Office in a Small City por Edward Hopper

Percurso pós-9

Três mulheres, ao longo de minha vida e durante meu mundo, tornaram real minha capacidade de amar. Eu não sabia que podia amar. E hoje entendo também que só a elas eu amei, mais a ninguém nunca – nunca jamais em tempo algum nenhuma outra nenhumas outras.

De uma delas, nunca tive certeza do nome: ouvira por acaso uma palavra-ela, arriscava três ou quatro variações, na bruma. Brilhava discreta em uma livraria, confundia-se com os livros, eu a confundia com um livro, uma aventura quieta, contida em código. Olhos quase cinzentos, lábios que nunca se fechavam completamente – personagem forte, à procura de um autor.

Outra, essa colega de trabalho: acidental ocasional avulsa e quase ausente, seu departamento era outro, toda a sua vida era outra, distante tristante quadristante de meu alcance. Sua figura especialmente singular (para mim, pelo menos) fazia-se intensa e devastadora a cada vez que eu a reencontrava entre os pátios e corredores da universidade, por sorte por artes por nada. Era baixa, pequena, não se destacava em nenhum ponto propriamente. Mas ela toda roubava-me o foco, trazia-me o fogo. Sorria, e eu sorria menos, cauteloso. Você, sempre linda, não é? Imagina, querido: gentileza sua. Eu me arrepiava com sua voz, absolutamente única. Se alguma vez ela suspeitou de meu amor absurdo deve ter sido por causa de meus olhos molhados de fascínio, sem disfarces sem defesa. Queria cair ali mesmo, à sua frente: enfermo enfraquecido enfeitiçado… Abatido por seu domínio.

A outra mulher (não a terceira, não estão em ordem, eu não estou em ordem), não sei ao certo se existe. Mas acho que existe. Porque ela conversou comigo em um sonho marcante surpreendente arrebatador no qual nada, praticamente nada, aconteceu. Essa, que não existe, tem a pele clara, um rosto comum simétrico belo, cabelos castanho-escuros até a altura dos ombros, caídos na testa, arranjados de um lado e outro, muito sutilmente (penso em presilhas minúsculas), mas desarranjados no geral, com pontas escapando das orelhas e ao redor do pescoço. Eu a encontrei por duas vezes, no mínimo, e agora não sei se conversamos de fato ou se ela apenas esteve comigo nas profundezas suaves de uma noite mágica. O fato, já que estamos falando de fatos, é que ela existe sim: nós nos vimos e nos falamos um dia, antes que ela se transformasse nessa ilustre iluminada presença em um de meus sonhos mais nítidos. Ela fala comigo sem que eu ouça sua voz. Nunca a vi sorrindo. Percebo que se mostra um pouco preocupada, naturalmente, sendo assim como é, um tanto inquieta, mas sem alarde. Deve carregar coisas difíceis. Alguma claridade parece estreitar-lhe os olhos, e ela olha para mim como se mirasse um horizonte longínquo, sob o sol. Teria sido assim quando nos conhecemos em carne e sangue? O que sei, com toda certeza, é que eu a amo nebulosa e imensamente. Procuro, com grande esforço, recordar de quando estivemos juntos, se em outra cidade, se vinda ela de outra cidade alguma vez, nós a meio passo um do outro: o que teríamos dito, que não me ocorre claramente nem mesmo em fragmentos? Esse esforço para encontrá-la em meu passado é semelhante à obsessão inofensiva que motivou minha busca por um trecho musical de aproximadamente 18 segundos, vivo em minha memória aguçada, mas sem identificação, até quando o reconheci no finale de um concerto para piano de Prokofiev. Talvez, se mil vezes eu revisitar seu rosto falando a mim sem palavras, reencontre o momento real em que ela existiu tão próxima, fora de meu sonho.

Você se expõe muito. Não, Mônica. Engano seu. Não: eu não me exponho – eu não me confesso nunca. Tudo o que conto é sempre melhor e menos doloroso do que o que sei.

E o fantasma de uma delas, não direi qual, em meio à madrugada mansa, soprou-me a conclusão de um poema que não escrevi, que não escreverei – isso porque ela e um enorme silêncio olharam-me de frente.

Dístico à moda dos românticos

Perdi o sono, com o sonho que tive.
Perdi o sono para sempre.

No cais do porto: meu bisavô com seu meio sorriso quase permanente, como se desde sempre o houvessem desenhado assim sobre seu rosto. Ancestralidade próxima, longas eras perdidas, alimentando o presente. De pé diante dele, conto um maço de cédulas que tirei da carteira, enquanto evito seu olhar. Guardo a cabeça baixa, sob pretextos. Falar o mínimo necessário. Olha, eu já comprei a tua passagem: o vapor parte em três dias. Ele não se altera muito, conserva os lábios finos na horizontal, seu mesmo humor patético. Ah… Entendi. Eu o estou mandando de volta à Itália, compreende? Umas gaivotas passeiam pelo céu baixo. Um vento fraco e triste. Cinzas de claridades difusas. Ele usa as mesmas roupas gastas encardidas e pouco maiores que seu número, as mesmas de quando chegou aqui, vencido o oceano cor de âmbar de outro século. Não quero incomodar você com isso, entende? Eu estou bem aqui, de verdade, não preciso voltar. Não, não, fique tranquilo, é tudo por minha conta. Eu não podia fazer isso antes: mas agora tenho dinheiro. Agora posso resolver isso, sem problema. Acabo de contar as cédulas, fecho a carteira e me despeço dele com um tapinha leve quase sumido na lateral do ombro. Consegui não ver seu rosto, ao máximo. Melhor assim. Um pouco de mar escuro batendo nas madeiras. Gaivotas por perto. Então, adeus: o vapor parte em três dias. Agora tenho que voltar e me encontrar com a… a… a Camila. Certo então, agradeço de coração. Mas não deixa o teu pai saber disso, ouviu? Ele tem muito orgulho da gente ter vindo pra cá.

o tempo que me faz viver
o tempo que me vai matar
do âmago ao ômega
tem sido amigo da mãe, imigo de mim

Meu pai às vezes me contava sobre esse muro, perdido na região de Treviso. Os homens costumavam ficar de pé, encostados nele, confabulando sobre tudo o que existia no mundo. Alguns ficavam de frente para esse tal muro, pintado de azul pálido, tocavam-no com a testa, depois iam se acostumando e colavam a lateral do rosto à sua pele áspera. Ficavam assim, em silêncio. Como se houvessem encontrado alguma espécie espúria de prazer ou de transcendência. Como rezando para seu deus vaticano ou para alguma santidade da tradição romana para que não os privasse desse êxtase discreto e indescritível. Eventualmente, alguém saía de lá com um poema inteiro pronto na cabeça.

Todo dia em maio
requer minha atenção.

