Office in a Small City por Edward Hopper

Teus olhos na escuridão. 15

Uma aventura perigosa na clandestinidade.
O mapa de um escândalo.
Um segredo potencialmente devastad
or.

No dia seguinte, em meio à atividade normal na redação da Facto, cruzei com o Tato e a Iara na copa, enquanto ia buscar um café – meu sono me afetava seriamente agora, ainda na parte da manhã.

“Deixaram um café pra mim?”, perguntei, repetindo clichês do dia a dia.

Eles conversavam em voz baixa e bem próximos quando entrei, mas imediatamente assimilaram minha chegada, de maneira simpática, mais da parte dele, e eu não senti que estivesse interrompendo qualquer conversa particular e específica. Eram colegas como os outros, em momentos como outros.

“Fica na farra, depois vem com esse sono todo, não é? Estou vendo suas olheiras daqui. Você está um caco.”

A Iara, estoica como sempre foi quando em minha presença, iniciou um mínimo sorriso de boca fechada só para acatar o gracejo oportunista do Tato. E saiu em seguida, sempre elegante, aromática e cautelosa, demonstrando certa distância, indiferença e desconfiança em relação a mim, o que era seu normal. Isso ela não disfarçava, e eu nem precisava me esforçar muito para perceber. A Iara era reservada, sim, que eu bem sabia, só não entendia ao certo por que mantinha essa atitude de mínimo contato comigo. Como não me importa muito ser bem-visto por todos, desisti de tentar entendê-la, e nunca perguntei nada a ela sobre esse ponto. Não valia a pena.

Acionei a cafeteira, selecionando a opção Sem açúcar.

“Eu estava em home office ontem. Tudo normal. Não deveria estar ostentando essas tais olheiras que só você faz questão de ridicularizar. Olha a vergonha, na frente da Iara…”

O Tato sorriu seu sorriso bonito, reto, claro, alargando seu queixo, delineando seu rosto rígido e bem proporcionado, parte de seu porte permanente de loiro alfa.

“Essa garota é sensacional, não é?”, disse ele, corporativo e quase lambendo os beiços. “Você gosta de morenas?”

Morenas? Sim, mas agora ele se referia a negras, como as nossas colegas, a Iara e a Diana, de convivência próxima. As duas, em estilos diferentes, eram de fato muito bonitas.

“Claro que sim”, confessei. “Mas não posso enaltecê-las muito, porque uns chatos de plantão confundem isso com algum tipo de compensação de racismo enrustido, sabe como é.”

Ele sorriu de novo. “Essas bobagens nunca deixam a gente em paz, não é? Falando nisso, estou justamente redigindo uma facultativa sobre a cantora Márcia Marcina.”

“Ah, é? Não vai dizer que ela desafina ou canta mal, certo?”

“Claro que não!”, respondeu enfático. “Impossível. Ela é um prodígio, uma deusa. Sua voz é inigualável.”

“Lembrou dela só porque é negra? O que tem ela, que eu não estou sabendo?”

“Não viu que ontem ela postou em seu perfil uma declaração forte contra o governo do De Castro? Algo sobre isso mesmo: racismo enrustido. Você sabe: essa gente se aproveita de qualquer pretexto para atacar o governo.”

“Sério? E quando vai publicar?”

“Hoje mesmo. Essas coisas têm que sair rápido.”

Tomei mais um pouco do café. O Tato parecia estar sem pressa de voltar ao seu ponto de trabalho.

“Sério, estou ardendo de curiosidade. Só um cara com o seu talento para dar conta de produzir uma fac sobre ela. Vai me dar uma pista ou não?”

“Hum… Vamos ver. Só uma pontinha desfiada do novelo, ok? O irmão dela é dependente de drogas. Já tentou suicídio duas vezes. Foi preso pela Polícia Federal por envolvimento com traficantes internacionais (já foi liberado), e ficou com raiva do governo em exercício por causa disso tudo. A Márcia tomou as dores do irmãozinho, por isso está agindo assim: meio ressentida e meio vingativa, querendo atingir injustamente o primeiro-ministro.”

