Office in a Small City por Edward Hopper

Teus olhos na escuridão. 6

Uma aventura perigosa na clandestinidade.
O mapa de um escândalo.
Um segredo potencialmente devastad
or.

Fazia já duas semanas que as influências agradáveis e inconfundíveis da Rose aromatizaram meu estreito apartamento orientado por livros. Seu perfume tinha certa densidade, eu quase podia tocá-lo no ar, com os lábios, se me esforçasse um pouco. Na primeira vez que a contratei, aconteceu-me aquele arrepio de grata surpresa, porque ela era uma garota bem comum, bem real e humana, sem maquiagem ostensiva nem fingimentos de maneirismos. Sua pele tem a cor de um chá forte. Seus olhos são negros, oscilantes, movidos pela atenção e pela esperteza. Suas sobrancelhas, que ela molda de acordo com preferências pessoais ao depilar trechos específicos, são grossas e dá para ver que se emendariam no alto do nariz, como ponto de partida sinclinal para arcos de curvatura alta, que depois descem singelamente nas extremidades, quase à altura das órbitas oculares. Boca grande, sorriso fácil – um dos incisivos superiores, com a lateral lascada, lembra discretamente uma forma triangular. À esquerda de sua boca grande e linda, desce uma linha que se interrompe no queixo: uma cicatriz antiga (ela já me deu duas versões diferentes sobre ela, sem perceber) que não é senão um filamento de pele mais clara, sem relevos, sem resquícios de costura, nada mais que o traço de um desenhista cuidadoso, em duas dimensões. Ela tem algo de rústico, de bruto. Sua origem é bem modesta, para dizer o mínimo e de maneira eufemística. Um pouco musculosa, mas esbelta, desenvolta, naturalmente ativa, desde o modo como caminha, se senta e levanta, rápida em suas decisões. Seus braços, de uma musculatura suave mas bem visível, são bem proporcionados e firmes, talvez fossem bastante inspiradores a algum artista que estivesse à procura de um modelo. Suas pernas são longas, coxas mais volumosas do que se espera, considerando suas canelas menos robustas, logo abaixo. Seios pequenos e quase duros, que me encantam pateticamente, como se me fizessem distrair do mundo e desejar ficar muito tempo me repetindo com eles. Suas nádegas também são pequenas, naturalmente mais claras sob a marca da peça inferior de algum biquíni. Aí também, quase na fronteira com o alto da coxa, há uma cicatriz pequena e suave, que ela identifica com um acidente em sua infância. No trecho final de suas costas, à altura da vértebra mais ao sul, tatuadas em letras pequenas, leem-se as palavras TRUE LOVE. Ainda nas costas, agora à altura de seu ombro direito, o rosto de uma menina de perfil, delicada, cheirando uma florzinha. No conjunto, sua nudez é agradável e motivadora, e eu me acostumei muito bem a ela – a ela e à sua nudez de fêmea forte, sendo bem claro, sincero e rendido. Passei a chamá-la mais vezes, e de certa forma nos tornamos amigos, dada a confiança que revela ter em mim.

“Um dia”, brinquei com ela, “vou te chamar só pra conversar, só pra você me ouvir, sentadinha ao meu colo. Quero te contar segredos.”

Ela ergueu o queixo enquanto ria, derivando a um sorriso devastador, com sua boca horizontal, de lábios grandes e dentinho quebrado. “Ahahah! Duvido, duvido, duvido! que você aguenta…”

Às vezes, eu admirava por mais tempo seu pescoço liso e muito proporcional à cabeça e aos ombros, nem muito fino nem outra coisa. Além disso, eu o tinha como um recorte singular de seu corpo, propenso a carícias e beijos leves. E beijos fortes também, que o decurso de um processo erótico compartilhado pode atender a uma gradação, como a partir de um adagio e de um movimento troppo dolce, conduzindo a um crescendo. Enfim, eu me encantava em tocar sua pele lisa, de cor morena bem acentuada, particularmente nesse conjunto compreendendo pescoço e ombros, sem uma dobrinha, sem um grama de gordura a mais, delimitado por uma gargantilha delicada que parecia isolar toda essa parte, a região norte de seu corpo, e que servia, sua pele exposta à minha observação obstinada, mesmo que nunca eu lhe houvesse perguntado sua idade, como prova irrefutável de sua juventude.

Na primeira vez em que esteve aqui, ela observou: “Quanto livro! Você é professor, é? Livros de verdade…”. Falei de meu trabalho. “Um jornalista midcom! Que fofo…”

Conto tudo a ela, até o meu verdadeiro nome, não me importo nada com isso. Mas sei que não é delicado perguntar o nome verdadeiro de uma profissional, por isso ela é, para mim, apenas (e já é muita coisa!) a minha Rose: rústica, sem artificialismos, com esse nome simples e belo, que desliza na boca.

Antes de ir embora, perguntou, hesitante: “Posso tomar um banho?”. Claro que sim, e ela passou a se sentir mais à vontade comigo, percebendo que sou um cara tranquilo com essas relações, com esse tipo de coisa.

Nesse último encontro, pensei em contratá-la com mais frequência, mas pensei também no meu dinheiro contado para o mês. Melhor eu me comportar. Evitar vícios, tanto nocivos quanto saudáveis. E economizar signos virtuais. Hora de acertar, pagar por seus serviços. Acionamos nossos personais quase ao mesmo tempo. Toquei a tela transferência, o aparelho dela emitiu um sininho característico. Agradeceu. Pronta para ir. Um abraço carinhoso, como sempre fazemos, no final. Gosto disso.

“Mmmm….!” ela murmurou, imitando sinais de mastigação, enquanto me abraçava com sua força de camponesa afetuosa. “Ganhei o dia, viu?”

Beijei sua orelha, seu pescoço.“Eu é que ganhei o dia, ganhei a noite: você é linda.”

Ajustou a bolsa sobre o ombro, tocou os cabelos ainda úmidos com a mão, agitando-os como se de repente lhe atacasse algum prurido no couro cabeludo.

“Você pede um aero pra mim? Não quero pegar metrô hoje.”

“Claro. Quer que eu desça com você?”

“Não precisa não.” Despediu-se à porta. Sorriso, beijo no ar. “Tchau, lindo. Vê se me chama…”

Outras eventuais me agradavam e me satisfaziam muito bem, mas algumas se mostravam distantes, nem olhavam na minha cara direito. Outras eram fingidamente alegres. Outras me despertavam certa desconfiança, pela maneira como esquadrinhavam o interior do apartamento com os olhos, estranhando, pelo menos, que eu possuísse livros de verdade. Certa vez, uma loirinha, de cabelos curtos, quis saber o meu signo no zodíaco, e concluiu que era por isso que eu gostava tanto de ler. De minha parte, irritava-me que mulheres com esse nível de superstição me atraíssem fisicamente. Mas meus desejos seguiam intactos, sob meu controle ou quase isso. Uma delas, um tanto fria, mas muito eficiente na hora de trabalhar, depois de encerrada a primeira e mais urgente etapa desses picos de amor, ficou deitada ao meu lado por um tempo, entre amenidades. Fumamos juntos, e ela me contou (não pareceu ser mentira) que era muito religiosa.

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