Eu era um menino bonito, quando não sabia das coisas.

Você trouxe as figurinhas, Margareth? Trouxe, olha: as figurinhas. Olha… Aqui… é a parte que a lula gigante tenta destruir o submarino. Sentados no banco de pedra, praça de relva baixa, tempo mágico de minutos voláteis que antecediam o horário certo de nossa aula particular. Margareth, um ano mais velha que eu: há onze anos participava do mundo. Um pouco maior do que eu, também. Puxa, são lindas. Eu nem sabia desse álbum, eu não tenho esse álbum. São fotos do filme, sabe? É, dá pra ver. São lindas. Tudo isso é lindo. Quero ter esse álbum também, quero dividir tudo com você, quero estar em algum álbum colorido com você. Sim, eu a transformei num cromo. Centro de minhas coleções perdidas. Você era rústica forte linda, sua cicatriz no queixo, seu rosto maior do que o meu, sua boca larga, seu sorriso, você era em tudo maior do que eu, e não se importava com a casa pobre onde morava. Mais solta e mais feliz do que eu, que pensava tanto – agora mesmo, pensando em como vencer a lula gigante, preocupado com isso. Vou trazer mais figurinhas amanhã, umas que eu não te mostrei ainda, que você não viu. Certo, quero ver sim, e olha: vai começar a aula, a professora ali, apareceu no portão. Vamos? Vamos. Tentei fazer uma canção sobre nós, ou sobre o meu egoísmo, sobre o meu amor infantil por você. Não consegui. Não sei cantar, não sei inventar, não sei para onde você foi – sem saber que se transformara em uma figurinha também, em uma personagem de meus tantos textos, sorrindo em cores. Oh, Margareth, como eu queria lhe contar isto!

Mônica, você pode me ajudar com isto, eu sei. Ajudo sim. Mas… o que é isso?

emigrantes imigrantes
escravos
barcos sujos
singrando sangrando os mares
sem grandes remorsos

S. fecha o livro, na cama. Seus óculos passam-me a impressão de que ela está envelhecendo. E é claro que está. Acabou de ler em voz alta (e suave) um poema breve, de amor perdido. Rosto voltado para mim. Você ficaria contente se tivesse escrito um poema assim? Não sei. Não. Eu nunca me contento com poema algum.

E esse muro em Treviso me fez recordar um muro só meu. Atrás do limoeiro, ele apenas se estendia esverdeado escurecido de musgo e matéria limosa. Suas mínimas rachaduras, tão bem desenhadas por ninguém. Porque já era muito antigo. Porque minha infância é muito antiga. Com suas mínimas rachaduras. Para um menino tolo como eu, por trás dele estendia-se o infinito, que é algo entre o desconhecido e o vazio. Nele habitavam, em movimento, todos os animais que eu conhecia (eram bem poucos até então), especialmente os pequenos cervos que observava no Bosque Municipal e pelos quais sentia uma afetividade terna e triste. Eles se movimentavam e às vezes apareciam mortos nesse painel-muro-limite. Só muito mais tarde, consegui associar tais visões àquelas pinturas rupestres, pré-históricas, perto de estarem vivas, a um instante de se movimentarem por si mesmas. Cenas-sonhos que se repetiam. Sonhos vivos da humanidade, petrificados depois de desaparecidos. Também outras lembranças são de eu havê-las recordado naquela mesma época, durante o dia, e haver pensado nelas. Eram imagens intensas e marcantes. O que eu sentia diante daquele muro? Bem pouco medo. Uma curiosidade incontrolável (mas não tinha ação, não podia mover-me de fato). Um desejo hipnótico imantado: de ficar ali, observando aquilo por muito tempo, talvez para sempre, e compreender tudo o que acontecia por toda parte. Meus ancestrais de Treviso, eu brincava comigo mesmo, teriam orgulho de mim, se eu o conseguisse. E tudo começava por essa vontade singular sorrateira sinistra, que muitas vezes me levou a temer que estivesse perdendo a razão. Mas não, eu nunca a perdi, como hoje compreendo. E eu vivia, em um ponto ou outro desse fascínio, quase o pressentimento de que algo se fazia prestes a acontecer bem ali, à minha frente, e que de alguma forma me mostraria a extensão de tudo o que permanecia oculto. Mas não. Nada nunca aconteceu.

Nós precisamos de água.

Com um gesto leve, ela desviou uns fios de cabelo que lhe caíram à testa. Coisas à toa. Coisas sempre à toa. Nenhum desses detalhes tem importância. Os poetas contam tudo, enfatizam minúcias. E nada disso tem valor. O gineceu reconquistado, a seta de Verena. Esses olhos, essa inteligência. Diz que não se importa com a minha idade. Afinal… – etc. etc.: seus argumentos. Pede que adivinhe a sua. Com ela, meu bom humor renasce, cresce, observo isso. Tudo bem, já sei, vou tentar: idade para… ser minha filha. Mira-me quieta. Não se altera com a brincadeira. Compenetrada, nuvem rarefeita atravessando-lhe os olhos. Só que eu não sou sua filha.

melhor uma aquarela amadora
com a face rasa da juventude
que um óleo primoroso
com a cara enriquecida da velhice

E sua máquina fotográfica: meu pai em preto e branco afasta-se da calçada, quase atravessa a rua, procurando o que calcula ser um bom ângulo para registrar-me com minha bicicleta, à frente de casa. Monta nela! Finge que tá andando! Não consigo me mexer. Não podemos nos movimentar no passado.

Água pura, e um copo limpo.

Na verdade, eu quero que tudo flua eu quero que tudo vá em frente eu quero que nada volte atrás eu quero que tudo desapareça como a maior parte de tudo o que aconteceu em todas as vidas já desapareceu para sempre. Nas vidas de todos os seres vivos, caso nos lembremos ainda de que não somos menos nem mais importantes. O futuro, um grande futuro, um grande vazio à frente, a dissolução completa das coisas boas e das coisas não boas: tudo isso me conforta como nenhum outro pensamento possível. Aliás, eu detesto a ideia do eterno retorno. Por sorte, é só uma ideia, mais nada. Não será revista lembrada analisada quando não houver mais ninguém. Eu quero que as cavernas rupestres sejam todas explodidas com dinamite.

Enquanto isso, esse esforço.

