Office in a Small City por Edward Hopper

A encantadora ovelha ruiva. Parte 2 (I Ching, estrelas, patrão)

A única coisa que eu podia afirmar a mim mesmo era que aquela ruivinha supersticiosa me inspirava, naturalmente.
O mais são confusões: amor, paixão, desejo, um carnaval de lixo semântico que só serve para piorar o sofrimento de todos nós.

Fritz Bultman. New York Post (detalhe inferior). 1939Tinha fome, mas queria antes passar na livraria – a ovelha ruiva. Sua imagem quase sempre voltava à minha frente, quase sentia seu cheiro, de memória, quando ela se aproximava muito. Eu a vira no dia anterior. Continuava disfarçando, fingindo que não me importava com ela. Planejava isso tudo com certa lucidez, para que ela não suspeitasse que minha vontade de encontrá-la era o único motivo de eu ir até aquele reduto de manuais de instrução quântico-alquímicos pós-medievais. Eu costumava deixar passar uns dias, como de hábito. Mas, dessa vez, não pude resistir. Andava rápido pelas ruas. Um desejo latente, como minha fome, atravessava-me o sangue. Eu, que não queria encontrar ninguém.

O volume do rádio quase me punha a gritar. Eles escolhiam a estação mais estridente, a mais ruidosa. Numa livraria. Faixas devastadoras, cujas letras eram um mistério, alternavam-se apenas com os temas morrinhas da telenovela, que dariam sono a um cidadão endividado e faziam sentir falta das bandas mais barulhentas. Canastrices o dia todo. Também configurava um mistério para mim que toda essa discografia correspondesse aos anseios do mercado. Gravadoras, intérpretes e até compositores conseguiam, miraculosamente, enriquecer com aquilo.

“Onde está aquela moça que… A… A…”, ovelha ruiva, eu quase disse.

“Um inshtante. Vou chamarr”, disse o rapaz.

Ele é interiorano, mas tem o sotaque carregado dos cariocas, sabe-se lá por quê. Cabelos compridos, brincos em meia-lua e pirâmide, apaixonado pelo místico, pelo exótico, por tudo o que nos faz girar em círculos. Seu sotaque soma-se aos mistérios. Sou meio azarado, como disse. Por sorte, ele nunca se insinuou com relação a mim: não tenta me influenciar, me persuadir, conserva alguma distância calculada de um cético mal disfarçado como eu. Tenho esse consolo. Não deixa de ser um consolo.

Fiquei esperando. A única coisa que eu podia afirmar a mim mesmo era que aquela ruivinha supersticiosa me inspirava, naturalmente. O mais são confusões e coisas que nos ensinaram sobre significados: amor, paixão, desejo, um carnaval de lixo semântico que só serve para piorar o sofrimento de todos nós.

Ela se aproxima, saída de trás de uma estante.

“Oi!”, esse oi em meio a um sorriso, quase num tom de interrogação. “Alguma coisa atraiu você afinal?”

“Oi. Ahn… Digamos que sim.”

Ovelha negra, quem diria: blusinha preta, de alças, minissaia, sapatos de salto, também pretos. Mulheres de preto são meu fraco. Ela não era exatamente o que se tem como uma pessoa de bom gosto, mas aparecia sempre vestida de maneira atraente, pronta a despertar a sensualidade alheia e, particularmente nesse dia, pronta para uma ocasião especial, coincidência que renovou supersticiosamente (!) minhas esperanças, pois nunca antes eu a encontrara sob tal variação, fora de seus conhecidos decotes, malhas justas, transparências e outras feitiçarias.

“Algum desses novos?”

Estante giratória. Mostrou-me uma edição ilustrada. Era um livro sobre a criação do mundo.

“Olha, não. Não é bem isso. Aliás, devemos evitar ao máximo as ilustrações. Na verdade, eu queria saber se você já almoçou, se ainda vai…”

“Não almoço. Faço dieta.”

“Você não pode deixar a livraria por uns quinze minutos, tomar alguma coisa comigo?”

“Como assim?”

“Uma lanchonete aqui perto. Sei que você vai gostar.”

