Office in a Small City por Edward Hopper

Teus olhos na escuridão. 12

Uma aventura perigosa na clandestinidade.
O mapa de um escândalo.
Um segredo potencialmente devastad
or.

À meia-noite e meia, como combinado, cheguei ao local descrito. Uma rua que eu não conhecia, um bairro de que mal me lembrava, pelo qual eu não tinha passado uma vez sequer. Toquei meu personal, dispensei o aero, que vibrou sutilmente e decolou de volta a alguma de suas bases. Eu estava em frente a uma cafeteria de cuja existência nunca tivera notícia. Esse tal bairro (que se chamava Redenção) orbitava a região central, que era vasta e superpovoada. Não ficava tão distante dos últimos pontos mais movimentados. Abria-se a partir de um entroncamento irregular, como um falso triângulo, porque a cidade toda se formara sem planejamento, quase um século antes, aos trancos e barrancos, como diziam os antigos. Um modesto centro comercial, de estabelecimentos pequenos, fachadas estreitas, calçadas limpas, distribuía-se de maneira quase uniforme por aquela rua, ao longo de duas quadras. Uma via estreita, que comportaria no máximo dois veículos terrestres, calçamento em forma de tijolos sem brilho, lembrando alguma ilustração bico de pena, páginas de livros antigos, narrativas desenvolvendo-se em porções urbanas intocadas pela Revolução Industrial, inspirando-me, de maneira repentina, algum resquício de sonho e de um passado real, que se havia alongado por muito tempo, fosse ali mesmo ou em qualquer distante travessa, em povoados esquecidos. Essas duas quadras terminavam logo à frente, delimitadas pelo muro alto, trincado e desbotado, do que parecia ser uma fábrica abandonada, elevando a um grau um tanto mais espesso o assalto silencioso da solidão.

Olhei a fachada de madeira escura, bem cuidada. Café Silene. Toquei a porta de vidro translúcido: desbloqueada, como previsto. Dois degraus, e eu estava dentro. Os sons que se podiam ouvir eram os de água bombeada surdamente por encanamentos próximos, o zumbido murmurante de alguns refrigeradores e os ruídos típicos da cidade, que nunca descansava completamente. Parei onde estava, soltei a porta, que se fechou automaticamente, lenta e silenciosa, um clique forte no final. Senti o lugar quieto, deserto, intacto. Tudo limpo, tudo em ordem. Aromas que sobreviviam, discretos, a um dia de trabalho, agitado, comercial, orientado pela energia, a pressa ou a calma de seus clientes: café, farinha de trigo, manteiga, creme de leite, talvez um fundo de maçãs e amêndoas, sinais de algo cítrico, vegetais aromatizantes. Eu segurava um envelope pardo, tamanho médio, com as duas mãos. Dentro dele, papéis e uma caneta: instruções de meu excêntrico anfitrião, que, pelo jeito, não havia chegado ainda. Voltou-me a impressão imediata de haver sido enganado. Mas por que a porta de entrada estaria aberta, à espera de meu toque? Uma lâmpada fraca permitia ver o balcão, à minha direita, e parte de uma grande estante de vidro, com sua característica diversidade de garrafas de vinho, cachaça, uísque e similares. Pensei em me sentar a uma das mesas e esperar um pouco. Mas tão logo comecei a afastar uma cadeira, ouvi: “Boa noite. Você fuma?”.

O susto foi pequeno, mas me arrepiou. Detive meu gesto, permaneci de pé. Tive vergonha de não ter percebido nada, eu que me julgava, com muita razão de ser, tão observador e atento. Essa pessoa estava bem ali, em silêncio, à minha frente, à esquerda da passagem, certamente acomodada junto à mesa que encerrava uma sequência de outras, limitada por uma parede estreita ao fundo e uma parede lateral, também breve em sua extensão, dando passagem, na parte externa, para se chegar a outro alongado salão, um degrau abaixo do primeiro, um pouco mais largo do que este, pois até ali não chegava o balcão lateral contínuo. Essa singularidade fazia desse ponto um aconchegante recinto isolado, um recorte característico no planejamento estrutural da cafeteria, onde a única lâmpada acesa, de luz suave e esmaecida, que servia a delinear a estante de vidro com as bebidas do outro lado, não conseguia, mesmo com o auxílio de tantas superfícies polidas, lançar um mínimo de claridade.