Tua testa tá um forno. Fica assim, deitado. Não tá nada bem. Fecha os olhos… O que é isso, Mônica? Pano úmido, água fria. Fica assim um pouco, só isso. Eu lutei tanto, desde menino, e agora alguém faz algo por mim… Fica assim, não precisa falar. Mônica-Moniquinha, preste atenção: há dois contos incompletos num arquivo da pasta Coisas enquanto. Você precisa me dizer algo sobre eles. Ainda hoje? Não, pode ser depois. Só não deixe que apodreçam sem rumo. Fica tranquilo, vejo isso mais tarde. Tua testa tá um forno…

Meus olhos estão ardendo. Não, não é caso de colírio. É a realidade que se filtra por eles – que alcança atinge ataca meus complicados neurônios. São as crianças assassinadas com as guerras e outras coisas horríveis. Ruínas repensadas. In memoriam, e outras expressões inúteis. Olhos carregados de horrores. Ardem, mesmo quando, aqui fora, eu poderia apenas estar em paz.

Sim, aquilo nos impressionou muito, a mim e a ele. Mas meu pai faleceu – sua cota de trauma fez-se extinta.

Uma namorada uma vez me disse que eu era um pessimista quando distraído. De todas as coisas que ela me disse, no breve tempo em que conspiramos juntos contra o mundo, foi essa sua fala o que mais me marcou de musgo a memória. Uma observação sincera. Nenhum tom de crítica. Acendendo um alerta sobre mim mesmo. (Ela gostava de coquetéis de frutas com vodca, que às vezes percebia amargos.) Gostaria que ela me visse hoje, longe dos caprichos da juventude, que tanto nos fizeram bem quanto mal. Que soubesse que não me sinto pessimista. E não, eu não estou distraído.

Para dizer o que penso, perco o sono.

Frente estreita da casa que me esperava aos quatro anos, a alguns metros da nossa. Ali morava um parente de minha mãe, a quem chamávamos tio Major: alto entusiasmado bem-falante cabelos brancos curtos óculos em aro fino. Portão de grade ornamentada e mureta muito alta, degraus abrindo a modesta varanda logo acima: a casa toda me parecia muito alta, algo típico das construções adaptadas a grandes porções de terreno em aclive, nos quais são traçadas ruas planas, comportando novos endereços. De qualquer forma, tudo ali ficava bem acima de minha cabeça. A escadaria breve, mas muito íngreme, era de fato formada por degraus altos, cada um deles. Eu segurava o portãozinho com as duas mãos, não alcançava tocar a campainha. Olhava para cima e forçava a voz. Tio Major! Após a segunda chamada, ele aparecia por detrás de uns grandes vasos de plantas, fingia surpresa e, lá de cima, enquanto já descia a abrir passagem ao meu coração ansioso, respondia enfático convidativo pronto: Nêni! Entra!. Lá dentro, sua segunda esposa, tia Cida, abria para mim latas com sequilhos e bolachas doces.

Muitas vezes isso se repetiu. Eu gritava seu nome e me identificava. Sou eu, o Nêni! E ele, com a mesma paciência e simpatia, encenava novamente a boa surpresa ao ver-me. Ora! Entra, Nêni!

Todos e minha mãe morreram. Há tempos. Há sempre tempos avançando, seguindo e eliminando todos. Ainda em um de meus dias, por um motivo absolutamente inexpressivo, acontece de eu passar outra vez em frente a essa casa, mãos dadas com Denise. Peço a ela que pare e espere: preciso voltar um passo e contemplar tudo ali. Mas ela me força gentilmente pela mão, diz que eu devo deixar disso, pode não ser bom para mim, precisamos ir em frente. Volto-me assim mesmo, e me decepciono: os enormes degraus, que eram cinco ou seis, agora são muitos, após alguma reforma: baixos irregulares e meio quebrados, lembrando ruínas, apontando diretamente ao corredor lateral que, por sua vez, conduz a um fundo gradualmente escuro – em dias de nuvens, pouco se pode esperar da incidência de boas claridades num lugar assim. A casa toda está abandonada. Apagada. Toco o velho portão, que é o mesmo. Seguro duas de suas hastes com minhas duas mãos. Penso em nosso velho parente, imagino que toda a casa cairá por terra se eu o chamar com força pelo nome, encerrando para sempre a vasta memória de alguém que, um dia, sinceramente gostou de mim. Tio Major! Sou eu! A varanda ilumina-se, ele finge surpresa. Nêni! Entra!

Quarto de trapos, quinta esquecida…
– nunca mais, nunca mais, minha memória extensa.

Disseram-me: Sim, já sabemos:
teu passado perdido, agora com valores.

Não, que não sabem.
Não é, e não sou o que pensam.

O que mais procuro em meio aos dias
é a alegria escura de uma extinção sincera.

Lembro que o muro de meu quintal delimitava o bosque e assim o aproximava. Mas havia outras imagens sob a chuva fina: os grandes portais de pedra, pilares rústicos que demarcavam uma das entradas do bosque, dividindo trechos de breves paredes espessas, nos quais se mostravam estranhas máscaras em relevo. Eu me aproximava, afixava ali um papel ou um selo e voltava. Desde muito cedo, sentia-me responsável pela humanidade, o que mais tarde muito me prejudicou e atrasou. Ninguém me pedia isso. Não sei de onde vinha isso. As máscaras em pedra talvez representassem pessoas de meu meio, uma cultura estagnada, petrificada por gerações, moldada por superstições e costumes longamente revitalizados. O que eu colava na lateral dos portais parecia ser um papel escrito. Talvez visse, em sonhos, meu desejo de escrever, assim como alguém deixa um bilhete, uma mensagem, endereçada a outros – aquelas máscaras não poderiam compreendê-la.

Eu queria saber tudo. Sem nunca abrir mão da bondade.

Sigo pela rua do Cine Bristol, sim, é aquela a livraria. Ainda está lá, como em meus tempos de namoro. Logo às primeiras estantes, três adolescentes compenetradas e trêmulas, com medo de um livro ilustrado com caveiras. Eu lhes digo que não tenham medo, pois tudo que se faz na literatura, mesmo que aparente seriedade, não passa de uma grande brincadeira – e tudo pode ser descartado esquecido atirado ao lixo. Aponto uma casa verde-escurecida de plantas, fechando a esquina mais próxima, e explico a elas que ali, que aquela casa, seria o melhor lugar para elas viverem. Não sei se as adolescentes se acalmaram, mas agradeceram e foram embora. Peguei uns livros a folheconhecer, e encontrei assombrado um dos romances que eu mesmo havia escrito, mas com outra capa, muito parecida com a original, onde se lia: O jogo de Alencar. No mesmo instante, como a intuição atropelasse a razão, senti que Alencar se sobrepunha a tudo: por mais que escrevêssemos com todas as técnicas da modernidade, sua obra vasta e ambiciosa engolfava sufocava aniquilava tudo o que encontrava pela frente. Percebi que alguns trechos, em algumas páginas, embora simulassem perfeitamente a tipografia, estavam escritos… a lápis! Com isso, poderiam ser adulterados reescritos apagados. Ao lado de onde eu me encontrava, erguia-se uma pequena pilha de exemplares deste meu livro, o mesmo que eu apertava entre as mãos: uns sete ou oito, dispostos harmoniosamente em suave espiral, configurando degraus de uma escadinha em hélice. Uma trilha de formigas fazia um desenho simétrico de ida e volta a esse agradável arranjo de livros: elas escalavam os volumes, entravam e saíam de alguns deles, em pontos específicos, desciam e seguiam por debaixo das estantes, rumo à escuridão próxima ao piso. Meus textos estavam sendo falseados.

