Office in a Small City por Edward Hopper

Teus olhos na escuridão. 16

Uma aventura perigosa na clandestinidade.
O mapa de um escândalo.
Um segredo potencialmente devastad
or.

No dia seguinte, perto do final da tarde, a TV Realidade NC iria transmitir, ao vivo, a  tão aguardada entrevista com os três jornalistas midcoms premiados na noite anterior, no pavilhão da sede do governo do estado, o Palácio das Trepadeiras, em noite de gala. Apesar de ser uma honraria de abrangência nacional, o anúncio dos vencedores e a festa de premiação acontecia anualmente na sede do governo estadual, instituição criadora e promotora do concurso, com o patrocínio de grandes empresas locais.

A Cleo veio sentar-se ao meu lado durante a entrevista, que o Gabriel pôs a transmitir pelo telão da parede lateral. Todos nós, interrompendo nosso trabalho, sob o aval e o incentivo do Edison Chafik, como provavelmente todos os jornalistas do país, acompanhávamos a tão falada entrevista, com inserções de imagens da noite anterior, momentos de glória e aplausos, cumprimentos efusivos e sorrisos largos, apertos de mãos e abraços nas mulheres, imagens sem som de alguns discursos de agradecimento, closes na estatueta dourada que representava uma deusa esbelta, asas de borboleta, não de penas de aves, emergindo de uma base de rochas hostis, recortadas em pontas e quebras abruptas, que seria, no meu entender, uma alusão à velha e dura realidade.

“Lembrei de você”, cochichou a Cleo, “quando vi essa gente aí e essa premiação. Do que me contou sobre não gostar de facultativas.”

“Nem me fale. Estou cada vez mais rabugento quanto a isso. Rejeitando tudo que aprendi na universidade. Só queria te pedir que não comentasse com mais ninguém, pode ser?”

“Nem precisa dizer, meu amigo, fique tranquilo. Hoje, quem fala mal das facs (e dos redatores de facs) passa por autoritário, saudosista, obsoleto e até mesmo mau profissional.”

A Diana era outra que, ao me conhecer melhor, logo confessou sua antipatia permanente por facultativas. Um caso raro em nossa profissão. Eu a acolhi com o melhor de minhas palavras e de minha cumplicidade quando ela me revelou isso pela primeira vez. Mostrei-me acessível, compreensivo, mesmo disfarçando um certo grau de estranhamento. É que, por aqueles dias, eu ainda não sentia qualquer aversão por facultativas, algo tão comum, tão rotineiro, tão profissional, que eu, jovem universitário dedicado, havia estudado com seriedade e atenção. Agora, percebia claramente que isso estava mudando. E a minha influência casual sobre a Cleo quanto a esse ponto só reforçava essa repulsa crescente pelas facs. A Diana se aproximou, caneta, tablet e personal nas mãos.

“Posso ficar aqui, com vocês?”

Abrimos espaço, ela puxou uma cadeira de rodinhas. Acomodou-se à minha esquerda, meio girando na cadeira, por vezes roçando meu braço com o seu, depois apoiando intencionalmente a cabeça em meu ombro, demonstrando cumplicidade e carência.

“Como vou prestar atenção na entrevista, com uma garota dessas se jogando em cima de mim?”

Ela nem se mexeu. “Não precisa prestar atenção nesses cretinos.”

A Cleo pareceu admirada com a declaração da Diana, referindo-se aos respeitadíssimos superpremiados como cretinos – ela já usara termos piores, em outras situações. Fiz um sinal à Cleo: é isso mesmo, estamos entre amigos.

“Sei que é o trabalho de muita gente”, falou a Diana em voz baixa. “Sei que a imprensa vive disso, que vivemos no Mundo Livre, toda essa coisa e esse monte de coisas, mas… Olha, eu não aguento essa gente distorcendo tudo, confundindo os mais simples…”

“Agora fica quieta, menina. Os deuses vão falar.”

Enquanto se desdobrava a vinheta estridente do programa, com as cores da Realidade NC, a Cleo lembrou algo a que pouca gente havia dado atenção.