“Boa noite”, respondi, evitando gaguejar.

Nesse momento, umas estrias de fumaça fina, já em estado de dispersão, enquanto se deslocavam lentas pelo espaço próximo, migraram da escuridão para a luz, em minha direção.

“Foi bom você ter vindo. Tenho algo que pode lhe interessar.”

Uma voz feminina, tranquila e sóbria. As últimas palavras, exatamente as mesmas da mensagem escrita, agora lidas por mim de outra maneira, na voz de uma mulher.

Mirei o espaço escuro onde ela se encontrava. O Café Silene era retangular, estreito como um vagão, e só havia uma fileira de mesas à esquerda de quem entrava. Antes de chegar ao fundo, aos sanitários e à cozinha, portanto, instalava-se esse recorte arquitetônico, que eu supunha ser, eventualmente, um recanto apropriado para casais.

“Trouxe óculos de sol, como pedi?”

Não, eu nem tinha pensado nisso. Usava meus óculos de sempre, óbvios, cotidianos e sem nenhum propósito extra além de corrigir e facilitar-me a visão.

“Não. Achei que fosse uma brincadeira. Para que serviriam?”, perguntei com uma naturalidade que até a mim surpreendeu, em meio a essa penumbra planejada e esse diálogo duro, sem entonação, sem pessoalidade. Dei um passo tranquilo em sua direção, pensando em me instalar na mesa mais próxima daquela, invisível na escuridão.

“Não se aproxime assim. Ande devagar.”

“Desculpe. Queria estar mais perto…”

“Não passe daí. Use essa terceira mesa. Isso. Deixe essa outra, aqui da frente, vaga. Fique de lado, em relação a mim. Quando vier de óculos escuros, talvez possa olhar-me de frente.”

Obedeci, puxei uma cadeira, deixei sobre a mesa o envelope. Mas, antes de me sentar, ergui as mãos, fazendo abrir o casaco, esticar a camisa e deixando à vista a calça justa que delineava minhas pernas, minha forma corporal como um todo.

“Olhe, só para começar: não estou armado”, declarei tolamente, sob a influência velada de tantos filmes antigos, em que pessoas que se encontram portam armas, enfim, quase todos.

“Pare com essa bobagem. Sei que não usa armas. E pare de olhar para cá.”

Baixei os olhos. Continuei ouvindo. Seu domínio da língua, suas falas bem articuladas, sua tranquilidade me levavam a pensar em uma mulher instruída, bem-nascida, com sua voz bonita e agradável, de tom calculado, que a faria passar por uma narradora de documentários ou uma dubladora.

“Pedi que trouxesse óculos de sol, porque os olhos vão se acostumando à escuridão. Eu não posso ser vista.”

“Ah, sim”, eu parecendo tão tolo como antes. “Compreendo. Tem toda razão.”

Era estranho que ela se preocupasse com isso, já que estava protegida por uma escuridão homogênea e abrangente, que me parecia artificial, de tão densa.

“Como disse, tenho informações que podem lhe interessar. Trouxe papel e lápis, como pedi?

Tirei do envelope uns papéis em branco.

“Papel e caneta”, retifiquei.

Um pequeno desvio nas instruções, que não modificaria nada. Ela pareceu aceitar, por não responder a isso.

“Não anote nada em seu personal. Nem em seu GP. Nada pode sair de nosso controle. Nada. Isso não pode vazar. De jeito nenhum. Entendeu?”

“Entendi.”

“Não haverá mais troca de mensagens pelo personal. Por enquanto, não há problema, como você logo vai compreender. Depois, tudo tem que sumir.”

“Sim. Compreendo. Você… A senhora… Você… Como devo chamá-la?”

“Como quiser.”

“Você… disse que era algo muito importante.”

“E tenho certeza de que você vai concordar que sim.”

Esperei que ela continuasse, mas prevaleceu o silêncio.

