Office in a Small City por Edward Hopper

Braile, chancelaria, onda dentro de um vidro

… que acontecem

Trechos de alguns contos apresentados no sarau da Casa do Poeta em 27 de maio último, no Centro Cultural Palace.

No último degrau do pátio, o menino intui que as palavras se transformam, que se modificam conforme os olhos de quem as considera […]. Que viajam. E se deslocam entre os dias e os gestos, e se dissolvem para germinar, desaparecem como os antigos idiomas e os povos reciclados pela terra. Não existe o ponto, nós o inventamos. Para que a frase se detenha. E o texto não se confunda com o universo ou com a sombra. Quando despertava, admirava-me que as palavras estivessem presas às coisas e não caíssem como o ramo seco de uma árvore […]. Que um vento forte não as embaralhasse e essa árvore não passasse a se chamar poste ou cavalo. Um cão, menino. Uma casa, ratoeira. Um homem, pedra. O muro coberto pela hera é o mesmo muro? O nome dos mortos continua nas trevas? Eu, que há tanto me alimentava de perguntas e palavras, desejava saber agora onde estaria o texto final, o relevo em pedra, a inscrição no milenar sepulcro que resumisse magicamente o que sempre eu buscara em vão.

Braile contra a luz. Lisette Maris em seu endereço de inverno

Sinto-me face ao dia que não terminará, quem sabe, embora eu não almeje senão realizar-me seja como for, conquistar o tempo necessário à concretização de meus abstratos, seja este dia ou esta página, agora que tão intensamente atravesso as tardes de perdidas luminosidades, tão parecidas com a minha infância, de mesmo calor e mesmo incômodo, até finalmente intuir que um dos objetivos da vida é, magicamente, estar aqui. Medicamento sob prescrição médica, que diferença faz? Esbarro em tantos semelhantes sadios, mal os reconheço. Sei que o mundo é feito principalmente dos que não puderam realizar-se.

Chancelaria e viagem. Lisette Maris em seu endereço de inverno

À noite, sonhei com o menino que eu era. Sonhei com os barcos de papel que eu fazia e punha a flutuar sobre as águas das ruas. Depois, repassaram-me tais memórias distantes com singela e intrigante nitidez. Meus barquinhos mal construídos eram tragados por leves correntezas ou naufragavam pela metade, virando de lado, perdendo seu porte original e sua dignidade, como se não tivessem controle sobre si mesmos. Eu não desistia, mesmo que isso me entristecesse. Construía outros, e não contava a ninguém. Só mais tarde compreendi que meus barcos naufragavam porque eu tinha vergonha de meus sonhos.

A onda dentro de um vidro. Inconsistência dos retratos

 

Mais do que acontece: Colecionador involuntário

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