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Um olhar claro sobre Teus olhos na escuridão

Resenha crítica de José de Arimatéa Nogueira Alves (Ary Txay), autor de diversos livros sobre história, política e particularmente sobre a cultura dos povos originários. Ary, como costumo chamá-lo desde que conheci seu trabalho e suas afinidades com a história e a causa dos indígenas, tornou-se um amigo na época em que participávamos de um mesmo site de literatura. Desde então, esse intelectual a quem admiro tem me apoiado de diversas maneiras, com a divulgação de meus livros e indicações a editores, inclusive no exterior. O mínimo que posso dizer sobre ele é que é um leitor especial, com senso de observação aguçado e acima da média (e da mídia, aproveitando o contexto).


UMA LEITURA DE TEUS OLHOS NA ESCURIDÃO

Ficção e realidade na obra de Perce Polegatto

 por José de Arimatéa Nogueira Alves/Ary Txay

Preliminares

Ao concluir a primeira leitura de Teus olhos na escuridão (1ª edição, 2022), em meados de janeiro de 2023, senti a necessidade de fazer uma segunda leitura. Já tinha feito um fichamento-resumo. A preparação desta resenha implicou tríplice ou quádrupla leitura do livro mencionado de Perce Polegatto. Conheço poucos autores que escreveram com tanta engenhosidade e verossimilhança com o seu tempo, com os fatos, mesmo tratando-se de ficção. As grandes editoras e os livreiros estão perdendo a oportunidade de oferecer ao público, maior perdedor, essa obra com riqueza imensa em conteúdos, reflexão e concepção estética refinada.

A humanidade é um grande livro com histórias fragmentadas, publicadas ou não. Literatos concordam que não há obra absolutamente original. Por outro lado, em diferentes épocas, filósofos visionários imaginaram modelos para a organização de sociedades humanas, sendo as regras do bem viver quase inspiradas em um comando divino e/ou autoritário, além de sabedoria e muito poder. Platão imaginou uma República sob o comando plutocrático, sem a participação dos poetas. A Utopia custou a cabeça de Thomas Morus (ou More). Martinho Lutero, assim como Tommaso Campanella (A cidade do Sol), foi reprimido pelo papado católico e hegemônico de seu tempo. Em 1932, Aldous Huxley publicou Admirável mundo novo, antevisão de engenharia genética e inteligência artificial manipulada por forças gananciosas e sem humanidade. O romance 1984, de George Orwell, é caudatário de Huxley, que também utiliza elementos inspirados no stalinismo soviético. Perce Polegatto pede passagem. Diferente do que ocorre no enredo de 1984 de Orwell, narrativa em que o controle e a repressão eram explícitos, em Teus olhos na escuridão, a sociedade foi submetida a um processo sutil de alienação em massa mediante corrupção sistêmica e manipulação da informação. Vejam que estamos falando de um processo que já ocorreu ou está em construção (in progress?) em nosso planeta. No roteiro em foco, parte da sociedade se torna alienada a ponto de ter a sensação ilusória de viver a plena liberdade em uma democracia. Muitos foram vítimas de uma armadilha invisível, outros tantos são oportunistas que embarcaram nessa onda. A classe política compactua com empresários corruptos. A maior parte do grupo de imprensa e comunicação adere à onda protofascista, assim como parte das corporações policial-militares e setores religiosos da extrema direita. A verdade torna-se relativa, a sociedade, ou grande parte da sociedade, não percebe que é tratada como marionete.  A elite política, criminosa e gananciosa, toma o poder, controla as funções estatais e econômicas em aliança com a classe. Enfim, o setor de comunicação chamado de midcom(imprensa em formato de jornal impresso/newsletter, tv, rádios, streaming, agências de notícia e publicidade) e universidade (via faculdades de jornalismo) atuarão minando a consciência da sociedade.   

Roteiro do livro e suas nuances

Em alguma passagem, Perce fala em jornada do herói. No entanto, não tenho certeza se esse escritor leu o guia de Christopher Vogler, A jornada do escritor: estruturas míticas para escritores. Trata-se de publicação badalada pelos roteiristas de Hollywood, traduzido pela Nova Fronteira (RJ/2006). Marco, protagonista de Teus olhos na escuridão, é um personagem muito bem concebido; faz a sua jornada do herói sem nada dever à esquematização dos arquétipos (Mentor, Arauto, Camaleão, Sombra etc.) mencionados por Vogler.