“Pode me dizer, ao menos, onde trabalha, o que faz…?”

“Não. E não procure saber quem eu sou. Prometa que não fará isso. Ou eu desapareço.”

“Ok”, ergui a mão direita num instante, gesto quase cômico de um juramento perdido.

“Você não deve saber quem eu sou. Acredite: será melhor para você, se alguma coisa acontecer.”

“Acontecer?”

“Tudo pode acontecer, não é o que dizem? Temos que ser honestos um com o outro. Cumpra sua parte no trato.”

“Sim. Claro. Combinado.”

Eu, ainda intrigado com o que poderia ser aquele algo tão importante, decidi que deveria perguntar-lhe sobre isso diretamente. Iniciei uma frase, que ela interrompeu, como se adivinhasse meus pensamentos.

“Algo sobre a reforma do Estádio. Uma grande estrutura de corrupção. Contando com a participação ativa do governador, de alguns deputados estaduais, federais. Inúmeros agentes privados, representantes de empreiteiras… Tudo com o conhecimento e a anuência do primeiro-ministro. Que também enriqueceu um pouco mais, com o sucesso dessa quadrilha.”

“Do Estádio… Você quer dizer… Essa que terminou em 2044, para os Jogos?”

“O Estádio Romualdo Século. Você sabe muito bem.”

“Sim, sei. Estou só pensando aqui. A imprensa acompanhou tudo com certo destaque. Mas não se divulgou sequer uma única insinuação de que houvesse algo de irregular nos…”

“Não. Foi um sucesso. As facultativas sobre a restauração ajudaram muito a caracterizar uma imagem de lisura e de boa administração. Tudo lícito, técnico. Admirável.”

“Então… você teve acesso a alguma coisa que não…”

“Tenho acesso a informações mais importantes. Esfera federal. Isso do Estádio é localizado, envolvendo o governador do estado. É só o prolongamento desses muitos tentáculos bem planejados. De alguma forma, começa e acaba na mesa do primeiro-ministro. Meu ponto principal.”

Fiquei paralisado ao ouvir isso. Ou era um grande blefe ou eu estava diante de alguém que de fato conhecia a perigosa e fascinante intimidade do poder. Outra nuvenzinha de fumaça passou por mim, delicada e provocativa. Ela vinha perguntando, desde as primeiras mensagens, se eu fumava. Não devia ser um código. Apenas uma maneira de ela se comunicar comigo, demonstrando alguma cumplicidade, como se partilhássemos uma espécie de cachimbo da paz. Especulações avulsas. Eu não sabia se era isso. Por que não perguntar? Precisava lhe perguntar mais coisas. Essa situação, que não parecia possível e que se dava agora, em andamento, perto da imaterialidade de um sonho, desafiava-me como há muito tempo nenhuma outra situação poderia. Eu estava o tempo todo atento, alerta, sem sono, sem cansaço, ansiando por mais e mais de sua voz cativante, de suas falas duras.

“Posso perguntar como conseguiu ficar aqui? Digo, depois de o café fechar…”

“Tenho cópia da chave. Acesso à senha. Estou autorizada.”

“Então… mais alguém sabe sobre isso.”

“Sabe que vim para cá. Mas não sabe por quê. Nem o que pretendo fazer. Uma pessoa de extrema confiança.”

“Certo. Mas isso já não é da minha conta, eu sei.”

“Preciso contar com a sua extrema confiança também.”

“Sim. É claro. Claro que sim. Pode contar comigo. O que devo fazer para lhe demonstrar isso?”

“Nada.”

“Ahn… Quer que eu dê a minha palavra? Uma espécie de juramento…”

“Nada. Juramentos são inúteis. Uma pessoa pode dizer qualquer coisa. Apenas me acompanhe. Acate o que lhe digo. E, de novo, não tente querer saber quem eu sou. Nisso, pelo menos, você poderia garantir a sua palavra, só para eu ter o gosto de ouvir.”

“Minha palavra!”, disse eu com alguma ênfase.

“Pss… Temos que falar baixo. Mesmo aqui, nessa solidão.”

“Sim”, concordei constrangido.

