Office in a Small City por Edward Hopper

Bandeira – Poema tirado de uma notícia de jornal

Drummond considerava Manuel Bandeira o poeta mais completo de nossa literatura: trabalhou com modelos do Classicismo, foi parnasiano, simbolista, modernista e até concretista. De sua obra variada e marcada por muitas nuanças, destaca-se esta peça genial, uma de suas obras-primas, um brinde à semântica e à semiótica, com a reconhecível marca do mestre.

João Gostoso era carregador de feira livre e morava no Morro da Babilônia num barracão sem número.
Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro
Bebeu
Cantou
Dançou
Depois se atirou na Lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado.

Breve, conciso, cômico, aparentemente ridículo, o poema começa com elementos positivos, que nos despertam alguma vontade de sorrir (ou rir) e, após uns poucos versos, transforma-se em uma tragédia sem remissão – em apenas sete versos!

Começa com algo simpático, engraçado, o nome “João Gostoso”. Gostoso por quê? Não sabemos. Mas as palavras nos conduzem, com seus significados. Gostoso porque talvez seja um rapaz bonito, simpático. No primeiro longo verso, há também a palavra “livre”, outra inspiração inconsciente, que também nos faz bem, nos torna leves. Em seguida, a palavra “Babilônia”, que tem a conotação de decadência, associada às narrativas bíblicas sobre a queda de Babilônia (babel, em português, significa confusão), e isso já revela sinais de que nem tudo são manhãs claras (as feiras, sempre pela manhã), sinais de que algo não está bem, e essa é a primeira pista para antecipar alguma desordem. Também é notável que seu endereço seja um “barracão sem número”: sem identidade, sem registro, sem importância.

O segundo verso, abruptamente, nos leva para a noite. O nome do bar é uma data, o que reforça a sugestão de um fato, uma notícia. Os versos seguintes apresentam-se na vertical. Mas por quê? Se estivessem dispostas na horizontal, essas palavras não ficariam melhor, em um único verso? Há uma gradação nas ações: bebeu… cantou… dançou… João Gostoso se embriaga, vai relaxando, descontraindo. Mas os versos sucedem-se na vertical, apontando para baixo, como uma seta indicativa – o personagem está em franca decadência. Então, com um último verso longo, desproporcional em relação aos imediatamente anteriores, João Gostoso morre. A narrativa (isso é uma narrativa: uma história com começo, meio e fim, usando sequência de tempo) começa em um morro (no alto), vem para o bar (linha do horizonte, nível térreo) e acaba no fundo de uma lagoa, um patamar inferior.

Como visto, a narrativa tem início em um morro, que, no caso específico do Rio de Janeiro, remete a bairros periféricos, favelas. Mas, ironicamente, o personagem do feirante morre na lagoa Rodrigo de Freitas, área mais nobre, um dos cartões-postais dessa capital. Isso também produz um contraste importante, que não deve ser menosprezado nesse modelo de análise. Também não fica claro se João Gostoso suicidou-se ou se foi vítima de uma morte acidental, já que estava embriagado. Não há sinais no texto que nos permitam decidir isso.

Manuel Bandeira, Poema tirado de uma notícia de jornal.

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