Office in a Small City por Edward Hopper

Minha parte entre o sol e as chuvas

Não é a chuva o que me deixa triste.
Não sei mais o que me deixa triste.

Fernand Harvey Lungren. Cena de rua em Paris. 1882.A tempestade. Mais tarde, pelos noticiários, conheceremos as vítimas de enchentes e desabamentos. Parece incrível, mas é assombroso, que a cada momento nasçam e morram pessoas por toda parte. Milhares, milhões. A diluição do individualismo pode nos deprimir, não devemos nos desviar de nossas vaidades. Hoje, são muitos de nós, somos menos escassos, mais substituíveis. Um dia, uma noite: milhões deixando a placenta aquecida em direção ao seio materno, outros tantos milhões desembocando inertes nos ossuários. Sem um gesto, um grito. Meu colega diz que “as pessoas são todas especiais”, pois cada um de nós é um vitorioso, um vencedor, o espermatozoide campeão que primeiro violentou o óvulo. Somos sua forma desenvolvida, sua descendência. Grande consolo. No fim, as coisas todas são espantosas, se pensarmos bem. O que mais me admira no espetáculo do mundo, demarcado por longos estios e chuvas devastadoras, é esse inconcebível potencial de fugacidade e aniquilação, um sol escuro, nem benigno nem maligno, que a um tempo extingue e renova tudo o que existe, preservando a vida à custa de exterminar justamente os que vivem, com isso propondo que tudo continue – sob o preço de que nada permaneça.

Considerando-se certas questões e tempestades que sem aviso me atravessam, seria de estranhar que eu me preocupasse com os pobres, isto é, com os mais pobres, que pobre também sou. Mas todos participam de meus silêncios. E minha precária visão tem outras facetas: de certa forma, não me interessam os fatores da sobrevivência ou do bem-estar. Mas gostaria muito de saber o que Mendelssohn pensava sobre a solidão ou Modigliani sobre a poesia. À parte serem ricos ou pobres.

Não é a chuva o que me deixa triste. Não sei mais o que me deixa triste. Desde muito cedo, reconheci essa insólita sensação, quem sabe uma angústia congênita. Via os meninos despreocupados, apenas vivendo, não podia deixar de constatar que havia algo diferente em mim e em minhas necessidades. Meus primeiros professores também o percebiam e lamentavam que eu tivesse inteligência bastante para ser triste. Vina não pode compreender isso. Não é sua culpa.

Vina entre os morcegos (A conspiração dos felizes)

18. Comer alguma coisa, a vida outra vez – sequência

16. Meu tempo sem previsão – anterior

Guia de leitura

Imagem: Fernand Harvey Lungren. Cena de rua em Paris. 1882.

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