“Quero que fique bem claro: nada de eletrônicos. Use esses papéis, guarde em envelopes, pastas, gavetas, onde quiser. Mas nada digitalizado, nada virtual, você entende? Porque é assim que todos caem. Todos. A rede é uma rede mesmo: uma armadilha. Web: teia de aranha.”

“Compreendo”, repeti, formal e sincero. “Certo, prefiro assim também. Não há dúvida de que é mais seguro. Quer ver se eu tenho algum dispositivo, se estou gravando nossa conversa?”

“Não.”

“Bom, você… ia me contar algo sobre a reforma do Estádio…”

“Anote aí. O nome do governador. No alto da folha. Três nomes diretamente ligados a ele, logo abaixo.”

Comecei a registrar cada palavra, com cuidado, tirando dúvidas de sobrenomes com consoantes dobradas, coisas assim.

“Estas são as atribuições de cada um… Estas, as empresas associadas… E estes…”

Fui anotando tudo o que ela me passava: os valores aproximados, os sócios reais, os laranjas, as empresas de fachada, a conexão direta entre uns, indireta entre outros, mas tudo simetricamente disposto, bem organizado, e eu compreendia sem dificuldade as relações entre todos, indivíduos e seus escritórios, seus parentes, seus amigos, seus aliados e seus departamentos, conforme ela me explicava, passo a passo e de maneira didática, todo o engenhoso processo fraudulento.

Mais um pouco de fumaça flutuou por ali: ela tinha acendido outro cigarro, em algum momento de minha distração, tanto que me pareceu ouvir um atrito breve sem que lhe correspondesse alguma luz de isqueiro ou fósforo. Nesse ponto, descansei a caneta. Ainda olhando para a frente, de perfil para ela, perguntei:

“O que você espera que eu faça? Que eu leve isso ao Ministério Público?”

“Não. Que publique isso. Mas não posso forçá-lo. Faça o que quiser. Eles têm aliados em posições importantes no Ministério Público. Não iria dar em nada.”

Que eu publique, pensei. Apenas isso? De forma técnica, expondo nomes e números? Eu era um articulista, redator de tópicos, tinha que pensar em algo que pudesse incluir tais informações, mas com um texto à altura do jornalismo midcom, no nível de meu pretenso profissionalismo.

“Posso escrever um tópico sobre isso. É essa a ideia?”

Ela suspirou enquanto exalava fumaça.

“Você deveria estar atônito só de estar diante desse privilégio. Todo o esquema criminoso da restauração do Estádio em suas mãos. Algo que nem mesmo os políticos de oposição mais dedicados conseguiram obter. Acha que estou mentindo? Que isso não é confiável?”

“Não, sei que não. Que não está mentindo, digo. Eu, de verdade, estou um pouco atônito sim. Surpreso e chocado com essa riqueza de detalhes. Agradeço muito pela confiança. Sério mesmo.”

“Vou lhe passar o que tenho, e você faça como bem entender. Se não estiver interessado, basta que me diga. E eu desapareço.”

“Não, não. Estou interessado sim. Mas gostaria de saber um pouco mais sobre você. E por que está passando a mim esses dados. Como me encontrou? Como sabe que escrevo tópicos sobre notícias reais e não facultativas?”

“Tive alguma referência sobre isso. Alguém que conhece você. Não importa, isso não importa. Não queira saber. Sei que não assina os seus artigos, mas é fácil perceber que eles têm todos um mesmo estilo, uma mesma dinâmica, um mesmo ritmo. Uma mesma clareza. Uma mesma… sobriedade. E que você não é redator de facs. Não é?”

“Não sou. Não gosto. Não pretendo ser.”

Um silêncio agora. Sumida na escuridão. Sons mínimos de tocar com a mão algum cinzeiro. Eu ficava imaginando se ela não estaria rindo de mim, de minha ingenuidade, minha falta de jeito. Ou me levando a sério, tanto como eu a considerava a partir de então. Impossível forjar um rosto, uma expressão facial, em meio àquela absoluta opacidade. Pelo jeito, ela havia pensado em tudo. Por quanto tempo teria arquitetado esse encontro, na solidão da primeira meia hora do dia?

