Office in a Small City por Edward Hopper

Meu tempo sem previsão

Não se sabia mais quando ocorreria ou não um desses aguaceiros devastadores.
Vina e sua mala. Os choques. A chuva. Minha cota na tempestade.

Michael Alford. Ludgate Hill II.Pensando nela enquanto me lançava às ruas de segunda-feira, em busca de endereços e devedores. Tudo outra vez. Pela manhã, costumo me sentir um pouco atordoado, por nenhum motivo especial, por causa das manhãs do mundo mesmo, nada mais. Olhava às vezes para baixo, às vezes para os lados, enquanto caminhava. Às vezes, para alguém. Mal podia crer que entrara uma mulher em minha casa, em minha vida. Até chamá-la mulher declinava ao exagero. Uma menina que… Bem, bem. Também não é assim. Eu a deixara dormindo, fechara a porta com cuidado, chave por dentro. Recordava nossas infinitas conversas, sim, ela falava demais. Máquina de fazer perguntas. O que ela esperava de mim? Que me virasse do avesso para que ela soubesse de tudo? Então uma menina (jovem, melhor) de quinze anos, surgida do nada, com uma mala de livros, tentava involuntariamente abrir meu cofre de segredos, minha arca de traumas e crimes invisíveis, meu passado inconfessável? Perguntara, sobre os mais pobres: “O que você sente por essas pessoas?”. “Antes, eu tinha pena.” Antes do quê, ela queria saber. Perguntas assim, como também minhas respostas, surpreendiam-me, perturbavam. Ela, levemente afetada pela consciência de suas pequenas mentiras, repetindo: “Você me acha cruel?”. Gostaria de estudar literatura, cursar faculdade, mas era de família humilde e sem recursos, ela sozinha mal podia sobreviver. Andava rebocando aqueles livros, editados sabe-se lá com que economias, aquela mala bojuda, a mala negra de sua pequena vida. E cai-me à porta de casa.

Letreiro na farmácia fechada: DIA E NOITE. Bem em frente, espetado em um poste, o gigantesco mostrador digital indicava 3:38. Eram nove da manhã. O rádio informara que a temperatura continuaria em elevação e que o calor seria mais intenso no período da tarde. Perto das dez, deu-se um temporal. Uma chuva pesada, breve mas abundante, teve uma duração, levando-se em conta as previsões, relativamente longa. Não se sabia mais quando ocorreria ou não um desses aguaceiros devastadores. Vina e sua mala. Os choques. A chuva. Minha cota na tempestade.

O verão havia chegado mais cedo. Os ventos de agosto sopraram em julho, zombando dos calendários. Na temporada de chuvas, não choveu. Quando todos esperavam os dias mais secos, as chuvas pareciam não ter fim. A natureza nacional desafiava as previsões. Hoje mal se faz ideia do que será nosso futuro próximo ou presente quase imediato, como no caso do último presidente e sua quadrilha de elite. Há detalhes que nem os poderosos conseguem prever. Sim, isso é mesmo sinistro, essa gente maquiavélica com poder sobre nós, esses morcegos públicos, à luz do dia.

A chuva confinou-me com outros, sob a proteção de lojas e galerias. Galeria Senador… Não me interessa. Por toda parte, ruas com nomes de deputados, vereadores, patriarcas e príncipes. Algumas são hoje conhecidas como rua das meninas, rua das putas, como se fossem estes os seus nomes. Ruas com datas, dia e mês, de eventos por vezes obscuros, mal sabidos. Sete de Agosto, Onze de Abril… Que ruas são essas? Que datas são essas? Veja-se o primeiro asterisco no calendário: Confraternização Universal. Confraternização… – que palavras! O que se comemora, mesmo nas datas conhecidas, se tudo derivou à ruína? É o caso. Se há duas datas que nosso povo não tem por que comemorar são a Independência e a República. Finados, vá lá, pois aí se inserem os generais e os presidentes mortos, os… Certo, certo, faz o fantasma de Vina. Não se atormente tanto, o tempo que cuide deles, não deixe de ser feliz por isso. Feliz, eu dizia. Estranho. Era isso mesmo? Era isso mesmo, enquanto eu passava por esta esquina e antes que a chuva e antes que o tempo… Valerá a pena pensar em qualquer relação com o tempo? Mas que tempo, afinal? A chuva fustiga os calçadões.

Vina entre os morcegos (A conspiração dos felizes)

17. Minha parte entre o sol e as chuvas – sequência

15. Para eles, não há história – anterior

Guia de leitura

Imagem: Michael Alford. Ludgate Hill II.

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