“Vocês viram aquela outra entrevista deles, quando foi… ? Acho que mais de um mês atrás.”

“Não. Onde?”, estranhou a Diana.

“Na Mundo L. Horário nobre. Quando ninguém sabia ainda que seriam os vencedores do Fac Plus Ultra. Ninguém sabia. E estavam lá, os três. Como se já fosse uma prévia. Não é suspeito isso?”

“Fiquei sabendo dessa entrevista”, respondi. “Mas não vi, não me interessei.”

Alfeu Loureiro, Beto Vilverde e Gema Vila Real estavam entre os principais articulistas criadores de facultativas do país: respeitados, requisitados e admirados, cada um por seu estilo característico, sua capacidade criativa. (Confesso que até eu acreditei em algumas delas, com sua dosagem perfeita, quando não sabia que eram de autoria deles.) Famosos e citados em trabalhos acadêmicos, suas palestras valiam uma fortuna em signos virtuais. Todos eles eram bastante conhecidos no universo midiático. Alfeu tinha o rosto comprido e anguloso, como o de um cavalo. Óculos de aro escuro, bigode fora de moda, ternos impecáveis. Beto, um pouco mais jovem, na faixa dos quarenta anos, era um tipo que parecia sorrir o tempo todo, se não com um sorriso propriamente, mas com os lábios permanentemente dilatados na horizontal. Mais atento à moda masculina vigente, vestia-se com grande esmero, mesmo quando aparentava ostentar trajes ditos descontraídos. Gema caracterizava-se por seus cabelos curtos, arrepiados para cima, como os pelos de um carpete duro, tingidos de um bege desbotado, lembrando areia ou palha. Todos sabiam que andava próxima dos sessenta, mas, com as novas técnicas de col-5 clonágenos, parecia atravessar ainda a faixa dos quarenta. (Como não se dispõe de fonte segura para as biografias, a idade real de certas personalidades, vivas ou mortas, pode variar, ano de nascimento oscilando entre duas ou três versões incompatíveis.) Tinha uns olhos sagazes, inquietos, como se vivesse atenta a qualquer provocação e pronta a dar o troco imediatamente. Amostras vivas de autoconfiança e sucesso.

O programa seguia, coletando bons índices de audiência, como se observava no minúsculo mostrador retangular à direita, imediatamente acima da faixa vermelha contínua, na base da tela, por onde desfilavam ininterruptamente as notícias do momento, verdadeiras ou não. A certa altura, enunciaram a pergunta de um telespectador (que obviamente os editores aceitaram para criar um clima de tensão inofensiva ao programa) que questionava se facultativas mereciam prêmios. Os três ficaram muito agitados, mas responderam rápido, um por vez, defendendo que sim, e humildemente lembrando que, no futuro, seriam outros, não eles, sentados ali, requisitados pelas câmeras, carregando o legado desse filão das mídias independentes do Mundo Livre. Outro quis saber sobre os limites das facultativas. Ao contrário do que imaginei inicialmente, quando comecei a ouvir essa pergunta específica, não se tratava de eventuais limites éticos, mas da possibilidade de as facs se aperfeiçoarem ao longo do tempo, tornando-se ainda melhores. Claro que sim, responderam, de maneiras diferentes, os campeões. Uma jovem (ela disse sua idade no comunicador remoto) perguntou se eles sempre haviam se dedicado às facultativas, desde que saíram da universidade, ou se, alguma vez, trabalharam com notícias reais.

“Era isso que eu gostaria de saber”, disse a Diana com cinismo. “Se alguma vez esses agourentos redigiram alguma notícia de verdade na vida.”