“Olhe, desculpe a insistência, mas… Preciso lhe perguntar mais coisas. Se eu não sei quem você é, nem o que faz, ponha-se no meu lugar: como posso saber se está me dizendo a verdade ou não?”

Achei que não obteria resposta. Mais um de seus silêncios graves. Mas ela disparou:

“Ou você aceita o jogo ou volta atrás, desiste. No próximo encontro (aqui, no mesmo dia da semana e horário), vou lhe trazer cópias de rascunhos, fastposts impressos e planilhas. Não hoje, que não trouxe nada. Mesmo assim, você não terá garantia alguma de que sejam informações verdadeiras.”

Era uma resposta em tom seguro, sem meios-termos, e ela falava como uma professora pragmática, expondo um resumo de sua próxima aula.

“Gostaria que trouxesse, sim. Eu, como jornalista, não posso me fiar em testemunhos que talvez…”

“Você é livre para decidir. Acreditar ou não. Publicar ou jogar tudo fora. Se não quiser continuar, não haverá problema algum. Eu desapareço.”

“Não, não. Podemos continuar. Mas gostaria apenas que considerasse essa alternativa, a de me passar algo mais sobre você, já que conta com a minha confiança. Você está aí, protegida, no escuro. Mas sou eu quem está tateando no escuro a partir de agora.”

Essas breves pausas me incomodavam. Nem sempre ela respondia ou dizia algo em seguida à minha fala. Cautelosa, astuta. Parecia considerar, sim, tudo o que eu lhe propunha. Mas não dava o troco de imediato. Ou simplesmente me ignorava e iniciava outra fala, com outro foco de atenção.

“Isso é só um aperitivo. Só o começo. Lembra da reinauguração do Estádio?”

“Sim, claro.”

“Quando eu terminar de lhe passar toda essa parte, até onde consigo acessar, vou lhe revelar algo muito maior. Mais contundente. E mais perigoso. Até lá, cabe a você assumir os riscos. Eu não vou assumir nada.”

“Como assim? Assumir riscos?”

“Quando você estiver de posse dessas informações todas, seu compromisso com o sigilo terá de ser extremo. Sua segurança pode ser ameaçada. Com a publicação de algo desse porte, você estará exposto. Inevitavelmente.”

“Mas como? Eu nem assino os tópicos.”

Esse novo silêncio foi, sem dúvida, uma manifestação de sarcasmo ou de piedade: o fato de eu não assinar meus tópicos, assim como meus colegas também não assinavam os deles, não significava nada no âmbito dos órgãos de investigação da alta esfera do poder, que praticamente tinham acesso a tudo. Envergonhei-me em seguida, como um pré-jovem cometendo uma de suas gafes, que haveria de marcar sua memória futura ridiculamente.

“Estarei aqui, em uma semana. No mesmo horário. Não precisamos nos comunicar sobre isso. Se algo der errado, se houver alguma mudança de planos, encontrarei um jeito de lhe avisar.”

Eu estava mais tranquilo, mas ainda muito curioso e excitado com a situação toda.

“Você me perguntou se eu fumava. Por quê? Algum tipo de senha?”

“Queria que me acompanhasse nesse jogo, me trazendo cigarros. Um capricho. Não tente entender. As melhores coisas que fazemos na vida podem não ter nenhum propósito. A não ser agradar a nós mesmos. Por nada.”

“Sem dúvida”, eu hesitante e pouco convicto ao concordar com ela. Em seguida, tão tolamente como antes: “Compreendo.”.

“Me jogue um cigarro, você tem aí?”

“Tenho.”

“Qual?”

“O Green Forest.”

Peguei o maço, tateando o bolso interno do casaco, mas ela voltou atrás.

“Não precisa. Não gosto desse. Muito fraco.”

“Tudo bem.”

“Quero que me traga um cigarro da próxima vez.”

“Um… cigarro?”, estranhei.

“Um maço de cigarros.”

“Ahn… Sim, claro.”