Uma marcação no roteiro dá a entender que a história se passa por volta do ano 2050, em uma sociedade que se alimenta e do complexo midiático e se espelha nele. Esse perfil de imprensa apresentado em Teus olhos na escuridão era chamado de imprensa marrom no Brasil de meados do século XX.  A propósito, em 1994, Rui Castro, jornalista, membro da Academia Brasileira de Letras, publicou o livro biográfico Chatô, o Rei do Brasil, em queconta a história de um homem de negócios, principalmente de uma rede jornais, rádio e tv, a serviço do patronato e do governo central, inclusive de ditadores. Assis Chateaubriand Bandeira de Mello (1892-1968), chamado de o primeiro Barão da Mídia Nacional, montou a maior estrutura de comunicação que até hoje existiu no Brasil, a rede Diários Associados; acaboufalindo na década de 1960. Conta-se que “as três coisas que o barão mais amou foram poder, arte e mulheres” (Bárbara Caran/Portal ESPM Jornalismo, 2/abr/2015 – visitado em 19/05/2023).

Em 1984(Orwell), o controle e a repressão eram explícitos. Já em Teus olhos na escuridão, a sociedade está entorpecida, foi envolvida por uma onda sutil, alienante. Vejam que estamos falando de um processo entranhado em grande parte dos habitantes do nosso planeta. No Mundo Livre, a sociedade, ou parte dela, imagina viver com muita liberdade. Realidade confunde-se com fantasia, já não se sabe o que é verdade e o que é mentira. A classe política, em conluio com empresários corruptos, compartilha o poder manipulando e controlando os meios de comunicação. A verdade torna-se relativa, a sociedade ou grande parte da sociedade, não percebe que é tratada como marionete.  Enfim, a elite criminosa e gananciosa controla as funções estatais e as relações econômicas em aliança com a elite rica. Segmentos da classe média, corporações de profissionais da comunicação estão envolvidas – consciente ou inconscientemente – para usufruir os bônus econômicos. O setor de comunicação é chamado de midcom(imprensa em formato de jornal impresso/newsletter, tv, rádios, streaming, agências de notícia e publicidade).

Uma boa história, ainda que ficcional, não exige necessariamente duendes, hobbits, alienígenas, vampiros, naves intergalácticas ou ETs que ameaçam invadir o planeta Terra. A arte em prosa também não é escrava do mar de sangue, da violência social ou familiar. Interessante perceber que o texto de Perce, embora ficcional, resgata fatos registrados na nossa história ou noticiário cotidiano. A exclusão e a brutalidade do nosso tempo não é um fenômeno espontâneo. Para contextualizar, os leitores da revista O Cruzeiro e dos jornais cariocas da década de 1960 talvez recordem da tragédia que ficou conhecida como Caso Araceli. A vítima, uma menina chamada Araceli, moradora da zona Norte do Rio de Janeiro, tinha 8 anos de idade; foi sequestrada, drogada, seviciada até a morte, para em seguida ter o cadáver ocultado. Os autores do crime, jovens da classe média alta, tinham relações com ricos e políticos – dentre esses, um senador da república. Perce recuperou esse caso brutal (sem citar nomes) para sinalizar que a violência não é uma novidade. No caso relatado em Teus olhos na escuridão, a versão moderna recorre ao padrão marrom de antigamente, subverte e suaviza a brutalidade recorrendo ao padrão das facultativas: “os jovens pretendiam apenas fazer uma brincadeira, quando foram surpreendidos pela morte da criança […]” (p. 69)

Não pretendo produzir spoiler e desagradar leitores, limito-me a fazer um sumário com menos de dez laudas de uma história que foi contada em 425 páginas.

O título do livro é feliz quando recorre à cegueira como metáfora. Sim, a sociedade está politicamente cega na história contada por Perce, Teus olhos na escuridão. Imaginem a ideologia de uma classe política corrupta que, em aliança com empresários igualmente corruptos, engendra um plano para manter-se no poder indefinidamente. O erário financia esse plano macabro que garante poder e riqueza aos seus operadores. Eleitores sensíveis à propaganda nazifascista e grupos oportunistas – principalmente do setor midiático e jornalístico – surfam ou são empurrados pela onda desviante. Profissionais partilham nacos dessa receita criminosa. O povão, os pacatos cidadãos, alienados por ingenuidade, inocência ou interesses escusos, vivem felizes, trabalham, praticam esportes, divertem-se com amigos, às vezes bebendo cervejas Tincobell, Morgana, Blue-F etc.

