Office in a Small City por Edward Hopper

A encantadora ovelha ruiva. Parte 1 (Outro livro de bruxas?)

Preciso inventar um nome para ela.
Não quero mais chamá-la de ovelha ruiva.

Jornal sobre o balcão.

NOVO PACOTE TRARÁ AUMENTOS REAIS PARA O TRABALHADOR,

GARANTE MINISTRO DA ECONOMIA

Ignorei duas crianças seminuas, aparentemente esfaimadas, que me fitavam da porta com olhos muito grandes, enquanto eu mastigava um sanduíche, e elas foram embora sem me importunar.

Fiquei olhando as paredes, os pôsteres. O dono da lanchonete Mangueira tem um gosto estranho: esses cartazes, de tamanhos diversificados, mostram instrumentistas e intérpretes de jazz, blues e outros gêneros – muitos, muitos outros gêneros. À minha frente, um cantor cego reclina a cabeça numa escandalosa gargalhada. Há uma profusão de negros borrachudos, trompetistas e pistonistas, olhos e bochechas prestes a estourar, desses que as pessoas chamam, sem nenhuma piedade, monstros sagrados. Nunca toquei no assunto com ele, mas falta ali o sorriso travesso de uma Janis Joplin, de um… de uma… Ora, por que faltaria? Sou propenso a criticar as coisas, substituir, acrescentar. A situação me viciou, de certa forma, a isso. Quero esquecer. Janis, esse raio atrevido de sol, lembra-me principalmente de passar na livraria, logo que deixar a lanchonete Mangueira, e rever sua semelhante, a garota de cabelos cacheados como os de uma ovelha, ruiva e sardenta, que me atende. Ainda não descobri seu nome. Anseio por vê-la diariamente, mas resisto: fico dois ou três longos dias longe da livraria para que ela não suspeite que estou apenas interessado nela. Peitinhos empinados, coxas consistentes, cintura… Cintura o quê? O que tem a cintura dela? E daí? Basta de descrições. Mais um pouco, só mais um pouco, vá lá, que esta vale a pena: uma bundinha que compensa todas as caminhadas, todas as esperas, anula a indiferença que ela demonstra por mim e me faz crer que eu a deseje talvez até mais do que imagino, que esteja apaixonado de alguma forma e… Apaixonado, só me faltava. Onde vou parar? É apenas mais um refúgio, eu sei. Meus olhos sujos, contaminados de ruas poluídas e pessoas feias.

“Outro livro de bruxas?”

Ei-la à minha frente, eis-me na livraria onde se perde essa beleza.

“Esse chegou ontem. Lançamento. É ótimo!”

Outro. Certo. Muito bem. Onde vamos parar? Preciso inventar um nome para ela. Não quero mais chamá-la de ovelha ruiva.

“Você já leu?”

“Não. Mas eu sei que é. Esse autor é ó-ti-mo!”

Ela me ensinou tudo o que sei sobre esoterismo, exercícios espirituais, magia negra, magia branca… Nada nunca deu certo.

“Nunca julgue um livro pela capa, você sabe.”

“Mas olhe”, eu disse. “É uma bruxa mesmo. Mexendo um caldeirão. Em meio a labaredas. Cercada de corvos.”

Como todos os iniciados, ela afirma que determinada seita não é uma seita, mas um estudo. Que tal doutrina não é uma doutrina, mas um estudo. Que os fanáticos de tal e tal religião não são religiosos, mas estudiosos. Até confrarias suspeitas, lojas e casas obscuras, somente acessíveis a iniciados de uma mesma classe social, apresentam-se como um estudo. Nunca discuto com ela. Onde vamos parar?

“Este aqui, ó… ensina a desenvolver o poder da mente, de mover objetos.”

Mover objetos, grande consolo.

“O quê? Que poder? Eu nunca tive nenhum poder.”

“Psicocinese. Mudar as coisas de lugar.”

“Você também não tem, aposto.”

Ela fez um bico. Muito sutil. Mas era um bico.

“Não desenvolvi, por isso.”

Peço covardemente que ela apanhe um volume na prateleira de cima, só para vê-la se espichando na ponta dos pés. Mulheres na ponta dos pés são meu fraco. Até pegando um livro de bruxas. Como ela não tem poderes, precisa se esforçar sobre a escadinha para alcançá-lo, as malhas justas dando-lhe pernas retesadas e perfeitas, nádegas firmes, músculos das costas. Nádegas, que palavra mais chata. Porque essa bundinha dela… De ovelha não tem nada, a corça.

“Esse aqui?”, bateu a poeira.

“Ahn… Acho que é. Deixa eu ver.”

Folheei o livro, disfarçando. Primeiro com alguma paciência, depois correndo umas páginas: brrrrrrr… blurp!

“Faço um desconto ótimo, quer ver?”

Eu não queria mesmo nenhum daqueles livros que ficavam repetindo que nós somos o maior tesouro do mundo, que o universo conspira a nosso favor, que, por mais desgraças que se acumulem na Terra, todos virão a se reencontrar num futuro cósmico, enfim, nunca me agradaram, nem de longe, essas insanidades toscas.

“Hum… Sabe, não é bem o que eu pensava.”

Ela encostou a escadinha à estante, bateu as mãos uma na outra, firmando-as num aperto cruzado, apontadas para mim, com certo entusiasmo.

“Mas tem coisas aí que você não conhece, tenho certeza. Então? Vamos aprender mais coisas novas?”

“Olha… Hoje não estou muito para bruxarias. Está um dia bonito de sol.”

“Seguro o seu cheque. Olha a oportunidade.”

Luto para desvencilhar-me de suas propostas, mas fico triste e desconsolado com isso. Ela não me ama. Só quer me empurrar seus livros. Pior, livros de ocultismo e autoajuda. Mal percebe que tenho alguma inteligência, trata-me como um consumidor qualquer.

“E aquele Cortázar que você me prometeu?”

“Esgotado. A editora disse que não vai relançar.”

Os títulos esotéricos infestam a livraria. Antes, eram vendidos somente em casas especializadas. Mas os ingênuos proliferaram. Ela diz que é assim mesmo: os céticos criticam, esperneiam, resmungam, no fim sempre voltam. Muito habilidosa, admito. Quase conseguiu que eu me confessasse. Finjo interesse nos livros, mas não sei se ela ainda acredita em mim. Mulheres habilidosas são meu fraco.

A conspiração dos felizes – Guia de leitura

 5. Vida nova, sangue novo – sequência

3. A lanchonete Mangueira – anterior

Imagem: Francisco de Goya. O conjuro. 1798.

por

Publicado em

Comentários

Comentar