Claro que ela carregava cigarros ali, com ela, na bolsa. Mas isso sugeria que estava tentando estabelecer comigo um ritual específico de reciprocidade, de confiança. Coisas de cavalheiros. Cavalheiro e dama, no caso. Quase constrangido, perguntei a ela de que marca gostava, quais eram os cigarros de sua preferência.

“Gosto do Malpro. E do Concert.”

Anotei as marcas, para não esquecer.

“Ahn. Sei. Vou trazer da próxima vez, quer?”

“Obrigada. Quero sim. Versão tradicional. Nada de cigarros light.”

“Ok. Prometo.”

“Em troca, vou lhe dizer algo mais sobre mim, para que venha tranquilo. Pouco. Pouca coisa. O que posso.”

Nesse momento, entendi que nossa sessão de conversas havia acabado. Parecia que eu voltava a sentir com mais acuidade os aromas perdidos na noite da cafeteria. E os ruídos permanentes dos refrigeradores. Mais distantes, os sons urbanos de sempre, familiares aos nossos ouvidos civilizados.

“Bem, então… Eu vou indo e… Na próxima segunda-feira, volto.”

Ela não respondeu. Já tinha falado sobre o próximo encontro, dia e hora, e eu começava a entender que ela não gostava de se repetir. Seu silêncio, nessas horas, era carregado de significados. E de omissões, que cabem ao interlocutor identificar como evidentes.

“Quer que eu a acompanhe? Posso chamar um aero…”

Ficava imediatamente claro que essa proposta quase automática, movida pela boa educação, se somava amargamente às minhas gafes anteriores. Como poderia acompanhá-la? E toda a escuridão planejada do anonimato seria jogada pela janela, tornada luz, sorrisos polidos, amenidades, rituais de costumes? Que idiota lamentável.

“Meia-noite e meia. Espero aqui.”

“Certo”, disse eu com voz firme, simulando segurança enquanto me levantava, enfiava os papéis no envelope pardo. “Estarei aqui.”

Saí de lá devagar, abrindo a porta de vidro com cuidado, soltando-a também com cuidado. A rua deserta era a mesma de quando eu havia chegado. Um cão, na quadra seguinte, mais ou menos disfarçado pela penumbra, mexia em uma lixeira perto da esquina. Conferi no personal: tinha ficado quase duas horas lá dentro. Vontade de voltar ao Prime e tomar outra cerveja, uma das minhas Tincobell. Meu nível de excitação não me permitiria dormir facilmente, como eu já previa. Mas tinha de voltar para casa, acordar cedo no dia seguinte. Tinha de voltar à rotina, ao trabalho.

Chamei um aero. Toquei meu personal e ajustei a velocidade do veículo ao mínimo permitido. Precisava de tempo para assimilar o que eu acabara de assistir, como se visse a mim mesmo interagindo com aquela desconhecida, e reavaliar cada frágil ponto de intersecção, desde as mensagens virtuais até a realização desse encontro singular, como num jogo de linhas pontilhadas, contando com minha ousadia confusa e com a precisão calculada de que essa mulher se serviu para enfim conduzir-me até ela, como uma rainha ordena algo em voz baixa a um súdito, quase soprado em um sonho, e consegue dele o mesmo resultado de algo exigido sob o peso de uma severa imposição. Enquanto voava confortavelmente para casa, sobre trechos mais movimentados da cidade, fechei os olhos, tentando guardar a impressão nervosa e agradável de que acabara de viver uma espécie de sonho. Tentei relaxar, embalado pelo agradável zumbido ronronante que me acompanhava, mas não podia conter minha memória recente, que revia e avaliava tudo aquilo, sem parar. Embora revestidas de metriceno sólido, essas pequenas naves não são inteiramente à prova de som, e quem está em seu interior, perfeitamente isolado, ainda ouve o ruído suave de hélices em alta velocidade, misto de zumbido estereofônico e vibração de um felino adormecido. Fiquei olhando calmamente pelos vidros laterais, olhos preguiçosos contemplando a cidade que ia passando lá embaixo, ruas e praças que eu agora conhecia melhor, mais próximas de meu bairro. Logo essa breve viagem terminaria. Enquanto outra, estranhamente nova, apenas começava.

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