O autor vai além da fantasia tão ao gosto dos meios de comunicação do nosso tempo e trata de um tema sério: civilização em um mundo capitalista. Ideologia, política, cultura, mais amor, suspense, relações em ambiente de trabalho e em família. Esse trabalho de Perce Polegatto oferece aos estudantes universitários e aos profissionais do jornalismo rico material para embasar discussão sobre o papel e o perfil da moderna imprensa mundial.

Os dois primeiros capítulos são um flashback dos demais, em número de sessenta. O leitor paciente logo perceberá que certa melancolia ou frieza inicial rapidamente mudará no decorrer da narrativa. O meu conselho é que avancem na leitura e mergulhem nesse thriller surpreendente.

Como uma sociedade pode cair em uma armadilha desse tamanho? Indagação inevitável para qualquer leitor curioso, um bom leitor, por certo. Para não perder a viagem: a mesma pergunta que tem sido feita por um número incerto de cidadãos brasileiros após as eleições – algumas dezenas de milhões, por certo – presidenciais ocorridas no Brasil em dois de novembro de 2022. Vejam quanto diálogo entre ficção e vida.

Como fica claro na narrativa, a maior parte da sociedade pensa viver em um Mundo Livre. O que farão aquelas pessoas conscientes de que há manipulação e controle em sua volta? Qual a saída pra os resistentes ou para as pessoas que não foram dominadas – como é o caso do jornalista Marco? Participar da festa ignóbil? Resistir silenciosamente como monge ou tornar-se um revolucionário que se aplicará na sua práxis?

Marco, jornalista sério, culto, politizado, estava destinado a ser um herói independente do script de Christopher Vogler. Fazia parte de um grupo minoritário de profissionais, era crítico do padrão global alienante da midcom-eletiva que a classe dominante impôs às faculdades de jornalismo. Daí a afirmação de Cleo: “Acho que… a gente sai da universidade sem nem perguntar uma coisa dessa. Porque é tudo tão normal […].”(p. 79)

Como verão os leitores, o suspense se instala a partir do momento em que o aparelho de Marco (equivalente a um celular atual) é  inesperadamente invadido:

“Boa noite. Você fuma? […] Tenho algo que pode lhe interessar. Me encontre no Café Silene. Segunda-feira. Meia-noite e meia […] leve óculos protetor de sol.” (p. 71).

Trata-se de pessoa muito precavida, como faz crer no primeiro encontro:

“[…] não procure saber quem eu sou. Prometa que não fará isso. Ou eu desapareço.” (p. 97)

A informante oferece-lhe de bandeja um relato com força para derrubar uma República. Mas não é só isso. Dessa relação, brotarão informações sobre uma ardilosa engrenagem de controle social, manipulação da verdade e desvio de recursos do erário – nenhuma novidade para qualquer brasileiro minimamente informado, é oportuno dizer.

O editor-chefe do jornal Facto contratou Marco por saber da sua notável inteligência e capacidade profissional. Quem sabe, em algum momento, esse jornalista não resistiria à proposta de provar um naco dessa irrecusável torta enfeitiçada ou maçã envenenada… 

Escrever com consciência do seu tempo. É o que pode ser dito sobre o autor.

O fascismo evoluiu, como todo o seu aparato de organização e controle social. O avanço da tecnologia arrastou a comunicação humana. O módulo rede-comunicação deu um salto após a Segunda Guerra – nessa, nenhuma batalha foi transmitida on line, via satélite. Nada comparável ao que ocorreu, para exemplificar, com a invasão do Iraque em 2003, o choque das aeronaves às Torres Gêmeas e o trabalho heroico do Corpo de Bombeiros, que foi filmado ao vivo em 11 de setembro de 2001, em Nova York. Operações de ataque-defesa decorrentes da invasão russa à Ucrânia, em 2022, são o cenário dramático (mais trágico, na verdade) assistido pela comunidade mundial. Cinquenta anos atrás, ninguém imaginava ter em mãos diminutos aparelhos de voz, imagens e dados conectados à rede mundial e capazes de nos ensinar a localização de uma diminuta rua em uma metrópole na qual você nunca esteve antes.

