Office in a Small City por Edward Hopper
Teus olhos na escuridão

Teus olhos na escuridão. 58

Uma aventura perigosa na clandestinidade.
O mapa de um escândalo.
Um segredo potencialmente devastad
or.

Na noite após o meu primeiro interrogatório, parei em um quiosque da Praça da Abolição para comprar um novo personal. Fui para casa, tomei um banho, depois abri meu GP, acomodando-o sobre minhas pernas, no sofá. Li algumas facultativas repercutindo o meu tópico e a atuação da Facto, e nisso, com o GP deslizando para o lado, fui vencido por um sono opressivo, entorpecente e irresistível. Então, como um daqueles flashes velocíssimos entre sinapses, que duram menos do que menos do que menos do que uma unidade de tempo qualquer, que apenas dispara uma narrativa absurda, condensada em uma imagem improvável e desafiadora (mas que só pode ser descrita usando mais tempo e muito mais que uma palavra), tive uma visão envolvente, que parecia sufocar-me pelo tempo que se apresentava aos meus olhos mudos, que eu sentia arregalados mesmo sob a capa de minhas pálpebras bem fechadas. Uma imagem simples, estática, de fácil identificação, mas que, sob o disparo de algum dispositivo emocional, de repente tirava-me o fôlego, mesmo na condição de um transe brevíssimo, como a dança de uma partícula que se anula ao chocar-se com sua equivalente em antimatéria. Nem poderia descrever esse instante como um piscar de olhos, porque eu não pisquei os olhos. Quando caí entorpecido dentro de mim mesmo, essa visão já se mostrava vibrante e nítida, formada com arrepiante consistência, pronta a surpreender-me com sua eloquência, despertando um misto de prazer visual e inquietação momentânea, traçando interrogações no espaço. Despertei num susto, compreendendo que havia cochilado por um mínimo instante. O que vi nesse período de tempo absurdo, tempo de micropartículas, fora de minha percepção real, instintiva e grosseira do ambiente físico ao redor, foi uma silhueta opaca, uma mulher de perfil, de pé sobre uma rocha alta, de frente ao oceano, sob a intensidade imperiosa de uma noite azul-escura. Parecia usar um lenço na cabeça – talvez uma alusão inconsciente a Gertrid, a ativista europeia. Não era possível identificar seu tipo físico, sua etnia ou quaisquer outras características além de sua altura, mediana e propensa ao comum das pessoas, sem nada de extraordinário. Alguns pontos de seus trajes indefinidos agitavam-se, revelando a força de um vento incessante, provindo do espaço aberto, em disparada sobre o mar. Como todos os humanos, ela um dia havia sido uma criança, uma menina inocente e curiosa, atravessando reinos encantados, motivada por seu próprio talento, conquistando seus estudos, sua graduação, sua carreira profissional, até acabar envolvida em um domínio de monstros. Pareceu-me ter ouvido uma voz serena, em tom de alívio, partindo de um ponto qualquer, envolvendo todo esse ambiente abstrato, de alguma forma confortando-me ao sugerir um comovente estado de redenção: “Eu desapareço…”. Essa mulher invisível, delineada por trevas, recriada por meu inconsciente no instante vertiginoso de um transe aleatório, estava ali para se despedir. Eu nunca a vi. E nunca haveríamos de nos ver. Os trajes drapejantes dessa presença espectral denunciavam a mudança de direção do vento, que súbita e freneticamente passou a soprar com muito mais força. “O vento mudou”, senti ter ouvido dentro de mim mesmo. “É hora de partir.” Minha imagem misteriosa, esculpida nas sombras, como num estalo silencioso e num passe de mágica, desaparecia de vez, junto às rochas. Era a Paquinha que se ia?

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