Office in a Small City por Edward Hopper

Teus olhos na escuridão. 39

Uma aventura perigosa na clandestinidade.
O mapa de um escândalo.
Um segredo potencialmente devastad
or.

Nessa noite, não falamos de livros. Ela me sorria, nua, parcialmente acomodada sobre o meu corpo, acariciando meu rosto, nós dois um pouco arquejantes e ainda felizes com a sensação de plenitude proporcionada pelo orgasmo recente. Fiquei olhando seu rosto próximo, sua pele bonita, seu nariz pequeno, sua boca carnuda.

“Você é linda. Esses seus olhos, sempre brilhantes, molhadinhos, úmidos…”

“Com você, eu fico molhadinha e úmida, por inteiro.”

Beijou-me rapidamente, rolou e saiu da cama, quase apressada, ansiosa por alguma coisa que eu não vislumbrava ainda. Abriu um armário, vestiu-se rapidamente com uma camisola curta, lembrando um quimono, de uma cor suave, pouco acima do branco, ilustrada com desenhos delicados de juncos negros e andorinhas azuis. Pegou seu personal, começou a procurar algo nele enquanto voltava para a cama.

“Pra que serve essa camisola?”, perguntei enquanto me sentava, ajeitando o travesseiro às costas. “Já vi você inteirinha…”

Princípio de risada estridente, sem tirar os olhos da tela do personal.

“Bobo! Fico bonita com ela.”

Ficava mesmo. Ela podia gastar com roupas finas, eu imaginava, mesmo com trajes assim, íntimos, que praticamente não mostrava a ninguém – há quanto tempo, antes de mim?

“O que tem de tão interessante no seu personal?”

“Espera só, quero te mostrar uma coisa.”

Voltou à cama, jogou um travesseiro ao meu colo, deitou-se de bruços sobre minhas pernas, meio atravessada à minha frente. Mostrou-me a tela.

“Encontrei esse jornal pequeno, guardei o acesso. Voz da verdade. É sério. Eles se orgulham de nunca ter publicado uma facultativa, nunca. Nem uma sequer. Nem nacional nem internacional. Not one! Conhecia?”

Não, não conhecia. Um periódico modesto, poucos seguidores. Toquei a tela, deslizei o dedo para baixo e para os lados, conferindo seus conteúdos.

“Mas olha só: um baixo número de leitores”, observei. “Nunca vão crescer, desse jeito.”

“Não, mas não importa. Acho que não querem mesmo crescer. Eu os invejo. Admiro.”

“Incrível. Como sobrevivem?”

“Tem muita gente que não quer saber de facultativas, mais do que você imagina. Ah, como eu queria trabalhar pra eles!”

“Talvez você possa, já que não depende de dinheiro.”

Em vez de entender isso como uma ironia ou uma ofensa, ela realmente se prontificou a considerar a possibilidade.

“Tem razão. Poderia mesmo. Se me aceitassem, eu iria correndo, sabia? Penso seriamente em enviar um currículo a eles.”

“Acho que você está querendo é se ver livre de mim”, brinquei, batendo a mão, firme, em sua bunda grande e linda.

“Ah, só pode ser”, ela ironizou. “Mas olha, agora eu quero te mostrar outra coisa, vem cá…”

Fomos até seu escritório. Ela ativou seu GP.

“Por que não me mostra no personal?”

“Quero tela grande agora. Fica quieto e me espera.”

Clicou uma coisa e outra, e logo apareceu na tela o rosto de uma jovem de pijama, que se aproximava e se ajeitava para falar com ela, atendendo à chamada. Parecia ainda dispersa, ativando o que faltava, em seu aparelho.

“Cleo?”, perguntou, e a imagem, para ela, deve ter surgido no mesmo instante.

“Oi!”, disse a Cleo, sorridente e entusiasmada. “Oi aí, minha querida querida!”

Sentado ao lado dela, fiquei constrangido por estar nu – ou, pelo menos do ponto de vista do enquadramento das telas, apenas sem camisa.

“Clarissa, esse aqui e o Marco!”

Fiquei completamente sem jeito, quase pedindo desculpas por minha displicência.

“Oi…” sorri como pude. “Desculpe, eu não estava preparado. Ela não me disse que faria contato com alguém e…”

“Não, não tem problema, não se preocupe. Minha irmã é assim mesmo, conheço essa peste.”

Elas eram muito parecidas. A Clarissa, em relação à irmã, ligeiramente mais magra, rosto menos arredondado. No mais, pele e cabelos repetindo uma genética imperiosa; olhos grandes e vivos, nariz um pouco mais afilado que o da Cleo, boca um pouco menor, mas de mesmo formato, e a maneira de sorrir era a mesma: seus sorrisos se repetiam, idênticos.

“Muito prazer, Marco. A Cleo já vinha me falando de você. Ela estava só esperando essa oportunidade para me apresentar a você, sei disso.”

Mechas claras nos cabelos negros. A Clarissa morava em Portugal havia cinco anos: inicialmente, em Faro, depois transferindo-se para Lisboa, onde trabalhava como tradutora de inglês para editoras locais, além de ser redatora de uma revista especializada em música popular. Na verdade, ela assinava uma coluna crítica no periódico, o que revelava seu conhecimento sobre o tema.

“Não é lindo?”

A Cleo girou a tela em minha direção e se colocou logo atrás de mim, rosto sobre meu ombro, colado à lateral do meu.

Cleo…”

“O Marco é meu colega, meu amigo, meu mentor…”

“Só faltou dizer ‘meu amor’”, arrematou a Clarissa, com humor semelhante ao da irmã.

Levamos um susto quando a tela se encheu de uma mancha castanho-escura, em movimento: era um de seus gatos, que vinha passear por perto, sem a menor noção de informática ou de bons modos em termos de telecomunicação.

“Olha só, que lindo”, falei.

A Clarissa se curvou, pegou um outro gato, esbranquiçado e sedoso, apresentou-me seus dois companheirinhos enquanto os segurava como podia. Eram Clapton e Harrison.

“Ahn…” fez a Cleo enternecida, dengosa como uma pré-jovem. “Mas eles estão muito lindos, esses dois. Olha o Harrison, que doce…”

Ficamos conversando, e eu me esqueci de que estava nu. Contei de meu pai e do Fução. Que eu também guardava livros em casa. Que não tinha nada a ver com redatores de facultativas, por isso não ganhava tão bem. Que, por aqui, a temporada de clima seco estava se estendendo além do normal, que algumas pessoas até rezavam pela chegada das chuvas. A Cleo espantou com um dedo algum cisco minúsculo sobre meu ombro, talvez uma caspa. No fim, a Clarissa sugeriu: “Tirem umas férias e venham conhecer Lisboa. Tudo aqui é encantador. Tenho um quarto de hóspedes que só uso de vez em quando, para receber umas amigas.”.

Prometemos que sim. Pequenos grandes planos de um casal que se supõe livre, confiante e a salvo, propenso a seguir com sua união ainda incerta, sua intimidade crescente, enriquecida por livros, encontros prazerosos e agendas cruzadas. As últimas noites da estação, precedendo as primeiras chuvas, eram ainda distantes e inofensivas.

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