“Você está me convidando…”

“Escuta. Olha. De verdade mesmo, eu não estou nada interessado nesses livros horrorosos, só não tinha coragem de lhe dizer isso. Mas hoje eu me sinto mais forte e vou lhe dizer de uma vez: o que eu queria mesmo, esse tempo todo, era falar com você. Nem sei o seu nome ainda. Não quero mais chamar você de ovelha ruiva. Os dias vão passando, nossos dias, aliás, vão passando, você aqui e eu…”

“Como é que é? Me chamar de ovelha?”

“Explico tudo, se você vier.”

“Não posso sair assim! Ficou louco?”

“Claro que não, você sabe que não. Que eu não fiquei louco, quero dizer. Seu colega pode cuidar da livraria por uns minutos, não tem nada de valor aqui.”

“O quê? Primeiro você chama os nossos livros de horrorosos, e agora…”

“Tudo bem, esqueça isso. Aceita o meu convite?”

O rapaz dos brincos observava toda a cena, posicionado de maneira dissimulada e estratégica. Parecia divertido, destilando um certo cinismo, de quem ansiava por comentar tudo aquilo com o primeiro que aparecesse. O que ele estranhava, afinal, diante de um mundo onde todos pareciam estar enlouquecendo? Por que eu não teria um mínimo de coragem? Por que eu não desejaria uma mulher?

“Você me pegou de surpresa. Não é?”, disse ela afastando não mais que meio passo. “Alguma vez eu te dei algum sinal que…”

“Eu não sei nada sobre esses sinais. Olha, eu nem sei o seu nome…”

“Fátima.”

“… e não estou propondo nada de mais, o que eu estou… Fátima? Ah, sei. Certo. Sei que você vai gostar do lugar, Fátima. Tenho certeza. E então?”

“Fátima de Oliveira.”

“Certo, certo. E então?”

“Bom…”

“Uns minutos podem nos fazer felizes. Nós todos temos trabalhado muito.”

“Olha… Desculpe. Não hoje, tá bom? Meu I Ching me desaconselhou a qualquer nova aventura”, disse ela com certa contrariedade, de alguma forma tentada a aceitar, mas como se alguém mais velho e invisível a estivesse orientando, impedindo-a de viver à sua maneira. (Eu imaginava um sábio chinês de barbicha branca, que teria renunciado ao sexo, deve ter sido por causa do I Ching e essas coisas.) Tanto que não deixou de acenar com um: “Outro dia, pode ser?”.

“Aventura? Você chama isso de aventura?”

“Quem somos nós para saber o que o destino nos reserva, não é mesmo?”

“Chama isso de aventura?”, eu estava quase ganindo.

A partir daí, já me sentia desgostoso. O preto dela começava a fazer-se luto.

“Estamos todos rastejando, rastejando… Estamos todos anestesiados. Enfeitiçados pelas bruxas. Pelos magos. Imunes a verdadeiras aventuras.”

“Não entendo o que você diz.”

“Dependendo do I Ching, de horóscopos, de mapas fantasiosos. Não temos mais sangue.”

“Ei, olha pra mim. Tá passando bem?”

“Não temos mais vida, vontade de viver. Entregamos tudo aos astros, aos deuses.”

“Nas estrelas é que tudo está escrito. Os sábios antigos já sabiam disso há muito tempo. Mas você não entende, não adianta.”

“A sua decisão muda tudo. Deixe as estrelas, danem-se as estrelas. E os sábios antigos. E os magos da autoajuda. Você também pode escrever. Nunca pensou nisso?”

“Não seja grosso, hein? Já vi que nós não nos entendemos.”

“Quem sabe? Como não? Nunca falamos em outra coisa.”

“Outro dia, tá bem? Vamos ver. Se o meu patrão deixar.”

I Ching, estrelas, patrão. Onde vai parar essa menina?

A conspiração dos felizes – Guia de leitura

10. Vina, a quase viúva – sequência

8. Coisas de rua e encontros desastrados – anterior

Imagem: Fritz Bultman. New York Post (detalhe inferior). 1939.

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