Acenei positivamente com a cabeça, admirado, fazendo girar o último gole do café na xícara, um hábito completamente sem sentido.

“Ela só tem uma irmã.”

“Marco!”, ele riu. “Que péssimo aluno você foi! Claro que ela só tem uma irmã. Estou escrevendo uma facultativa! Justamente isso.”

“Eu estava brincando. Queria ver sua reação.” E era isso mesmo que eu pretendia: testar sua reação.

“É mesmo? Não tenho tanta certeza. E então? Que tal a minha… reação?”

“Muito boa. Irretocável. De um profissional.”

Consegui que ele ficasse em dúvida sobre uma possível ironia nessa minha última fala, que podia mesmo não ter nada de irônico. O Tato era talentoso e um exímio conhecedor da língua, o que se refletia em seus ótimos tópicos. Muito convincente, tecendo detalhes, ao contrário de alguns textos toscos que outros periódicos exibiam com espalhafato.

“É por causa de gente como você”, brinquei, “que muitos pré-jovens ainda duvidam que o homem chegou a Marte em 2039.”

“Ahahah… Não pode ser. Foi uma missão conjunta. Quatro países envolvidos. As sondas transmitiram tudo em tempo real. Não faz nem uma década, e já estão armando esse estardalhaço. Mas é desses ingênuos imaginativos que a nossa profissão depende para continuar existindo e prosperando.”

“Ou melhor, ainda estão armando. Ficam perguntando por que o programa espacial Marstarget não continuou, por que não começaram a construção de uma base…”

“Ora, mas todos nós sabemos que o projeto foi interrompido por causa da guerra civil na União das Repúblicas Federativas. As condições políticas, e também econômicas, tornaram inviável o andamento do projeto.”

Você e eu sabemos. Mas não importa, não é esse o caso. Os conspirantes aproveitam tudo. E vocês, midcoms das facs, são os responsáveis por essa agonia estressante entre os pré-jovens e até entre alguns universitários.”

“Pois é, meu amigo. E daí? É assim que ganhamos dinheiro. Os pré-jovens que se virem. Que fiquem espertos. Ou vão continuar comprando os discursos do bispo Ezequiel Madeira sobre a Terra ser plana e enriquecê-lo cada vez mais.”

“Mais um café, quer também?”

“Põe aí pra mim. Estou meio adiantado com meu serviço, posso ficar um pouco mais aqui.”

Mentira. Ele queria mesmo era a minha companhia. Sabia que nem todos o acompanhavam. O Rômulo, por exemplo, considera qualquer conversa desse tipo uma enorme perda de tempo.

“Tato, pense comigo.”, entreguei-lhe a xícara. “Todas estas pautas: racismo, feminismo, homofobia, xenofobia etc. etc. tornaram-se obsoletas há muito tempo. As conquistas das chamadas minorias fizeram diluir antigas discussões desnecessárias e foram assimiladas de maneira consistente por todas as sociedades do mundo, com raras exceções.”

“O Califado do Poente e, na América Latina, a Republica Popular de Nosotros.”

“Sim. Sabemos disso…”

“Pequenos países mal instituídos, que ainda se expõem ao ridículo por não acompanharem o mundo novo, o Mundo Livre, e só conseguem sustentar seus regimes totalitários medíocres à moda antiga: oprimindo, cerceando suas populações, felizmente em número reduzido.”

“Devem cair logo. São regimes forçados e insustentáveis.”

“Sim. Tenho certeza disso. Eles não têm para onde ir. As redes sociais já se infiltraram por lá, entre os jovens e os pré-jovens. De vez em quando, recebemos a notícia de alguma prisão, da detenção de um desses ativistas, que lideram movimentos separatistas, também óbvios. Coisas que já não deveriam existir mais no Mundo Livre. Coisas das tristes eras geológicas do século 20.”

