Office in a Small City por Edward Hopper

Teus olhos na escuridão. 40

Uma aventura perigosa na clandestinidade.
O mapa de um escândalo.
Um segredo potencialmente devastad
or.

Passaram-se dois dias desde que eu conhecera a Clarissa, duas semanas da detenção do governador, alguns dias de outras detenções, como a do pastor evangélico mais conhecido das mídias e a de alguns seus comparsas da mesma trama clandestina, quando a operação seguinte da PF anunciou a execução de mandados de busca, apreensão e prisão em uma escala nunca vista, abrangendo doze estados da federação, tudo no mesmo dia, pouco antes do alvorecer, assim como se dá uma ofensiva relâmpago, com o clássico elemento surpresa, tomando os alvos de assalto, desguarnecidos e sonolentos: o primeiro noticiário televisivo falava em mais de vinte detenções.

Mais uma vez, toda a redação da Facto se concentrava nos desdobramentos dessa ação policial determinada e bem-sucedida, embora, em meio a essa nova leva de suspeitos, não se destacasse ninguém muito conhecido ou de função relevante no esquema: tratava-se de participantes obscuros, funcionários menores, necessários, mas distribuídos em camadas de baixa hierarquia. Só um deles, a julgar pelas imagens, parece ter reagido de maneira agressiva, vociferando em direção aos agentes (um deles, uma agente feminina), que tiveram de dominá-lo com força física conjunta.

“Que loucura…”, comentou o Rômulo, quase incrédulo. “Ninguém imaginava que fosse algo assim, tão grande.”

A Cleo conversava comigo, em voz baixa, disfarçadamente, enquanto também nós acompanhávamos a tela grande, quando meu personal deu sinais de nova mensagem. Origem desconhecida. Pensei imediatamente em Áurea ou Selma ou Soraya ou Eliane – uma delas, a Paquinha. Talvez. Talvez nenhuma delas. Talvez a Paquinha fosse outra ainda, que não integrava minha lista, uma figura fora de meu alcance. Eu precisava voltar a investigar, porque, chegando ao limite de meus próximos passos no processo, sem novas pistas nem ideias e sem ter por onde seguir, minha mente havia se acomodado ao que costumamos chamar de beco sem saída. Toquei o personal com ansiedade, abri o Afluente, prevendo, quase lendo antecipadamente, com olhos impossíveis, uma mensagem de minha confessora oficial.

Eu sei quem você é! Sei onde você mora! Quando você menos esperar, você vai pagar caro por toda essa merda! Você vai!

Surpreso e incomodado, senti um arrepio ao verificar a repetição enfática do você, em meio a frases breves e tão claras. Teria de ir à polícia se quisesse rastrear a origem do emissor. Mas isso poderia comprometer-me também. Achei melhor não responder. Fiquei com o personal à frente, cabeça baixa, assimilando, da maneira mais neutra possível, aquela ameaça explícita, enriquecida por pontos de exclamação. O que teria acontecido? Onde estaria ela?

A Cleo me observava, quieta.

“Que foi, Marco?”

“Ahn? Nada. Eu precisava responder a uma mensagem aqui.”

Ela devia ter visto que eu não havia digitado nada nos últimos instantes de meu silêncio aturdido. Desativei o personal, quase o soltei sobre uns papéis, ao lado do GP.

“E respondeu?”

“Ahn…? Agora não. Respondo outra hora, sem pressa.”

Ela se aproximou um pouco mais. Curiosa, mansa.

“Marco. Você está escondendo alguma coisa de mim?”

Disfarcei como pude, tornei a olhar para o telão, ensaiei um sorrisinho.

“Não é nada, nada importante.”

“Isso quer dizer que sim. Que você… Tudo bem, me desculpe. Não tenho o direito de invadir sua privacidade. Você não tem que me contar…”

“Fique tranquila”, eu disse, de perfil para ela, acompanhando a repetição das imagens que mostravam a ação da Polícia Federal desde o início da manhã. “Pode perguntar o que quiser. Não me importo.”

Ela se afastou sem dizer nada.

“Olha só”, disse o Gabriel, com sua voz de mesmo tom, enquanto um dos detidos desfilava quase em close pela fresca alameda em frente ao seu condomínio, conduzido por dois agentes mascarados, vestidos de preto. “Minha colega infocamp, da Tribuna da Justiça, já entrevistou esse cara aí, lembro dele.”

Tínhamos combinado, minha informante e eu, de não usar personais ou qualquer outro meio eletrônico em nossa comunicação. Eu teria de ir novamente ao Café Silene, se quisesse encontrar alguma nova instrução, algum recado, algum alerta. Preparei-me mentalmente para isso. Iria com mais cuidado desta vez, atento a tudo. Deixaria o aero me esperando do lado de fora, caso tivesse de me deslocar às pressas.

Na quinta-feira, pela manhã, bem cedo, eu ainda saindo da cama e prevendo combinar com a Cleo algo para o nosso final de semana, recebi outra mensagem.