Estaremos sob as cobertas. S. ajustará a barra superior do lençol de maneira a cobrir-lhe os seios, no limite da nudez, por pouco não os mostrando de novo. Mas agora só se mostrarão seus ombros, seu colo e… quase os seus seios. Mas por quê? Por que precisamos tornar a nos esconder depois de tanto nos devassarmos? S. me olha curiosa. ’quieto, que foi? Quer saber no que estou pensando. Que nós somos impedidos por algo alheio. Por ideias alheias. Por uma sombra que passou entre livros antigos. Uma sombra que nos ensinaram a continuar cultivando – como se ela sempre estivesse aqui.

Pontos de mofo nas paredes,
luminária antiga
de luz triste.

Elogiavam minha apatia dócil,
que tomavam por bondade;
minha timidez de doente,
que confundiam com santidade.

Não havia beijado uma devassa.
Não havia conhecido o coma alcoólico.
Nem sido abençoado com um crime.

Pensavam em mim com doçura,
comparavam-me a algum tipo de anjo
– de tão horrível que eu era
.

E quando tudo parecia perdido…, quando tudo parecia… perdido!, mas tudo, sim, tudo…, o planeta girou sobre si mesmo.

Meu amigo Val sentado a uma mesinha encostada à parede, local discreto, que há muito não frequentamos. Val, quanto tempo! Ele parece neutro, nenhuma alegria ao ver-me. Que bom ver você, rapaz, o que me conta? Ele não se altera com minha chegada, nem parece que trabalhamos juntos um dia, com invejável harmonia e com a motivação despretensiosa das amizades sinceras. Como estão as coisas, onde você está agora? Em lugar nenhum. Sim, eu entendo: o banco em que iniciamos a nossa carreira não existe mais. Muito tempo, não é?  Tem notícias do Olívio? Do Brüner, do Waltinho… ? Como posso ter notícias deles, se estou morto?

Todo de cinza hoje? Vai correr? Não: sentindo um pouco de frio. Ficar em casa mesmo. Todo de cinza, olha só. Não gosta de cores, não é? Cinza-claro, Mônica. Observe.

aqui no interior
essa menina que é uma flor
– com a pronúncia da província

é metárfora de valor

Se eu ficar doente, precisar de isolamento quarentena cinquentena infusões, você cuida de mim? Hein, Mônica? Cuido sim. Me traz livros papel caneta? Claro que sim; e também comida. É: e comida.

O passado é formado por situações que não existem mais. E para que o gênio de meu mundo antigo não escape para sempre da mesma garrafa, destruí, sem qualquer sentimento negativo, textos imagens objetos. Não quero pegadas relevos ruínas. Um eu seleciona coleciona guarda; outro será diluído em neblina. Aqui, agora. Todos os animais do mundo. Deslocar-se, desde que necessário. Desaparecer depois. Nada para trás de mim.

corre corre corre

e me retorna um verso livre

Substantivo abstrato é aquele que depende de nós para existir.

Exemplos: golpe, trapaça, crime, maldade, ameaça, sofrimento, angústia

Os adjetivos compostos azul-celeste e azul-marinho são invariáveis, embora inspirados em grandezas como o céu e o mar, que são notadamente variáveis – daí porque poetas e aventureiros se referem a elas como os céus e os mares.

Eu disse isso a eles. Acredita? Ela me ouvia com especial atenção. Pelo menos foi sincero? Veio do fundo do seu… Não sei. Não, não sei. A gente mentia muito naquele tempo. Parece que foi sem querer. Não sei. Ela tem a minha altura, esbelta de esforços e cuidados, cabelos tingidos com mechas mais claras, cor de cortiça, lisos entrando em ondas perto do pescoço. De toda a casa, aconteceu estarmos, eu trazendo café, ela curiosa pela área externa, ali: aconteceu estarmos ali, no trecho estreito que é a passagem da despensa para a varanda. Ela se encosta de lado à parede próxima, à minha esquerda, simulando deixar-se cair sutilmente naquele espaço mínimo entre o seu corpo e o recorte de alvenaria próprio desse lugar neutro, fora da visão geral, quase acidentalmente oculto entre arranjos arquitetônicos, segurando cuidadosa sua xícara. Um instante em silêncio, e inicia outro assunto – talvez por tê-la motivado o verde lá fora. Meu filho perguntou quais flores seriam as melhores para dar de presente a uma garota. O que você acha? Sorrindo simpática, mira o gramado lá fora. Vivas, em um vaso. Quis mostrar a ela que não as corto dos caules nem dos ramos: que prefiro que tudo continue vivo. Ela deixa o apoio da parede, apruma-se. Com os próprios pés, um manipulando o outro, solta os sapatos, umas sapatilhas claras, algum enfeite. Bem sinceramente, sem uma palavra. O que ela quer? Caminhar descalça na relva? Ou isso significa apenas que pretende ficar?

Esses desejos são tudo quando são tudo.
Precisamos deles para seguir.
Esses gigantes carregam as estradas.

Um dia, adolescente, você escreveu contos imitando histórias policiais de autores estrangeiros. Depois, escreveu experimentando técnicas diversificadas, transitando entre conservadores e modernos. Mais tarde, percebeu que estavam esgotadas as opções de linguagem e de desenvolvimento narrativo, e que não valia a pena escrever o que, de alguma forma, já havia sido escrito. Quando olha para trás, lá estão os seus primeiros dias, aprendiz de feiticeiro. Agora, está sozinho. Seus mestres o libertaram. Essa magia específica hoje exige que você seja autônomo intenso imune.

Mônica anuncia, após abrir a porta do apartamento, uma visita formal inusitada singular. Esses senhores vieram aqui para eliminar o segundo parágrafo. Compenetrados, esses três profissionais mal se falam entre si, quando muito por murmúrios muito breves, enquanto se acercam das versões escritas. Um deles risca um grande xis sobre o segundo parágrafo; outro, meticulosamente, cobre linha após linha (do segundo parágrafo) com uma caneta porosa de tinta preta, trabalho artesanal admirável; outro dobra a folha, passa a língua levemente ao longo do vinco e destaca com facilidade a parte em que se encontra o segundo parágrafo. Mônica, diga a eles que não se preocupem. Que não precisam se importar. Não precisamos nem mesmo do primeiro parágrafo.

