Office in a Small City por Edward Hopper

Clube dos corações literários do tenente Graciliano

Minha primeira noite ali. Cadeiras dobráveis formando um círculo – para ser exato, uma elipse. Um grupo de pessoas bem diversificadas, julgando-se apenas pelas aparências. O espaço: um pequeno salão de festas, piso de quadra de esportes, cedido pela Associação dos Militares e Oficiais da Reserva, da qual o coordenador era membro ativo. Perguntaram se eu queria dizer algo ou apenas assistir, e eu respondi que não sabia ainda. Um homem robusto, começando a ficar calvo, estava entre os primeiros depoentes.

“Eu era um menino e ganhei, de Natal, de uma tia muito querida, um livro de aventuras. Só eu ganhei um livro. Meus irmãos, primos e primas ganharam outras coisas, com as quais foram brincar em seguida, enquanto eu, só eu, olhava com certa decepção aquele estreito volume ilustrado, com aventuras mágicas. Bom. No dia seguinte, depois do almoço, comecei a dar alguma atenção ao meu presente. Fiquei fascinado, confesso. Virava página após outra, lendo os textos breves, em letras grandes, próprios para aquela minha idade. Eu voltava as páginas, começava tudo de novo… Aquilo tudo era lindo! E foi assim que tudo começou. Nunca mais eu consegui parar. Desculpem…”

Emocionado, foi tocado nos ombros por duas pessoas próximas, vizinhas de assento.

“Está tudo bem. Estamos todos entre amigos.”

“Fique calmo, irmão. Sabemos como é isso.”

Ele se recuperou e anunciou algo ainda mais grave.

“E o pior… O pior… (entre soluços suaves) é que agora eu comecei a escrever contos…”

Murmúrio geral. Mais apoio dos mais próximos.

“E vou contar a vocês…”

“Conte sim. Conte tudo.”

“Eu não sei que final vou dar para o conto que estou escrevendo agora. Não… consigo… achar um final para ele…”, chorava agora com mais força e profundidade, soluços convulsivos.

O tenente Graciliano, negro de cabelos brancos cortados rente, fundador desse admirável círculo de apoio, era um militar de carreira. Depois de se aposentar, para ocupar o tempo ocioso, passou a ler mais livros de seu homônimo, sobrenome Ramos, e acabou se tornando um especialista na obra do alagoano. Até aí, não havia problema algum. Ele estava feliz com essa imersão e com seu conhecimento cada vez maior sobre aquele que viria a se tornar um de seus autores favoritos. O problema começou quando, no domínio dessa primeira empreitada, ele passou a se interessar, da mesma forma obsessiva e aprofundada, pela obra de Guimarães Rosa. O tenente reformado não tinha mais vida: não convivia com as pessoas, não saía de casa, ficava mesmo sem tomar banho por vários dias. Mais tarde, outros autores e autoras o desafiaram à investigação completa de suas obras em si mesmas, biografias, contextos históricos e o que se pudesse desentranhar de cada universo literário particular que se ia descortinando à sua curiosidade e ao seu fascínio incontroláveis. Mas ele agora era um outro homem: regenerado, lia pouco de determinado autor, outro pouco de determinada autora e não queria nem saber se esta colecionava miçangas ou se aquele conservava um caderninho de capa verde para anotações.

Uma das depoentes era uma jovem esbelta, de cabelos presos, fumante, vestida de preto, do lenço na cabeça aos tênis de adolescente.

“Eu quero retomar as boas novas que eu já vinha trazendo aqui desde algumas semanas passadas”, disse ela, pondo-se de pé.

Corpinho bem proporcionado, com tudo no lugar, tudo firme e admirável. E me parecia ser um daqueles rostos cujo encanto nos assaltam em um só momento, como um golpe, atingindo-nos com uma espécie de choque estético.

“Então, com mais esta semana que passou, eu completei um mês e meio sem ler nada. Isso mesmo que vocês ouviram: nada!”

Aplausos gerais. Sorrisos de bocas abertas e de bocas fechadas.

“Mas, me diga”, perguntou alguém do outro lado da roda. “Nada mesmo? Sério?”

“Bom… Notícias, sim. E umas apostilas que tenho que estudar para as provas de Sociologia, na faculdade. Mas literatura…”, moveu a cabeça para os dois lados e fez um gesto no ar com as duas mãos, simulando um ato de encerramento em relação a uma tarefa qualquer, “nada! Estou limpa!”