“Concordo, certo. Mas o que eu queria lhe perguntar, à parte a questão sobre esses núcleos anacrônicos, o que eu queria saber era a sua opinião sobre as conquistas todas do Mundo Livre. Pensando no passado, nas lutas por direitos e igualdade… O que falta?”

Ele tomou um gole, ergueu a cabeça, olhou-me de frente, quase feliz com a pergunta.

“Não falta nada, Marco. Chegamos ao fim dessas lutas. Chegamos ao limite de nossos direitos como cidadãos. Não há mais nada, nesse sentido, a se conquistar. Não há muito mais pelo que lutar.”

“Sim, mas… as péssimas condições sociais e econômicas de boa parte da população, em contraste com classes sociais exageradamente abastadas, extravagantes, praticamente uma elite de nível internacional, é algo que não foi resolvido ainda. Aliás, temos visto situações por vezes drásticas, dramáticas, lastimáveis…”

“Espere aí, espere aí. Mas aí você já está falando de outra coisa, não de direitos. Essas diferenças sociais devem ser resolvidas aos poucos, em breve, eu diria, dentro dos padrões de liberdade que conquistamos e dependendo da vontade pessoal dos indivíduos.”

Diferenças sociais? Não era bem isso, não apenas isso, de forma tão genérica, o que eu estava pontuando. Ele não teria entendido? Ou teria se desviado da questão, com habilidade e presença de espírito, quase um ator bem treinado e convincente?

“Noticias falsas sempre existiram”, ele arrematou. “Você mesmo me contou sobre sua mãe acreditar em tudo que a Igreja pregava.”

Sim, era isso. Histórico familiar. Ele tocava o ponto. Mas não caí na cilada. Deixei que discorresse, evitando interrompê-lo.

“A propaganda é uma constante. Você pode ter escapado de um predador, mas é bem melhor inventar que lutou com ele e o venceu. A saga do herói, as compensações, você sabe. Ninguém canta a covardia. Só se celebra o triunfo. Por mérito ou por sorte. O importante é vencer. O que não significa sucesso vai se perdendo para sempre. As mitologias, as histórias paralelas, todas essas invencionices seguem com mil episódios e reviravoltas. Uma grande novela estendida, alicerçada na mentira, enquanto subsiste um povo e sua identidade cultural. Até hoje existem igrejas. Não é assombroso?”

Antes que eu dissesse uma palavra mais, a Cleo entrou na copa, com seu andar quase oscilante, sua obesidade discreta, seus passinhos curtos mas carregados de energia.

“Marco… (Tato, desculpe interromper). Preciso que você veja uma coisa aqui pra mim.”

O Tato aproveitou para deslizar de vez, para longe.

“Até mais, colegas.”

Restava o equivalente a um gole de café, que eu girava no fundo da xícara, inercialmente  – já estava meio frio, indigesto, nojento. Ela se aproximou, ficou bem ao meu lado, encostando partes  discretas de seu corpo em meu braço, em minha perna.

“Essa ilustração aqui. Não gostei muito do resultado. Isso de imitar gravuras… Não ficou boa, na minha opinião. Faltou alguma coisa. O que acha?”

“Não mesmo. Quem está vendo isso aí, antes de aprovar?”

“Já foi aprovada. Só estou comentando.”

Descolei-me dela com um gesto mínimo, apenas trocando a perna de apoio.

“Ah, é? Mas quando for assim, nem se preocupe mais. Se já foi aprovada…”

“Eu sei, você me disse isso outro dia”, lembrou, erguendo agora o rosto, deixando a ilustração, buscando algum contato visual, com seus olhos bem abertos e sempre úmidos. “Não deixe o Tato saber, mas eu não vim aqui só por isso. Vim ver se você estava bem. Ficou fora ontem, e nós nem nos falamos hoje. Parece meio cansado. Aconteceu alguma coisa?”

