Office in a Small City por Edward Hopper

Teus olhos na escuridão. 24

Uma aventura perigosa na clandestinidade.
O mapa de um escândalo.
Um segredo potencialmente devastad
or.

Como conciliar uma noite de sono depois disso? Como conduzir um dia de trabalho? Fingir naturalidade entre os colegas, estar atento à rotina… – após a noite seca e fria que prenunciava as horas seguintes, que só eu havia atravessado escondido, entre sombras.

Assim que o aero me deixou em casa, subi apressado, corri ao painel suspenso, com as mulheres suspeitas, do qual me olhava de frente a minha preciosa fonte (pois tinha de ser uma delas!), e imediatamente risquei as duas mais velhas da lista, mudando suas fotos de lugar, alfinetando-as em um canto específico, escolhido por mim, da tosca cartolina cinzenta, na margem que servia às inocentes. De Castro era um homem charmoso, influente, rico, que já alimentava boatos de atuar como um discreto predador sexual. Não teria interesse, não perderia seu tempo e sua energia de homem com aquelas duas senhoras desanimadoras, tão bem quanto não o faria com outras de mesmo tipo físico, de rostos pelanquentos e olhos tristes ou rostos enrugados e rígidos, decaindo à aposentadoria, após terem estendido, por décadas, um trabalho que talvez detestassem realizar. Edna estava eliminada. Maria de Lourdes, eliminada. Definitivamente.

Pela manhã, na redação da Facto. “Força aí”, disseram-me alguns, dias atrás, em outros dias assim, como esse. Mas, por sorte, meus colegas andavam mais ocupados agora, por motivos diversos e banais, e não deram muita atenção aos meus fingimentos. Quase de hora em hora, eu ia ao banheiro lavar o rosto, jogar água fria nos pulsos. Café, além do normal. A Cleo e eu nos cumprimentamos, trocamos amenidades. Depois a Heleninha. Depois a Diana. O Arthur e o Robinho, amigos machões e abrutalhados. O Gabriel e… Enquanto ele me falava sobre duas facultativas que estava tentando editar, as mídias televisivas passaram a transmitir, da esplanada em frente ao Palácio Brinde Sur, que servia de residência à família real durante certa estação do ano, a aparição do jovem casal de nobres, um dos príncipes e sua esposa, intitulada duquesa, trazendo a público a filhinha que todos ansiavam por conhecer. Desceram elegantemente a escadaria: discretos, bem-educados, bem treinados, sorrindo e acenando à imprensa e à pequena multidão que viera celebrar a boa saúde da mais nova cidadã de sangue azul.

“Olha só. O país vai parar de novo”, comentou o Gabriel, com sua neutralidade assustadora.

Annelise Charlotte Jeannie Françoise von Richmond: a mais nova herdeira das tradições do antigo império tinha pouco mais de um mês de vida. Na ocasião de seu nascimento, foi oficialmente noticiada sua chegada, porém, por razões não esclarecidas, a família optou por não apresentá-la ao público. Agora, após algumas semanas embalando um surdo suspense, cuidadosamente mantido em segundo plano, as câmeras mostravam, em alta definição, o rostinho inquieto de uma bebê adorável. Como previsto, o dia foi dominado por essa notícia. As imagens da menina ao colo da mãe, alguns pronunciamentos do príncipe e suas respostas aos infocamps afoitos, aglomerados em frente ao palácio, cercados por um grupo de pessoas irradiando euforia e entusiasmo, uma e outra agitando bandeirinhas com as cores da heráldica familiar, algumas comovidas até as lágrimas, e breves documentários narrando a vida de cada um dos genitores, desde o nascimento até o momento presente, repercutiram por todas as redes, durante o dia todo.

Com o foco de quase toda a imprensa voltado para esse evento, a um tempo convencional e extraordinário, aproveitei para continuar trabalhando em meu tópico sobre o Estádio Romualdo Século, que pretendia publicar nessa mesma semana. Ao fim da tarde, procurei por facultativas tratando da exibição da bebê real. Geralmente, algumas facs são disparadas em minutos, após um tema qualquer, de interesse público. Não encontrei nada parecido com uma fac e considerei pelo menos três versões dessa mesma notícia.

Hoje, pela manhã, à entrada de seu palácio de verão, a princesa herdeira mostrou ao país e ao mundo sua filhinha, uma bebê absolutamente cativante, que recebeu o nome de Annelise […].

Annelise Charlotte Jeannie Françoise von Richmond é o nome da mais nova herdeira da família real. A princesa exibiu sua joia natural, recém-nascida, aos olhos críticos da imprensa, hoje pela manhã, junto à escadaria de entrada de seu palácio de inverno. […]

Dia de festa para a família real e principalmente para a imprensa: com um mês e meio, até então mantida longe das lentes da imprensa e conservada em sua privacidade, a princesinha Anelise foi hoje o destaque das manchetes em todo o país e em boa parte do mundo. […]

Todas coincidiam. Detectava-se apenas um erro de grafia em um dos textos (na referência ao prenome da bebê); e um dos redatores confundiu o palácio de verão da família Von Richmond, que fica no sul do país, com o palácio de inverno, que fica no nordeste do país. Mas, fora isso, nenhuma distorção, nenhum elemento que gerasse dúvida, nenhuma insinuação de qualquer singularidade oculta, subentendida. Nenhuma facultativa sobre o evento. Nada.

A Cleo veio até o meu ponto, lateralmente; eu quase não percebi sua aproximação.

“Estou atrapalhando?”

“Ahn… Não.”

“Parece tão compenetrado…”

“Não, não. Senta aí, puxa a cadeira. Veja só que coisa interessante.”