A quebra da casca, a nova plumagem,
a troca de pele, as presas no ponto:
cada vítima e cada assassino
reciclando violência e sofrimento.

Passo como posso.
Passo entre pássaros, migrando de mim mesmo,

certo de que é preciso voltar.

Triste com a morte, recolhendo ecos.

A natureza nunca cicatriza em mim.

Bêbado, entre amigos, subiu ao patamar do monumento, de onde – braços abertos – gritou ao mundo uma grande mentira: “Eu não vou morrer!”.

De minha infância austera e fascinante, emerge a espantosa ilustração de páginas abertas com o homem que havia encontrado o fim do mundo – admitindo-se, naturalmente, que o mundo fosse plano e limitado, como descrito em mapas muito antigos. Esse cavaleiro aturdido e perplexo, espada pronta erguida no espaço, deparava agora com estranhas criaturas de grande hostilidade, agitando-se em um céu ameaçador e na superfície de um mar tenebroso, que acabava logo ali. Incomodava e desafiava meu pálido silêncio pensar que, a despeito da inquestionável bravura do aventureiro, o problema não era vencer os monstros e passar além. O problema era não haver o além. Era não ter para onde passar.

O dono dessa casa morreu.

Foi daqui que você partiu, lembra? Ah, mas eu adoro essas coisas fora dos limites – o que me faz pensar sobre o que define um limite. Onde não é mais a cidade. Tempo das ruas de poeira, e minha infância bruta. O alto da D. Pedro I, inacessível a ponto de forçar os ônibus a retornarem por onde vieram, retraçando a mesma avenida. E quando não se esperava mais alguma coisa, lá estavam, escuros mas fortes, os restos de um trilho, fantasma apontando o rumo extinto de uma antiga estrada de ferro.

eu não tenho este poema
eu não posso dar-lhe nome
ele escapa sem problema
ele se esvanece some

Ela andava ao meu lado, alameda deserta da universidade: caminho de irmos embora. Quando começamos por aqui, primeiras aulas. Foi daqui que você partiu, lembra? Respondi que sim. Fora dali e de muitos outros pontos encantados, cheios de bondade e ilusão, que eu sempre parti. Uma canção comovente imaginada ao fundo. Como conter os mínimos cristais que brilham com ternura e inocência ao longo do tempo? Final de tarde, horário de verão. Ela continuou, suave. Tanta luz aqui fora, e nós sempre presos lá dentro, não é? Estamos sempre presos em algum lugar. Estamos sempre presos por causa de alguém. Concordei, sincero. Pássaros conversando. Ela perguntou se eu conhecia a estufa e as plantas medicinais que os estagiários do último ano cultivavam. Passar por lá então. Fora da passagem, quase o limite do campus. Tudo deserto em um domingo assim. Canção comovente ao fundo do que sinto. E ela agora um cristal também, propensa a lidar com um carinho em segredo. Final de tarde, coração de verão. E quando não se esperava mais alguma coisa…

Humano, e sim. Assim: confissões que não interessam a ninguém mais no mundo; e um diário com anotações minuciosas que deve desaparecer com a minha morte.

Foge de casa! Corre!
Entra pela noite, encara o dia.
Só quando te faltar o fôlego,
considera o teu nascimento.

Escute isto, Mônica. O assassino dessa jovem estudante foi capturado, meses depois, após um grande esforço dos investigadores, em outra parte do país, levado a julgamento e condenado à morte, por injeção letal. Ele tinha invadido a casa onde essa moça morava com uma colega de faculdade, que estava ausente naquele dia. Resumindo: ele a imobilizou, agrediu sexualmente, torturou durante muito tempo, riscando seu corpo com um canivete afiado, depois a matou com requintes de crueldade, a facadas, pouco a pouco. Além de toda a dor física, pense também na dor moral: o medo, o desespero, a forte sensação de impotência, a esperança que se esvanece quando a vítima compreende que está sendo de fato assassinada, num processo lento, sem poder reagir. Que horror… Sim, um horror inconcebível! Agora, escute isto. A mãe dessa jovem, junto com parentes e amigos, foi assistir à execução do criminoso. Na saída, cercada por repórteres, fez um comentário. Minha filha morreu lentamente, agonizando, sofreu dores horríveis; e esse canalha morreu suavemente, tranquilamente, anestesiado, sem dor. Não é justo.

casos e acasos entre ocasos:
a maldade humana é o pior dos casos
– a pior coisa que existe
entre o acaso de tudo que existe

Depois de tanto tempo, o abraço forte em meio à multidão: ela mais baixa que eu, eu mais alto que ela, então naturalmente eu tenho de me curvar, e ela tem de se erguer, e isso se completa com um perfeito ajuste dos corpos, enquanto eu, tão espontâneo e incontido quanto o vento a soprar do túnel, digo algo ao ouvido de minha amiga querida. Você está linda. Ela não me olha de frente: sorri, baixa a cabeça. Imagine; são seus olhos. Caminhando juntos, estação afora. Prometi levá-la a conhecer a biblioteca onde trabalho, onde, uma semana atrás, encontrou-se o corpo de um enforcado entre as últimas divisões, pouco frequentadas. Tivemos a polícia técnica, a perícia forense, coleta de informações e testemunhos. Não devo tocar no assunto. Ela não deve saber de nada, e a imprensa pouco se importou com isso. Você está linda. Imagine; são seus livros.

Não roubar, nunca roubar: nem areia nem ouro.

Detetive a seguir o marido. Quase nada, nunca. Mas era, ela intuía. Gastou muito dinheiro tentando descobrir tudo e agora está a um centavo de saber a verdade.

[…]

Enquanto o automóvel, quase novo, era içado por guindaste do leito turvo do rio, J. comentou com o investigador novato que as rodas girando soltas daquele jeito, ao mínimo movimento, eram um sinal claro de que o veículo havia sido empurrado para as águas. E que, portanto, eles estavam diante de um caso de homicídio. De volta à central e de posse dos dados do legista, esse caso parecia finalmente esclarecido. O resgate do automóvel e uma análise geral de todas as evidências eram como um quebra-cabeça que se fechava com todas as peças necessárias. Mas a margem do quadro parecia disforme, não simétrica como se esperava, em relação aos outros lados do retângulo que emolduravam esse quebra-cabeça supostamente concluído. É que havia um problema com a pedra angular: o primeiro de todos os depoimentos, quatro anos atrás, que dera sustentação a todos os procedimentos seguintes. Sim, havia um problema com aquela história. Um problema básico no cerne daquela situação macabra: ela era falsa.
[…]
— Preciso entrar, ver o corpo.

