Office in a Small City por Edward Hopper

Teus olhos na escuridão. 33

Uma aventura perigosa na clandestinidade.
O mapa de um escândalo.
Um segredo potencialmente devastad
or.

Fui com a Cleo ao Prime Time. Ideia minha. Queria beber e conversar ao som das mesas de sinuca, da falação de pessoas do espaço maior, sob as cortinas horizontais de fumaça, sob as intervenções cíclicas de uma das atendentes que já me conhecia, a incansável mulher que evitava sorrir, que impunha sua personalidade intrépida aos frequentadores.

“O que vai pra sua namorada?”

Voltou a se deslocar, andando rápido, sumiu na penumbra, rumo à cozinha.

“Sabe, Cleo, eu admiro gente assim.”

“É mesmo? Acho ela meio mal-educada. Meio arrogante.”

“Pode ser. Mas eu vejo algo valioso nela: essa coragem, essa atitude firme, de alguém que se mostra como é e não aceita rendição.”

“Sei”, disse ela espetando um cubinho de queijo temperado. “E então? Sou a sua namorada ou isso é coisa da cabeça dela?”

Eu não tinha nada definido com a Cleo. Não queria decidir assim, de um minuto a outro, sobre algo tão recente, tão prematuro. Eu era sincero, e ela também – exceto, pelo menos, quanto àquele seu namorado fantasma. Eu não ousaria propor algo antiquado e patético como uma amizade colorida, como se vivêssemos nos tempos de nossos bisavós. Uma coisa dessas poderia até ofendê-la. Ainda assim, sendo também bastante sincero, eu considerava a ideia interessante, de qualquer maneira – mesmo correndo o risco de parecer um dinossauro sexoafetivo do século passado. De qualquer forma, estávamos de acordo em não revelar nosso relacionamento, enriquecido de bons presságios, alçado a um nível mais íntimo do que o coleguismo e a mera amizade, em nosso ambiente de trabalho: os colegas não deveriam saber.

“É isso então? Combinado?”, perguntei.

“É. Melhor assim. Você sabe guardar um segredo, não sabe?”

“Faço um esforço enorme.”

Mais à frente, em nossa conversa pontuada por amenidades e beijos, ela disse que vinha pensando em mim todos os dias. Há bastante tempo. Que eu era especial por vários motivos – mas só se lembrou dos livros.

“Você já veio aqui com a Diana?”

“Com a Diana?”, estranhei. “Algumas vezes, sim. Com outros colegas. Não com ela, particularmente. Por quê?”

A Cleo confessou que sentia ciúmes dela. Que a achava muito próxima de mim: atenciosa, sensual e propensa a intimidades. Isso era certo. E que eu não poupava esforços para lhe dar atenção. Isso era um tanto exagerado. Mencionou o dia em que a Diana ficou acomodada ao meu lado, enquanto assistíamos à entrevista com os premiados do Fac Plus Ultra.

“Além disso, ela é muito bonita”, arrematou.

A atendente, ainda aquecida e prodigalizando energias, talvez adquiridas em algum treinamento militar realizado nessa mesma tarde, estacou, à frente de nossa mesa.

“Sua Tincobell, bem gelada. E mais uma Blue-F pra namoradinha.”

A Cleo não quis que eu a acompanhasse até sua casa. Pediu um aero e foi sozinha, por sua conta. Tudo certo. Por que não?

No sábado, fui almoçar em seu apartamento, onde eu não me sentia mais um visitante. Ela me deixava à vontade, sem dizer uma só palavra propondo que eu me sentisse à vontade. Música instrumental, suave, que eu não identificava. (A quantidade de produções musicais há muito tempo se acumulava desordenadamente, por isso era quase impossível que um artista ou uma canção se destacasse em meio a esse universo pulsante, repetitivo, em irrefreável e permanente expansão.)

“Descobri esse compositor quase por acaso, no PopFinder. Está gostando?”

Desde que eu chegara, desde o primeiro beijo à porta, a Cleo seguia me conduzindo com sua simpatia, seu bom humor, que eu entendia ser uma extensão de sua alegria em ter-me por perto. Eu também me sentia bem com ela. Nossas afinidades quanto a ler, comprar e guardar livros, eram raras de se encontrar, já que quase todos os que conhecíamos consideravam inútil colecionar exemplares impressos. Ela serviu um estrogonofe vegano com vinho branco.