A modernidade é um paraíso e também um inferno. Política e ideologia se infiltram nas relações sociais e econômicas.  Os leitores verão com que facilidade os personagens de Teus olhos na escuridão pegam um aero-táxi, e como os veículos de comunicação captam audiências, público. Não por acaso, Cleo, segunda personagem coadjuvante, jornalista recém-formada, em processo de aprendizagem, exclama, imaginando que está em um Mundo Livre:

“[…] ‘Viva o Mundo Livre’. Sim, é isso. Agora, ninguém pode nos privar dessas maravilhas” ao que Marco, colega no mesmo jornal, com maior bagagem intelectual, experiência profissional e consciência reage, quase a rebatendo:

“Mas hoje, de alguma forma, conseguiram fazer a maior parte das pessoas ignorar os livros. A liberdade total, o nosso Mundo Livre, afastou o interesse, a curiosidade geral por eles. Tudo fica muito acessível, e isso causa preguiça mental.” (p. 147)

Somente um escritor genial será capaz de escrever uma ficção tendo por base o materialismo histórico, teoria concebida por Marx e Engels. Não sendo eu especialista ou teórico marxista, peço a ajuda do professor doutor Luiz Antônio Guerra para nos dar uma palhinha:

“Podemos concluir que, de acordo com o marxismo, o modo de produção da vida material condiciona o processo da vida social, política e intelectual em geral. Isso equivale a dizer que diferentes conjuntos de relações econômicas determinarão a existência de diferentes formas de Estado e consciência social […] adequados para o funcionamento daquelas relações econômicas.” (https://cafecomsociologia.com>infraestrutura-e-superestrutura, visitado em 14/05/2023).

Fatiando Teus olhos na escuridão

Estruturas e superestruturas em foco

“Gabriel conversa com Hélio na redação: “Os índices de pobreza e de pessoas abaixo da linha da pobreza estão muito altos […] Castro vai ter que apresentar algum plano, alguma coisa pra mudar isso. Qualquer coisa.” (p. 363)

“As mitologias, as religiões, as superstições, enfim, você sabe: tudo mentira. As religiões são grandes mentiras institucionalizadas, e uma grande parte da humanidade não consegue viver sem elas.” (p. 367)

“As ditaduras na América Latina: sangrentas, precárias, lideradas por medíocres, não serviram para nada e ainda deixaram os países endividados, alguns falidos […]” (p.56)

“… era uma fazenda de trabalho escravo. Um dos rapazes explorados conseguiu fugir e denunciar os proprietários.” (p. 282)

As redes sociais e as fake news

“Ela já me havia prevenido sobre a vulnerabilidade das redes (o que todos já sabem), e algum perigo parecia estar ganhando forma […].” (p. 309)

“Estamos vivendo tempos sombrios […] Nós nos apoiamos na ilusão bem construída de um Mundo Livre e do direito de expressão pleno […] Uma fase obscura da nossa história.” (p. 322)

“[…] como hoje sabemos, tudo isso pode ser distorcido em função de um interesse qualquer.” (p. 154)

A imprensa e as facultativas

Na delegacia policial, um delegado interroga:

“Marco, você quer contar alguma coisa pra gente? […]. Movi a cabeça afirmativamente […] Somos especializados em artigos, tópicos, resenhas. Mantemos convênios com agências de notícias de menor porte” (p. 13)

Papo de jornalistas em local de trabalho:

“Edison, nosso editor-chefe, homem alto, postura física exemplar, óculos retangulares […] passou a observar e a pontuar, fazendo-se de professor […] ensinava aquela admirável publicação.” (p. 30)

Jornalistas discutem pauta e formato da edição de uma notícia:

Na tarde de ontem, em São José do Bom Termo (RA), foi registrada mais uma aparição da Virgem Maria […] Seria aconselhável substituir fiéis por pessoas […] teria melhor efeito se todos houvessem presenciado […] Os especialistas da Santa Sé atendem a umasérie de procedimentos antes de concluir […] de fato um milagre.” (p. 34)

“Viu o que publicaram sobre esses dois canalhas que mataram a menina?”