Três participantes a aplaudiram de pé.

O tenente Graciliano, com sua serenidade e ponderação, tomou a palavra.

“Meus amigos, nós nos gratificamos com o depoimento sincero e motivador de nossa irmã, que conseguiu, por suas próprias forças, romper o vício insidioso, traiçoeiro, sub-reptício, quiçá diabólico, da literatura. Agora, minha cara”, disse ele com ar paternal, “volte a ler alguma coisa, bem de leve. Acho que não há muito perigo agora, nesse seu momento, nessa sua fase.”

“Umas crônicas, talvez”, sugeriu um rapaz meio corcunda, de barba.

“Sim, uma ou outra crônica, talvez, pois a abstinência completa pode afetá-la de alguma maneira.”

“Ótimo ouvir isso, irmãos. Vou levar a sério. Obrigada, de coração, a todos os que me acolheram e me ouviram desde quando cheguei, caindo no abismo, desmoronando, a ponto de começar a esquadrinhar calhamaços de autores de outros séculos.” Curvou-se em tom de agradecimento, como uma atriz que se rende à plateia, e sorriu, de olhos brilhantes.

A roda girou. Ouvimos histórias engraçadas, tristes, misteriosas ou tragicamente explícitas. Eu sabia que, mais cedo ou mais tarde, chegaria a minha vez. Todos ali se mostravam muito compreensivos e me deixaram livre para escolher falar ou não. Eu estava me sentindo bem entre eles, e resolvi contar um episódio específico de minha vida de viciado.

“Quando comecei a ler As mil e uma noites, eu não imaginava o efeito que aquele livro teria sobre mim. Eu não conseguia mais dormir.”

Alguns menearam a cabeça positivamente, acompanhando meu relato.

“Porque ficava tentando adivinhar o desfecho do trecho da narrativa que havia lido, entendem? E que só continuaria na noite seguinte. Como o herói poderia se safar daquela cilada? – ou vencer aquele gênio mágico, ou atravessar aquela cadeia de montanhas… Enfim… Eu acendia de novo a luminária, reabria o livro, continuava lendo, passando pelo desfecho pretendido. Mas logo estava diante de outro ponto intrigante, que só seria esclarecido se eu continuasse lendo e lendo…”

Uma mulher que se sentava ao meu lado, aparentando pouco mais de trinta anos, pousou uma das mãos em minhas costas e, com a outra, segurou-me o braço, talvez tentando transmitir-me energia e apoio, se por acaso eu irrompesse em prantos. (Depois eu soube que ela nem mesmo tinha chegado aos trinta: parecia envelhecida e pálida, um espécime sobrevivente de fases difíceis das leituras da vida.)

“Eu comecei a tomar remédios para dormir. Sem eles, ficaria lendo as histórias todas das noites e mais noites até o amanhecer. Isso estava acabando com a minha saúde. Pondo em risco a minha lucidez. Comprometendo o meu trabalho…”

“E como você venceu essa crise, irmão?”

Girei a cabeça, como se pudesse me dirigir a todos os participantes.

“Não a venci, amigos. Isso só acabou, de fato, quando terminei de ler o livro.”

Aplausos gerais, convencionais, discretos, sem muito entusiasmo, naquele tom de que me aceitavam como eu era. Agradeci com um movimento de cabeça que significava: não é para tanto.

“Obrigado por nos iluminar com seu testemunho”, disse o tenente Graciliano, com sincera cordialidade, voz tão amigável que mal se poderia imaginá-lo comandando um batalhão em exercícios de guerra.

Esse meu depoimento foi um dos mais breves e menos impactantes. Mas era fácil perceber que todos ali gostavam de enfatizar as coisas, exagerar um pouco, liberar-se para a autocomoção e também propensos a comover os outros. Afinal, eram todos afetados pelos efeitos nocivos da literatura. A mulher ao meu lado, que não havia me soltado um só instante, agora segurava minha mão direita com as suas duas mãos, solidária e solícita.

“Obrigado pelo apoio”, eu disse a ela enquanto outros tomavam a palavra, esperando que ela me soltasse a mão em seguida.

Com os olhos fundos, tristes e bonitos, de quem teria lido toda a obra de Clarice Lispector e de Virginia Woolf, ela perguntou, a meia voz:

“Você é casado?”

Imagem: Pedro Américo. A leitura.

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