“Ah, então era isso?”, fingi indignação. “Nada com essa imagem aí?”

Ela moveu a cabeça em acordo, enquanto emitia seu um-hum, boca dilatada num sorriso fechado, olhos brilhando de criancice e malícia.

“Tão nova na casa e já trapaceando…”, eu decepcionado e sem esperanças.

Ganhei um tapa no ombro e um sorriso de verdade.

“Bobo, é por uma boa causa: saber de você, que já é meu amigo de coração.”

“Deixe o seu namorado saber disso…”

“Aconteceu alguma coisa ontem? Está tudo bem? Só estranhei você não ter vindo.”

Quase senti um arrepio ao recordar, num instante, tudo o que havia me acontecido desde dois dias atrás, desde quando aceitei me encontrar com o desconhecido, agora desconhecida, informante.

“Não, nada. O home office é previsto. Podemos optar por ele a qualquer momento, sabe disso, não sabe?”

“Sei, claro. Então, certo. Eu só… Deixa pra lá”, perdendo o tom de alegria, voltando-se à ilustração e se afastando de mim um passo, pelo menos.

Talvez eu não tenha sido grosseiro, mas certamente fora insensível com a Cleo, uma colega bem-educada, que acabava de me promover a um amigo do coração. E parecia preocupada comigo. Eu me alterei um pouco, podia perceber isso, ao rever imagens do dia anterior: a penumbra do Café Silene, à noite, e a conversa com o atendente do balcão, à luz abrangente do dia. Somando tudo, parecia o desenrolar de um transe. Um sonho vivo que não aceitava ser incomodado por qualquer tentativa de trazê-lo à superfície das rotinas justificadas. Um sonho acordado, quase distorcido entre horas de sono e de vigília que já o afastavam aos poucos da memória nítida e da razão pura. Recente como uma ilustração digitalizada. Antigo como uma gravura em sépia.

“Ei, Cleo”, peguei seu braço, gesto involuntário, tentando evitar que se afastasse. Mas ela não estava se afastando, estava parada ali, e eu a soltei em seguida, tendo-a de volta à conversa que eu, com minha indelicadeza quase cega, estava arruinando. “Tudo de que você precisar sobre essas ilustrações ou qualquer outra coisa, pode vir falar comigo, certo? Ajudo no que puder. Lembra do que eu lhe disse? Quando as imagens já estão aprovadas, não há mais o que fazer.”

“Entendi.”

“Aliás, precisamos achar um tempinho para falar de livros, lembra? Livros de verdade.”

Ela se animou um pouco, bem pouco, provavelmente considerando esses meus remendos rápidos como um pedido de desculpas.

“Precisamos sim.”

“Temos pouca gente com quem conversar sobre isso, não é? A maioria, aqui mesmo, me acha meio esquisito e obsoleto só por eu gostar de guardar livros impressos. Quanto espaço desperdiçado, dizem.”

Ela sorriu. “Você, esquisito? Eles é que são uns bobos, por não gostarem de uma coisa tão boa. Não entendem esse gosto, esse prazer dos livros, o cheiro do papel, a textura das páginas… A gente se apaixona. Não é?”

Agora era o Edison Chafik quem chegava à copa. Melhor voltarmos ao trabalho. (Se bem que nosso trabalho não dependia de horários rígidos, não incorporava o equivalente a intervalos para o café, era uma atividade que ocupava nossas mentes o tempo todo, de maneira oficial, direta, ou extraoficial, absorvendo informações dia e noite.) Saímos da copa, voltamos aos nossos pontos fingindo alguma pressa, depois caminhando mais lentamente. A Cleo propôs que eu fosse conhecer sua “modesta” biblioteca, e combinamos isso para a noite de quinta. Nessa semana, como bem me lembrava, eu não tinha tratado nada com a Rose.

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