“Vi. É muito talento mesmo, tenho que admitir. Midcoms que trabalham com isso devem ser muito bem pagos […].” (p. 81)

Marco confidencia a Cleo:

“[…] conheço pouco você, mas sei que merece minha confiança […] ando muito impaciente para tolerar facultativas. Elas neutralizam tudo: meio ambiente, a política deste governo, de destruição para favorecer aproveitadores […].” (p. 83-84)

Marco fala sobre o perfil de outros jornalistas:

“Alfeu Loureiro, Beto […] estavam entre os principais articulistas criadores de facultativas do país: respeitados, requisitados e admirados […] conhecidos no universo midiático.” (p. 135-136)

Fala de Marco sobre a reação à sua reportagem:

“Eu me preparava para o bombardeio de facultativas […] uma quantidade de frenéticas facultativas […] de periódicos desconhecidos.” (p. 347)

Corrupção politico-empresarial

Os cronistas do passado, assim como os jornalistas dos séculos XX e XXI, tiveram acesso a farto material sobre corrupção. A classe política dirigente e os homens de negócios sempre foram protagonistas nessa cena como são em Teus olhos na escuridão. Aponto o mínimo:

“É sobre um amplo acordo entre políticos e empresários. Políticos de todos os escalões. Empresários de todos os níveis […] uma escala de podridão como nunca se viu.” (p. 197)

“Ela havia chegado ao limite […] sabia do seu envolvimento com esse mesmo esquema produtivo, rentável, essa orgia com dinheiro público […] queria algo em troca para continuar de bico calado.” (pg. 204)

“Quero derrubar a República […] Quero a ruína desse canalha. E de todos eles.” (p. 213-214)

“Ela havia descoberto o envolvimento do marido no esquema de corrupção no Congresso Nacional […] Eu sei de alguns outros casos como esse.” (p. 264)

“‘Bom dia, Marquim […] o governador foi preso.’ […] ‘Saiu algemado da mansão dele, logo cedo.’” (p. 295-296)

“‘Gente importante na Refinaria… A loja de chocolates era só um disfarce…’”(p. 272)

Autores e livros

Para não dizer muito: Perce Polegatto, escritor com mais de doze títulos publicados, professor universitário aposentado, é um apaixonado por livros. Nesse “pequeno best-seller” – bom que tenha dito isso em um spot do Facebook –, Perce faz uma louvação a grandes autores e cita algumas obras em diálogos casuais, a seguir:

De Marco para Cleo:

“Você gosta de literatura?”, ao que Cleo responde: “Gosto sim, muito […] Tenho muitos livros, adoro.” […] “Me fale se quer ler-ver algum livro que não conhece, podemos trocar mercadorias raras […] quase especiarias.” (p.33)

“Quanto livro! Você é professor, é? Livros de verdade..” (p. 44)

– fala da interessante coadjuvante chamada Rose (falaremos dela mais adiante).

Fala de Marco para Cleo:

“[…] precisamos achar um tempinho para falar de livros, lembra? Livros de verdade.” Ao que ela responde: “Precisamos sim. Temos pouca gente com quem conversar sobre isso […] esse gosto, esse prazer dos livros, o cheiro do papel, a textura das páginas… A gente se apaixona. Não é?” (p. 131)

“Mas hoje, de alguma forma, conseguiram fazer a maior parte das pessoas ignorar os livros.” (p. 147)

“‘Que privilégio’, disse eu ainda mirando os livros mais distantes’”, fala Marco para ouvir de Cleo: “Eu detesto Shakespeare.” […] “Sério? […] “Olha essa edição do Quixote […] Não é lindo?” (p. 148)

Dom Quixote é fascinante, mas obras como a Ilíada me cansam: guerras, sangue, gente se matando… […] Mas o Quixote é subversivo. Inovador.” (p. 149)

“Continuei andando devagar […] ‘Ah, você já leu este aqui?’ […] Era o calhamaço de Robert Musil. ‘[…] tem aquele tom irônico e bem-humorado’ […] peguei o livro que ela me passava. Augusto dos Anjos. Edição antiga também. Lindo. (p. 150-151)