Ela se ajeitou ao meu lado, ainda segurando papéis, tablet e uma caneta. Camisa branca de mangas compridas, dobradas no antebraço, em contraste com uma calça preta, justa, seus peitos volumosos destacando-se com delicadeza e força, inflando o tecido grosso.

“A notícia da bebê real mobilizou toda a nação hoje, não é?”

“Nossa! Ela é uma fofa. Que gracinha. Muito linda mesmo!”

“E as biografias do príncipe e da duquesa, que alguns chamam de princesa, são hoje mais conhecidas do que todas as revoluções do século 19, durante o Segundo Império.”

“Como? Não entendi muito bem. Qual é a relação?”

“Você leu, hoje, alguma fac sobre essa história toda?”

“Não. Estava meio ocupada com a recepção das imagens…”

“Olha, eu não quero comentar isso com mais ninguém. Não sei por quê.”

“Certo. Tudo bem. Fica entre nós então.”

“Porque talvez eu esteja errado. Mas, se estiver certo, quero guardar comigo essa observação por mais tempo. Não parece normal que todos estejam e sejam tão… distraídos.”

“Marco, eu não estou… O que é?”

“Já reparou que não há facultativas sobre isso? Sobre o nascimento e sobre a aparição da herdeira real?”

Ela ficou calada e pensativa. Tentando, talvez, recordar alguma coisa.

“Não. Não reparei não. Por que haveria?”

“Ora, porque os redatores de facs, desde os recém-formados até os mais reconhecidos, estão sempre de prontidão, usando como matéria-prima qualquer acontecimento que movimenta as mídias de maneira, digamos, razoavelmente impactante.”

“Isso da filha da princesa não foi tão impactante.”

“Mas foi de amplo interesse nacional. E internacional. Parece ter sido, não acha?”

“Sim, foi. Tem razão. E amanhã ainda vão exibir muitas dessas imagens, com certeza.”

“Por quantos dias conseguirem, desde que isso sustente índices de audiência e estatísticas de leitura. Mas ninguém escreve, por exemplo, que a imagem é fraudada e que a duquesa não teve filho algum.”

“Como?”, ela sorriu, com isso fazendo ver que reagia como eu, tendo certas facs como ridículas. “Mas…”

“Se um professor lhe pedisse como tarefa uma facultativa sobre o tema, você poderia facilmente questionar o sexo da criança, gerando uma dúvida sobre a bebê em questão ser um menino, não uma menina. Ou reportar que ela sofre de uma doença rara, por isso a duquesa a teria ocultado do público desde o nascimento, enquanto se realizavam diagnósticos e exames específicos. O filhinho do último czar da Rússia era hemofílico.”

“Não tinha pensado nisso. Quero dizer… Sobre o czar, eu sabia.”

“Sendo essa a pauta do dia, talvez da semana toda, e sabendo que todos os veículos de imprensa competem, concorrem entre si, é admirável que nenhum deles tenha publicado uma linha sequer de algo parecido com uma facultativa.”

“Admirável mesmo. Sim, é estranho. Vou passar a observar isso.”

“Pode haver uma gradação, uma espécie de onda consensual: escrever facultativas em quantidades maiores para certos temas, menores para outros e… nenhuma, simplesmente nenhuma, sobre determinados temas.”

Ela trocou os objetos de mão, sobre as coxas, e com a mão livre coçou de leve a lateral do nariz.

“Vou passar a observar isso também.”

“Não sei se é só uma coincidência, mas parece que não. Como eu disse, posso estar errado. Eu não costumo ficar conferindo essas coisas, mas hoje fiquei curioso. E, por acaso, observei essa ausência completa de facs sobre uma pauta tão propagada, tão amplamente difundida, como a dessa princesinha abrindo os olhos para a máquina do mundo. Vou procurar outra vez amanhã. Talvez apareça alguma.”

“Vou procurar também. Você atiçou minha curiosidade. Talvez seja pela dificuldade de… de… Difícil criar alguma mentira sobre algo tão visível, mas… Você mesmo se prontificou a isso, com algumas opções plausíveis.”

“Não é tão difícil. E como aprendemos na escola, as facultativas têm que ser ‘quase reais e muito convincentes’. Não acha que questionar a saúde da criança faria sentido? Não seria uma boa facultativa?”

“Acho. Isso é básico. E também resume muito bem o resultado pretendido. Até já comecei a ficar desconfiada dessa questão da saúde da bebê imperial”, sorriu.

“Parece incrível que tenhamos chegado a isso. As primeiras facultativas eram absurdas, toscas, ridículas. Diziam que a esposa do presidente Custódio era um travesti; que vacinas podiam causar autismo; e que havia uma conspiração comunista para dominar o mundo. Coisas de que até uma criancinha daria boas risadas. Mas olhe para nós, hoje. As facultativas se aperfeiçoaram muito nesses últimos vinte anos, mais ou menos. Você não sabe, porque nem era nascida.”

Sorriso de incisivos centrais ligeiramente separados. Dentes grandes, boca bonita. “Tenho 23, me respeite. E estudei tudo isso muito bem.”

“Se isso se confirmar, Cleo, estaremos diante de algo que nunca estudamos na escola. Em nenhuma disciplina da universidade. Nem mesmo no livro do Heródoto Vendime há qualquer destaque sobre isso. Não que eu me lembre. Será que estamos parcialmente cegos? Ou quase paranoicos? Será que eu estou vendo coisas?”

“Está me assustando, não seja exagerado.” Sorriu novamente, grande colega-amiga, amável e brindando-me com a alegria das afinidades. “Eu tinha razão sobre ter muito a aprender com você. Desse jeito, vou vir aqui todo dia, sentar do seu lado.”

“Quanto a mim, nunca vou entender esse fascínio patético por famílias ricas. Representam o quê? Para que servem? Reis, rainhas, princesas… são como símbolos. Mas do quê?”

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