— Calma. Uma coisa de cada vez. Para chegar ao porão, precisa cruzar o portão.
[…]
Já sonhei com você, K. E tive que ficar quieto dentro de mim mesmo.
Eram as últimas palavras que trocariam nesse dia. Com o vento forte da hélice atacando-lhe os cabelos, ela acenou a L., que ainda a admirava a certa distância, e ao helicóptero que partia.

Como está indo seu livro policial? Nem me fale! Só umas ideias, Mônica. Não vou dar conta de escrevê-lo todo. Vão ficar só algumas pistas do que eu teria feito. Do crime que não cometi.

Cuco, cuco, cuco! O passarinho do relógio está maluco… Veja que interessante, Mônica. Uma antiga marchinha de carnaval, e ele se lembra de quando um parente foi até sua casa, pouco antes das dez da noite, comunicar a morte súbita de seu pai. Tristemente surpreso inconformado mudo, movimento mínimo de cabeça em surda negação, como se pensasse que não era possível, que não podia ser, quando então o relógio cuco deu as horas que não podiam ser, que não tinham como ser, e ele se voltou indignado ao simpático mecanismo: o passarinho do relógio está maluco!

Um homem desceu pela escada.
Um gato mirou o espaço.
Um astro rompeu a órbita.
Um tempo girou na estrela.
Um ciclo fechou o passado.

A memória resvalou no acaso.
O único não era tudo.
O tudo não era nada.

Num restaurante estreito do Boulevard, reencontrei por acaso um de meus mestres, o professor Anésio Olvidares, acompanhado de uma jovem que parecia perto de minha idade – assim, idade para ser sua filha. Ele se levantou, estendeu-me a mão. Quanto tempo, rapaz, como vão as coisas? Uma honra, professor, prazer em vê-lo. Gesto agora indicando que me apresentava sua parceira, essa garota solícita, especialmente agradável. Apertei sua mão, discretamente. Como vai? Esta é a… a… – escapava-lhe a palavra-nome, tão comum. Ela sorria lúcida, a um tempo polida e irreverente. Eu já conheço você, Perce, de fama. Acenei com a outra mão no ar, correspondendo à sua simpatia. Não, nada disso, obrigado assim mesmo, o professor é muito gentil. E você é a… a… Ela me encarava sem piscar, tal como a passar-me algo em código, e sorria ainda. Quase um pedido de ajuda. Brilho em olhos inteligentes. Sutilmente ansiosa. Delicadamente trêmula. Ele… esqueceu meu nome.

pãrãrã pãrãrã pãrãrã!
pãrãrã pãrãrã pãrãrã!
(Ouça mais, por sua conta: Sinfonia 40 de Mozart.)

Cristais de água sobre um passado espesso. Você gosta de ver as coisas com outros nomes, não é?: essas pedras de gelo no uísque… Eu gosto de ler as coisas. Uma bobagem. Um capricho que carrego. Quer mais um? Quero. Mais gelo no meu, por favor: fico fraca se passar da conta. Bom assim? Um-hum. Brigada. Você, mais acostumado, nem percebe. É, mas não deveria. Você sabe que eu amo esse uísque, não sabe? Sei. Sempre gostou disso, não era muito de cerveja, e repetia os nomes das marcas, criticando algumas, elogiando outras. Por sinal, só lembrando, você fala bem o inglês. Ah, isso? Que importa? É sério: detalhes de pronúncia que pouca gente percebe, mas eu, que leciono, pego na hora. Certo então. Que seja. Bom ouvir isso de você. Desde menino, tenho essa facilidade, essa… percepção. E entendo que isso parte de alguma capacidade de imitar, mais do que de conseguir ser eu mesmo. Sei. Mas a gente falava de outra coisa, outra memória, não era? Era. Eu me lembro de quando sua irmã me contou que você iria se casar. E que você… não queria muito. E acabou sendo. Não era isso? … Ouviu o que eu disse? Ahn… Ouvi. Era. Era isso. Foi como foi. As coisas são circunstanciais, tudo é assim, você sabe. É, sei. Naquela época, você me olhava de uma maneira especial, eu lembro. Não era? Era. Eu lembro também: você também me olhava. Você ainda gosta dele? Mais ou menos. Isso também: sempre foi o que era, o que é. Que está olhando nas cortinas? Nada. Escurecendo já. Tão rápido? Rápido, sim. Dias mais curtos nesta época do ano. Quer que eu acend… Não. Não, deixa assim. Quero lhe contar um sonho que tive, há pouco tempo. Pode contar, mas… vai ficar assim, olhos fechados? Maldeitado, recostado torto no sofá…? Pode continuar, estou ouvindo. Não, você é que falava, de me contar um sonho. É… Isso. Um sonho lindo por ser tão pouco: você andando ao meu lado. Me acompanhando como agora. Um silêncio como este nosso, aqui. Só que algum vento. Um lugar longe. Não sei onde. A gente conversando lá como se pudesse continuar daqui. Ou o inverso. Uma extensão do real – mas não do passado, que nunca mais pode ser…. que nunca mais pode ser… Não, calma. Fica calmo. Você está tremendo, não quero que… Olha, fica assim, não quero que se incomode mais do que deve. Qualquer coisa poderia ter sido diferente, mas… não foi. Ouviu? … Dormindo? Não. Então, me diz: o que você percebe agora? Percebo… uma sombra, bem perto. Sua sombra. Seus dedos nos meus cabelos. Sua respiração. Sua proximidade absurda: você, a inalcançável. A impossível. Seu cheiro de quase nada e… e… Não fala. (?) Esse beijo… tão mágico. Carinhoso. Perfeito. Mais do que tudo no mundo. Não quero mais abrir os olhos: isso vai romper o encanto. Sei que nada vai mudar quando você sair daqui, quando amanhecer, quando voltarem a luz e… os dias do presente. Tão espesso.

Os cadáveres somos nós, desaparecendo.

Mão direita erguida ao lado da cabeça, solenes. Cada um. Felizes. Posição ereta, frente um ao outro. Olhos nos olhos. Mãos esquerdas enlaçadas em comunhão, logo abaixo, à altura do ventre. A cada sílaba, propensos a sorrir. Fragmentos de juras a curto prazo: palavras sagradas. Eu, S. H., prometo aquecê-lo com minha nudez sob as cobertas, nos dias frios de nossa cidade… Eu, P., prometo levá-la comigo a algum lugar secreto, sempre que quiser ver-se livre do mundo… Eu, D., prometo respeitar e realizar seus caprichos, esperando que também respeite e realize os meus… Eu, P., prometo tratá-la com força e com carinho, conforme as variações de suas vontades e de sua carência… Eu, M. T., prometo me vestir e me calçar da maneira que mais lhe agrade quando estivermos juntos… Eu, P., prometo valorizar cada peça escolhida, mesmo entendendo que de certa forma todas elas compõem a sua nudez… Eu, E., prometo permitir que explore minha feminilidade até o limite de sua curiosidade apaixonada… Eu, P., prometo dominá-la e também protegê-la, conforme sua ansiedade por gestos brutos e sua procura por carinhos delicados… Eu, C., prometo tratá-lo com paciência e compreensão quando não dispuser de mais forças para me satisfazer…

Primeiras grandes histórias
ouvidas dos homens da família:
que dizem os mais velhos
quando mentem no quintal de plantas?