“[…] peguei rapidamente um dos livros que pretendia mostrar-lhe. Coletânea de Tchekhov. Só que eu deveria supor que ela já conhecesse […] talvez não conhecesse aquele edição, pelo menos […] ‘Maupassant me fazia sonhar’ […] ‘Ah, e falando em loucos’ […] tomou o livro nas mãos. David Foster Wallace […] ‘Marcel Proust desafia classificações.’ […] ‘Um estilo absolutamente próprio, no máximo com traços de Joyce.’ ” (p. 182-183)

“Ela me mostrou o livro de frente: Virgínia Woolf.” (p. 252)

Igrejas e bispos

É justo reconhecer que ontem e hoje existiram religiosos dedicados ao amparo dos excluídos. O Brasil e o povo do Araguaia dá vivas ao saudoso Dom Pedro Casaldáliga, assim como ao incansável padre Júlio Lancellotti. Lamentavelmente, a maior parte desses homens ligados a igrejas são perniciosos. Algumas nações indígenas brasileiras ainda sofrem com a intrusão cultural-social desses profissionais de batina ou sem batina. Nos grandes centros urbanos, igrejas atuam com um time de pastores, inclusive bispos, em aliança com o lixo da classe política. Já falamos que Perce usa massa real para contar sua notável história – estória está em desuso. Logo no terceiro capítulo, Perce coloca em ação um bispo com nome apropriado (Ezequiel):

“Dois pastores evangélicos e um padre católico com o grupo […] os religiosos sorriam. Rômulo ironizou. ‘A harmonia entre os poderes’ […] ‘olha só: p pastor Ezequiel Madeira…’ ‘Bispo’, o Robinho corrigiu. ‘Bispo, ok.’ […] ‘Inacreditável!’ […] O bispo Ezequiel era líder espiritual (e material) da ISCQ, Santa Igreja do Cristo Quântico, a que mais prosperava no país […].” (p. 29)

“À tarde, o bispo Falchi Ruas entrou em rede nacional. Pediu aos fiéis uma corrente de orações pela união de nosso povo […] Ele era um grande ator.” (p.236)

“[…] foram detidos um pastor evangélico, muito atuante em seus templos […] e alguns outros […].” (p.300)

Erotismo, sensualidade

Perce faz poesia e prosa. Elabora textos com tintas de sensualidade e erotismo de alta qualidade estética. Nessa narrativa, há passagens muito interessantes entre Marco, Cleo (colega/namorada) e Rose (uma eventual), como segue:

“[…] a Cleo chegou. […] ‘Marco essa é Cleo. Começando com a gente hoje.’ […] ‘Muito prazer. Seja bem-vinda.’ […] Mais baixa que eu, corpo roliço, quase sem cintura […] Quadris largos, ombros pequenos, abaulados […] Seios grandes, altos, robustos, sob uma blusa escura.” (p. 25)

“Ela trocou o pé de apoio, mínimo movimento grácil, seus seios robustos oscilaram um pouco.” (p. 32)

“Fazia já duas semanas que as influências agradáveis e inconfundíveis da Rose aromatizavam meu estreio apartamento […] Seu perfume tinha certa densidade, eu quase podia tocá-lo no ar, com os lábios […] Na primeira vez que a contratei, aconteceu-me aquele arrepio de grata surpresa […] Sua pele tem a cor de um chá forte. Seus olhos são negros, oscilantes […] Suas sobrancelhas […] Boca grande, sorriso fácil […] Suas nádegas também são pequenas […] no conjunto, sua nudez é agradável e motivadora, e eu me acostumei muito bem a ela […]. (p. 43-44)

“No dia seguinte, chamei a Rose. Ela estava live […] Casaquinho aberto, saia curta e sapatinhos de salto. Elegante e ainda rústica. […] Uma eventual apaixonante […] eu a abracei com energia, apertando suas costas, prendendo seu corpo […] queria que soltasse os cabelos. […] Rabo de cavalo. Está linda […] Quase lhe pedi que dançasse para mim. […] Fui ao chuveiro, ajustei a água a uma temperatura ideal […] acariciado agora por umas últimas porções finas de esperma, ainda brotando e escorregando por minhas pernas.” (p. 224-225)

José de Arimatéa Nogueira Alves/Ary Txay

Salvador, Bahia, maio/2023

arytxay@gmail.com

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