Você vai pagar caro e vai ser logo! Não pense que pode se esconder, seu merdinha filho da puta! Vai ser logo logo! Pode ter certeza!

Melhor não responder. Melhor não apagar. Eu precisava, ansiosamente, voltar à cafeteria na próxima segunda-feira-terça. Minha mentora podia me deixar recados, mas não eu a ela – um papel qualquer que eu afixasse sobre uma das mesas seria encontrado pelo primeiro funcionário que abrisse o estabelecimento, pela manhã. No entanto, esse era ainda o único meio de me comunicar com ela. Estive muito perto de usar o personal, retomando as primeiras mensagens que ela me enviara, para lhe responder, tentar algum sinal em retorno. Mas não, eu não podia fazer isso. Ela já me havia prevenido sobre a vulnerabilidade das redes (o que todos sabem), e algum perigo parecia estar ganhando forma, tornando-se real, erguendo-se no invisível, com a mira apontada para mim.

Mais tarde, sinal de nova mensagem. Eu já estava na redação, trabalhando. Que tipo de recado sinistro viria com esta agora, que acabava de chegar?

Um imprevisto. Sei que recebeu meu recado. Não venha nesta próxima semana também. Não responda. Delete isto. Aguarde meu contato.

Sim, mais uma vez, era ela, quase sempre rompendo minhas certezas, quem iniciava uma nova conversa pelo personal, via Afluente, contrariando sua própria cautelosa instrução. Isso significava que ela não dispunha mesmo de outra maneira de falar comigo. Decidi responder, ignorando sua advertência.

Que imprevisto?

Um minuto, pouco mais. Nenhuma resposta. Nada. Inútil esperar que ela respondesse. Só quando eu (mal) a conheci, por meio das primeiras mensagens, foi que imaginei poder desenvolver com ela um diálogo normal.

Pela primeira vez, desde o início dessa interação escusa e fora do comum, eu me senti um tolo. Já me sentira constrangido algumas vezes, sim, diante dela, por culpa de minha ingenuidade, mas não me senti tolo, como agora, em nenhuma daquelas vezes. Era diferente. Algo como a impressão tardia de quem percebe ter caído em um golpe. De quem compreende, de maneira conclusiva, ter sido vítima de uma trapaça ou de uma cilada. Essa mulher que eu nem conhecia, que havia se apaixonado por um homem importante da política, que havia desfrutado de luxos e prazeres na clandestinidade, que havia sido traída e humilhada por ele, e que agora arquitetava com determinação sua calculada vingança, estava me usando, me manipulando, me enredando no processo de seu projeto pessoal devastador. Acendi um cigarro, levantei-me, inquieto. Era raro eu andar por ali, entre os pontos de trabalho, e dessa vez predominou essa vontade. Peguei um papel para disfarçar, fui passando por meus colegas, minhas colegas, em atividade normal, enquanto eu me sentia um estranho, um deslocado, o portador consciente de uma bomba-relógio ou o súdito submisso, servindo às ordens de uma rainha obscura. Olhei a Cleo pelas costas, com sua blusinha de alças, essa novata dedicada que, em pouco tempo, não só me havia conquistado por seus méritos e com seus encantos, como fazia despertar em mim o desejo de lutar.

Não, mas não era isso quanto à informante. Ela me oferecia a oportunidade de me redimir comigo mesmo quanto à minha acomodação como jornalista midcom, como pessoa, como cidadão, como leitor dos tantos livros que me haviam inspirado ao longo da vida. Era hora de eu também assumir esse projeto. Partir para cima deles. Mostrar as presas, as garras. Virar a mesa, virar o jogo. Virar um bicho. Virar a nação de ponta-cabeça. Revelar a todos o verdadeiro e grande golpe, não a suposta armação de minha amiga anônima sobre mim. Afinal, ela muitas vezes havia deixado claro que eu era livre. Que eu poderia parar quando quisesse. (“Eu desapareço.”) Que eu poderia publicar o que quisesse, se quisesse. Nunca me forçando a nada. Nunca insinuando uma ameaça, uma chantagem, uma condição – a não ser a da confiança mútua. Eu estava sendo injusto em pensar nela como uma manipuladora e em mim como um tolo: essa era a minha grande chance de superar o homem bem-comportado e previsível que eu era. Por uma causa justa. Por um gesto ousado que poderia mudar os rumos das relações de poder. Sentia necessidade de ouvi-la outra vez, na escuridão. Sentia falta dela. Precisava saber dela. Precisava dela. Queria unir forças, comparar nossas armas, reavaliar nossas estratégias. Em sonhos, eu adoraria receber, do nada, uma mensagem inteiramente imprevista, dizendo: “Amo você.”. Com sua voz bonita sobrepondo-se ao sorriso sincero e sensível da Cleo. Sim, eu levaria os cigarros de sua preferência. Faria o que ela quisesse. O que ela me pedisse. Para participar com honra de seu jogo engenhoso e justo. Para cortejá-la de certa forma. Para agradar a uma dama.

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