Guerras e honras reinventadas,
méritos por dizer:
O terror de uma batalha.
O musgo do quintal.

Inventando sangue
onde só havia rastros de lesmas.

Dostoiévski atravessava paredes. Kafka exigia justiça. Proust nunca se libertou.

“É notável que nomes de lugares – cidades, regiões, rios, até mesmo estradinhas de terra… – surjam tão rapidamente, tão espontaneamente, tão… naturalmente. Por isso, não deixa de ser estranho que a nossa cidade, após 15 anos de sua fundação, continue um código para efeito de registro, para constar nos mapas. Certa vez, promovemos um concurso público, e apareceram nomes como São Isto do Pau Torto, Santo Aquilo do Cabo Curto, Santa Não-sei-quê do Fluxo Frouxo… E outras opções tão estapafúrdias que decidimos cancelar a votação.”

“Vocês já pensaram nisto: Estapafúrdia?”

“Como?”

“Estapafúrdia do Sul, por exemplo.”

“Interessante. Vamos levar ao prefeito. Dona Noêmia! Anote isso. Vamos levar ao prefeito.”

Amar é não ter de se preocupar com as palavras certas.
(Isto não é um cachimbo. Isto não é amor.)

Mônica, observe: não é justo comparar gente sórdida a animais. Nós: os sórdidos, sim. A lança a flecha o arpão a arma de fogo a armadilha cruel… Os outros, nossas vítimas diretas e indiretas. (Nem ao predador mais agressivo lhe é dado controlar-se: são todos brutalmente inocentes.) A serpente o verme o rato são puros. Compreende isso?

As muralhas detêm o espaço – não o tempo.

Ela estava chorando muito quando me aproximei.

“Nenhuma rádio se desculpou… Todo esse sofrimento…”

“O que foi?”, perguntei curioso, tomando sua mão com especial carinho.

“Nenhuma rádio se desculpou… Nenhuma!”

Agora ela soluçava sem controle, perdendo parte dos fonemas que emitia em maio ao seu desespero histérico, um pranto comovente, que parecia emergir do mais grave abismo da existência.

“Nenhuma… rádio… pediu… desculpas… Nenhuma! Por nada! Mons… tros!”

De novo esta luz que cega.

Quinta-feira é de um laranja esmaecido. Sábado é amarelo-gema. Domingo: verde-musgo; segunda, quarta e sexta, de um mesmo cinza-pomba, alternadamente. Terça-feira é sempre azul-subaquático. Não tenho nenhum argumento para justificar a origem dessas impressões, e até acredito, como um tolo incorrigível, em desencontro com a razão, que toda essa alegoria sinestésica tenha nascido comigo.

De frente a ela, após tanto tempo. Transe induzido, memória. Você tinha razão, S.: você não precisava mesmo se expandir. Eu também não precisava me expandir. Agora compreendo você. Essa bobagem de ser feliz afeta nossa inteligência. Estou bem, finalmente. O tempo passa, e o teu encanto ainda me fere. Bom que seja assim. Sem qualquer estranha expectativa.

Absoluta singularidade: não há ninguém no mundo como S.

As portas se abriam, uma após outra.
As portas se abriam tantas…
E tão fáceis e tão amplas…

E eu não conseguia encontrar a saída.

Não sei como alguma mulher se interessa por você. Você não faz nada. Simplesmente nada. Nem sorrir sabe direito. Bati de leve meu cigarro no cinzeiro, centro da mesa, cachaçaria de amigos de sempre. Nessa noite, só nós três. E o que você quer que eu lhe responda, Oswald? Nininho, seu namorado, riu. Oswald fumava de maneira elegante. Nada não, meu amigo. Eu sei que você se interessa por mulheres. Mas não demonstra isso a elas. Não demonstra interesse nelas, a elas. Compreende? Pelo menos é assim que eu vejo, assim que eu observo. E o que mais você observa-sabe? Alguma de nossas amigas? Não: nossas amigas estão ficando velhas e feias. Não seja cruel; há exceções. Sim, isso. O namorado de Oswald foi ao banheiro. Apaguei meu cigarro. Oswald continuava fumando com calma, com prazer. Ainda intrigado com o mistério que persistia: o fato de alguma mulher, eventualmente, interessar-se por mim. Que nem sorrir sei direito.

Lembro um vazio,
lembro uma dor
(daí talvez eu não pudesse prosseguir).

Lembro a palavra inútil, o consolo trêmulo,
a noite sem sinais, a manhã sem ânsias
(daí talvez eu não pudesse prosseguir).

Da tristeza assustadora que vivi
(daí talvez eu não pudesse prosseguir),
eu não quero me recuperar
– porque também foi, de longe, motivo de especial beleza.

O que aconteceu?

Bia veio ver-me. Já conhece minha casa. Beijo no rosto.

“Obrigado por ter vindo. Está bonita.”

“Estou nada.”

“Venha, vou lhe mostrar. É por aqui que ele entra. Ele ou ela. E eu não posso fechar toda a área externa só por causa de uma ave que…”

“Morcegos não são aves.”

“Claro, claro que não, desculpe o ato falho. Ato falho, entende como é isso? É esse o percurso, está vendo? Vem de lá, daquele renque de árvores, faz uma curva e… Eles enxergam no escuro, não é?”

“Não, não enxergam. Trata-se de outro processo. Deveríamos aprender com eles: escutar o eco. Usá-lo a nosso favor. Ouvir pessoas.”

(Semana passada, ela havia observado que eu me apaixonava muito facilmente, só porque elogiei seus cabelos, presos de um só lado por uma presilha muito delicada.)

No sexto dia, ele (ou ela) não apareceu. Teria desistido de minha casa? Teria desistido de mim? Teria morrido?

Bia voltou, para ajudar-me a avaliar o caso. Eu a tenho como uma importante consultora, já que é especializada em mamíferos quirópteros.

“Bia, observe isso. Parece que ele (ou ela) está fazendo um desenho, olhe só”, dedo apontando o chão e caminhando com ela pela área externa.

“Parece que está tentando se comunicar, entende? Dizer alguma coisa. Em código. Eu quase compreendo a forma que…”

“Não, não comece com isso. Você é imaginativo, eu sei. Mas nesse caso…”

Dobramos a última quina da varanda dos fundos. Bia seguia neutra e analítica, como de seu feitio. E ali estava, bem à nossa frente, entre o gramado e a área cimentada, um desenho magnífico. Detalhado. Perturbador.

