvendo-lhe lágrimas desconhecidas como nunca antes havia chorado. Só o que desejava era encontrar um sentido para sua vida. Teria errado em buscar conhecer a Grande Árvore? Era só aquilo (as trevas, a porta maciça, o muro infinito) o que lhe era dado encontrar? Apertou o rosto entre os dedos nervosos até que, vencido pela fadiga e pelo sono, foi aos poucos silenciando. Em posição de feto e cerrando pesadamente os olhos, Henrique finalmente adormeceu.

Ali, em suas próprias trevas, mas alheio à paisagem da noite externa, restava um lado esquecido de si mesmo, o que somente se manifestava durante os sonhos. Por via dessa fonte inesgotável era que nasciam novas paisagens, o ser entregue às suas profundezas. À medida que o sono o dominava, sentiu como se uma mão leve e materna o consolasse. Abriu os olhos (julgou tê-los abertos), viu com assombro que estava não diante de uma grande porta, mas de uma grande árvore, bela e harmoniosa. Tendo perdido a noção do real, Henrique sentiu-se fortemente atraído por aquela força, de certa forma sua própria força, ainda em estado primitivo. A árvore silenciosa destoava de qualquer ideia que dela se fazia, qualquer das imagens propostas pela imaginação infantil dos homens. Nada tinha de inalcançável, ao contrário, estava ao lado de Henrique e à sua frente, ao redor, não havia um determinado ponto onde ela de fato estivesse, nem ele sabia mais se sonhava ou não. Sentiu que alguns ramos se estendiam em sua direção, tocavam seus cabelos, e então fechou os olhos que acreditava ter aberto alguma vez, deixou-se envolver por aquela sensação contagiante e singular. Seu caminho teria sido o mais difícil, mas foi somente encontrando a última porta que tudo finalmente se abriu: nas trevas e no caos, a música do que fosse a Árvore harmonizava-se. E ele renascia de tudo quanto fora antes.

A Árvore, como a queriam os homens, não existia. Mas não era possível atribuir todas aquelas nítidas sensações a um simples sonho. Devia haver um ponto desconhecido em sua lágrima, uma fonte onde tudo existia buscando mais vida, uma dimensão até então adormecida, oculta e sem ser suspeitada.

Quando afinal se deu conta de que nada poderia durar sempre, notou que a Árvore e tudo o que o envolvia desvanecera-se, deixando-o só novamente, os olhos iluminados. Não era também a noite medonha ou a porta cerrada o que presenciava. Tornara-se indiferente a qualquer nova paisagem, fosse ela árida ou florida, pois era ele que havia mudado. Compreendia por fim um pouco de si mesmo e do que lhe pertencia: não era preciso viajar por tantos lugares. Importante era que conquistasse sempre mais os caminhos desconhecidos de seu íntimo e, sendo assim, já não podia distinguir os limites de seu ser das fronteiras do mundo, não sabia mais onde terminava a realidade nem onde se abriam os sonhos.

Este é o quarto conto da coletânea A canção de pedra, publicada em 1985.

1a versão, 1984. 2a versão, revisada, 1989.

Leia mais de A canção de pedra: A canção de pedra

Imagem: Vincent van Gogh. Estudo para uma árvore. 1882.

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