Os dois homens disseram que já haviam passado pela redação de notícias reais, sim, por algum tempo, em suas carreiras, mas que foram se adaptando e se convertendo aos poucos, interessados, cada vez mais, nos desafios que envolviam a produção de facultativas, atribuindo sua escolha a uma espécie de paixão profissional, sem mencionar o fato de que redatores de facs sempre são mais bem pagos do que midcoms convencionais. Dentre eles, Beto foi o único que estudou Facultativas, quando essa disciplina já integrava a grade curricular dos cursos universitários. Gema disse que nunca havia estagiado pelas notícias reais; que, desde os tempos de estudante, atraída pela evolução crescente das facs nos anos mais agitados, em meio à pandemia da covid-19, já estava decidida a seguir carreira nessa área, que antevia tão promissora. Declarou, pioneira, que escrevia para blogs extraoficiais, num tempo anterior à consolidação total da democracia e à realidade do Mundo Livre, período em que as facs eram malvistas pela imprensa, denunciadas por segmentos do poder público, e seus redatores, perseguidos pela Justiça. Nisso, o entrevistador, subitamente entusiasmado, aplaudiu de leve, duas vezes, baixando as mãos em seguida, pois isso certamente não fazia parte da expectativa de sua conduta.

“Nunca fui com a cara dessa Gema”, falou a Cleo em voz baixa. “Tão artificial e falsificada quanto tudo que escreve. Fico pensando: que valor pode ter uma pessoa assim?”

A Diana, tentando justificar: “Valor em dinheiro, colega. Signos virtuais.”.

Quando ouvi a referência à covid-19, agitei-me em silêncio, com a impressão involuntária e talvez exagerada de que essa Gema, aliada a outros de mesmo perfil profissional, teria sido a responsável pela morte de minha mãe. Uma imagem incerta de fotos de nossa pequena família, esvanecendo-se e ressurgindo com certa nitidez, aproximando e afastando o rosto bonito dela, passou-me pelos olhos como uma nuvem encobrindo a claridade leviana e arranjada do momento presente. Senti como se enfraquecesse, e tentei não demonstrar.

Quase ao final da entrevista, o Arthur veio até mim. “Deixe essas meninas aí e me fale se rola uma sinuca hoje à noite, no Prime, vamos, me fale.”

Elas reagiram, com algum senso de humor; mesmo assim, muito sérias.

“Não sei, Arthurzinho. Vamos ver. Quem sabe amanhã. Ando meio cansado hoje.”

Com ele, eu sabia que o assunto não tinha nada a ver com trabalho e com facultativas e opiniões e concepções e decepções sobre tudo isso. Ele devia estar de novo indeciso quanto à sua jovem amante, seu casamento e essas coisas que se arrastam pelos dias dos bem ou mal apaixonados. Uns tipos como o Arthur têm dificuldade em tomar decisões, porque, no melhor dos cenários, almejam as duas coisas: o casamento-contrato-social e a clandestinidade de alguma relação inconfessável, enfim, o mundo visto, exposto, conhecido, da realidade oficial e o mundo secreto onde se engendra e se desenvolve um paraíso à parte.

Na TV, via-se agora o apelo publicitário de uma dessas grandes empresas poluidoras e produtoras de lixo tóxico, naturalmente pregando o oposto: que lutavam pela preservação do meio ambiente e projetavam cada vez mais tecnologias para criar um novo mundo, sustentável e quase utópico. Até os animais selvagens, em animações tecnicamente perfeitas, pareciam sorrir, em seu hábitat intacto. Essa grande corporação respondia a inúmeros processos judiciais, em parte relacionados a violações de leis trabalhistas, em parte por agressões ao meio ambiente, ocupação ilegal de áreas preservadas e outros crimes menores, sendo dois desses processos de grande monta, envolvendo somas astronômicas em indenizações para famílias das vítimas de sua atividade empreendedora ininterrupta, que fazia a fortuna dos sócios majoritários e dos demais acionistas. Na tela, sucediam-se imagens, em câmera lenta, de muitas pessoas simpáticas, idades e etnias diferentes, capacetes, óculos de proteção, luvas e uniformes, todas elas dedicadas afetuosa e apaixonadamente ao trabalho, virando seus rostos para a câmera em algum momento, sorrindo e cruzando os braços sobre o peito, representando a determinação e as ótimas intenções da companhia que abraçavam, empenhada em construir o futuro do país, da sociedade, do planeta e da sempre confiante humanidade.

“Vamos deixar pra outro dia, meu rei Arthur. Prometo uma partida de sinuca honesta.”

Deu-me um tapa no ombro, fazendo-me oscilar um pouco.

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