Conforme penso, me desloco.

Lendo trechos de clássicos antigos, lendo na íntegra um clássico moderno, lendo poemas de autores vivos da comunidade e… Mônica se aproxima. É uma vergonha você conseguir ler tudo.

Sei onde moro
e estou disposto a seguir a pé.

Voltam-me em sonhos as salas contíguas,
as asas doídas, contidas em cena,
eu fingindo ser livre.

Passou como toda mentira passa.
Tudo apagado.
(E ele continua buscando ferramentas.)

Diante de uma pessoa que fez o que não fiz, que buscou o que não busquei, que encontrou a si mesma na plenitude dos pequenos gestos, só me resta chorar.

Bronzeada, maçãs rosadas, olhos carregados de brilho radiante, ela toda radioativa, emitindo calor e cheiro de cremes. Vem até nós, tendo reconhecido um dos nossos: de pé, ao lado da mesa, no bar aberto onde bebo com amigos. Habitante de condomínios de avenidas altas, frequentadora de piscinas envenenadas por produtos químicos e com gosto de velhos. (Quem a conhece é o E. L., sentado bem à minha frente, encharcando-se de cerveja pilsen de sua marca predileta.) Cumprimenta-me, um oi. Minha amiga F. me falou de você, sabia? Me conta: como é que faz pra escrever um livro? Sorriso solto, fácil, de quem não sabe o que vale um revés financeiro. Um livro? Que tipo de livro? Como os seus. Os meus? Bom, eu… não sei como lhe dizer isso. De verdade: não sei como lhe responder isso. Por exemplo, vou te contar: eu fui abusada pelo meu padrasto quando eu era adolescente, eu acho que isso dá uma boa história, não dá? (Eu não me sentiria bem se dissesse a ela que casos como o seu, repetidos e repisados quase diariamente pelas mídias de informação, eram antigos e desinteressantes para a literatura.) Acho que… seria bom você ler algo sobre isso. Sobre o quê? Sobre esse tema. Sobre pessoas que não prestam.

Nós aqui, nomeando estrelas.

Acordei mais cedo que os passarinhos – prenúncio de que seria outro agradável dia de primavera. Acordei mais cedo porque perdera o sono. Porque estava ansioso e tenso. Porque estava planejando uma história nova. Porque estava planejando um crime. S. sentou-se na cama depois de eu ter lhe contado algo dessa história. Disse que não a escrevesse. Achei muito triste. E, sabe… Eu tive um sonho.

Ela grita chorando. Mesmo assim, desesperadamente tímida. Quase a pedir perdão por choragritar em agudos arrepiantes. Outros ouvem. Murmuram entre si, aproximam-se. Comentam o caso em voz baixa, perturbados com o que poderiam ser seus próprios gritos duramente asfixiados. Cantam, em harmonia. Decidem ajudar.

Convidando Janete. Quero que venha ao meu enterro. Seu enterro? Quando será? Logo. Guardei umas flores amarelas só para você. Janete comparece ao meu enterro. Uma flor nos cabelos.

Minha letra não é boa.
Minha vida não é boa.
Minha esperança decai – homem sem qualquer tempo.
Minha energia resiste: animal imbatível.
E põe-se à caça
à coleta
à luta… – põe-se à prova!
Por nada.

Nas biografias de homens que considerava nocivos, eu recorria ao localizador e digitava: morte. (Porque havia também subtítulos como nascimento, carreira etc.) E lá estava: o ditador morreu em sua cidade de origem, após meses de internação, em consequência de um acidente vascular cerebral. Muito bem. Agora, o general que, durante quatro anos… Morte. […] vitima de uma pneumonia grave. Sim, eu me lembro deste: o bem-comportado porta-voz do último governo ditatorial. Morte. […] de um trágico acidente automobilístico. (Trágico? Por que trágico?) Quem era este aqui mesmo? […] unificou os partidos de direita e impôs toque de recolher, em função de […] Morte. […] pancreatite aguda. Mais um. Morte. Não esquecer este outro aqui. Morte… Vamos em frente. MorteMorte

Passadeira de fibra de coqueiro. Alpendre em arco. Globos de vidro fosco. Bolo inglês. Meia garrafa de cerveja preta. Puro azeite de oliva. Queijo verde. Vinho branco em copos verdes. Três moedas (uma delas, muito antiga). Capela mortuária. Tradição. Memória. Trincados ganhando vida. Jardins em ruínas. À beira de um ataque de abismos. O tempo, sem peso. Uma brisa suave canta. Eu sou o monstro que pisou as flores. Que triturou as pedras. Esfarelou os ossos.

Um mata o outro, e sobra uma banana.

por

Publicado em

Tags:

Comentários

4 respostas para “Percurso pós-9”

  1. Avatar de Creusa Maria Maia de Queiroz
    Creusa Maria Maia de Queiroz

    Preciso fazer uma correção, no lugar de haja vista, lê-se haja visto. Erro de digitação. Obrigada

    1. Avatar de Perce Polegatto

      Corrigido, fique tranquila.

  2. Avatar de Creusa Maria Maia de Queiroz
    Creusa Maria Maia de Queiroz

    Acabei de ler o seu texto. Senti-me um tanto quanto maleável a outras leituras que com certeza, farão com que eu faça uma análise mais aprofundada sobre autor e auteridade. É uma faceta do campo da linguagem literária em que a linguística tenta se engajar para explicar as diversas nuances da semântica. Haja vista que o leitor tenta a todo momento infiltrar-se nas ideias do autor, colocando-se como um co-autor do texto. Desta forma, pude adentrar-me de modo abusivo e sentir nas entranhas emoções que para mim – leitora – são sentimentos e vivências particulares e singulares por si só. Com isso, vejo que o autor e o leitor por vezes se cruzam, se confundem e se completam. ……………………………………………………………………….

    Gostei abusivamente do seu texto “Percurso pós-9”. Uma leitura que nos leva a outras leituras revisadas na nossa bagagem cultural. É um jogo intenso de personagens com o tempo e o espaço que driblam incessantemente dentro da memória curta e da memória longa. Esse jogo das memórias nos faz ler e reler alguns trechos para nos situarmos no enredo tão instigante e explorador de nossas habilidades com a leitura de um texto. Excelente trabalho literário. Amei demais. BRAVO!!!

    1. Avatar de Perce Polegatto

      Creusa, muito obrigado pelas palavras, você me honra. Fico muito gratificado ao ler isso. O “Percurso pós-9” é um improviso, não tem uma diretriz, é uma espécie de bloco de anotações sem finalidade definida. (Esse é um título provisório e deve-se ao fato de eu ter 9 livros publicados.) Abraços, me escreva sempre.

Comentar