“Está delicioso. Sério. Você cozinha muito bem.”

A Cleo recusou o elogio. Admitiu que o prato tinha ficado bom, mas explicou-me que não sabia preparar quase nada na cozinha, que comprava comida pronta e usava o food-renewer, a mesma coisa que eu fazia nos finais de semana ou em dias de home office, porque, durante os dias de trabalho, eu almoçava em self-services próximos à Facto. (Nossos aparelhos eram, inclusive, da mesma marca e modelo.)

“Eu também, gosto de colocar no nível 3. Quase passando do ponto.”

Ela e a irmã haviam sido criadas, desde muito pequenas, com assistentes domésticos contratados, em mais de uma especialidade, e nunca foram motivadas a aprender a cozinhar – ou a lavar roupas ou a limpar a casa ou a cuidar do jardim…

“Quer saber? Acho muito bom que foi assim. Não sei fazer nada direito, dessas coisas, tenho que pagar por tudo. E daí?”

“Nada contra. Signos virtuais existem pra isso mesmo. Eu só não podia imaginar que conheceria uma princesa real nesta minha profissão.”

“Como não? Se fosse um infocamp, poderia ter entrevistado a princesa de verdade. Em carne e osso e sangue azul.”

Mais vinho branco. Sobremesa (musse vegano de chocolate e maracujá). Ela começou a preparar o café, eu o terminei. Descalçou os sapatos, sugeriu que eu fizesse o mesmo. Nós dois, o tempo todo, brincando com memórias de livros e coisas inúteis que não faziam parte de nosso trabalho, de nossa profissão. Sentados no sofá, eu recostado quase na diagonal, apoiado em almofadas, ela acomodada ao meu lado, com a cabeça em meu peito, compartilhamos nossa lassidão, nosso silêncio cada vez maior, trazendo o sono.

A tarde já declinava quando percebi que ia despertando, entre nuvens e neblina. A Cleo ainda ronronava, em sono profundo, mal atravessada sobre meu corpo. Levantei-me com cuidado, fazendo que ela se inclinasse lentamente sobre as almofadas e continuasse em seu repouso de princesa à paisana.

Peguei meus cigarros, fui à janela. Fiquei olhando a ampla visão da cidade que se abria dali, algo a que eu não dera atenção das outras vezes, nas noites em que me encontrara com a Cleo, nesse mesmo lugar. Pensando em tudo o que estava guardando sobre os escandalosos esquemas de corrupção liderados por dois importantes homens públicos, diretamente associados ao primeiro-ministro, pensando em nossa democracia, pensando em como se podia fraudar, com tanta facilidade (talvez estivesse enganado quanto a isso, dado o nível de complexidade exigida nesses casos), as contas previstas a serem pagas com verbas governamentais, enfim, vivenciando toda essa miscelânea de coisas novas que se havia abatido sobre mim, há tão pouco tempo, em meio a uma rotina profissional tão acertada e previsível. Em minha imaginação, gostaria de apresentar a Cleo à minha informante. Gostaria que minha informante estivesse ali, conosco, comendo e bebendo, como formando um trio de conspiradores leais, unidos por um arriscado e poderoso ideal comum. Nisso, a Cleo me abraçou forte por trás, dando-me um pequeno susto, que veio silenciosa e intencional, feita a surpreender-me. Eu me virei, sem me afastar de seu corpo, correspondi ao abraço, e ela então ergueu-se um pouco na ponta dos pés para alcançar beijar meu pescoço e parte de um ombro, enquanto seguia desabotoando minha camisa, já meio aberta na parte superior desde que tínhamos adormecido no sofá. Ela respirava diferente e não sorria. Beijava-me o peito. Apertava-me os ombros e os braços. Disse que vinha pensando em mim como homem antes mesmo de nos visitarmos pela primeira vez. Que cultivou isso como uma planta, como uma flor, ao longo dos dias, com o objetivo de me conhecer melhor, observando minhas reações, das conversas no trabalho até o gosto por livros, e agora me conduzia pelo apartamento, agarrada em mim, como se, entre meiga e amedrontada, esperasse algum gesto de proteção, enquanto se encaminhava para o decisivo passo seguinte. Passamos pela porta da sala, pelo corredor e por outra porta, que já estava aberta. E foi ali, em seu quarto, em sua cama, que essa flor se abriu.

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