Office in a Small City por Edward Hopper

Teus olhos na escuridão. 42

Uma aventura perigosa na clandestinidade.
O mapa de um escândalo.
Um segredo potencialmente devastad
or.

Na sexta-feira, mais uma vez, o Afluente deu sinais de comunicação.

Encontre-me outra vez na rua escura da próxima manhã.

Não falou em dia e horário, e isso indicava que continuaríamos nos vendo no mesmo lugar.

Boa noite. Qual foi o imprevisto?

Apenas mais uma tentativa inútil. A conversa acabava ali.

Abri a porta com o mesmo cuidado de sempre, agora controlando muito minha ansiedade. Antes que eu dissesse alguma coisa, já sentia o cheiro de seus cigarros.

“Você está bem? Qual foi o imprevisto?”

“Estou bem. Não importa. Já foi resolvido.”

Ela encerrava assim, concisa e direta, certas conversas que não queria estender nem por um milímetro.

“Fiquei preocupado. E também meio assustado. Não acha que eu tenho o direito de saber o que aconteceu?”

“Você não tem direito algum quanto a isso.”

Era inútil confrontá-la. Suspirei um quase nada. Sem exageros, sem dramas.

“Trouxe um maço de Concert”, disse. Joguei-lhe os cigarros.

“Muito obrigada. Você tem sido um gentleman.”

Sentei-me à minha mesa, troquei de óculos. Puxei, com o corpo, a cadeira para a frente. Contei a ela o que tinha acontecido com o Fução. Enquanto narrava o episódio, sem muita precisão e detendo-me em detalhes talvez irrisórios, cuidava para não me emocionar. Por algum motivo infantil, não queria chorar na frente dela, não queria que ela me observasse em uma situação de fragilidade. Contive-me, desviei-me de mim mesmo, e consegui me controlar a contento. Ela estendeu um pouco mais seu silêncio, após terminado o meu relato.

“Você não tem cachorro”, observou.

“Meu pai tinha. Era nosso. Morava em nossa casa, em minha cidade natal. Com ele.”

“E o que tem isso?”

“Tem, que foi uma ação premeditada. Dois estranhos, que nunca estiveram na cidade, foram até lá unicamente para assassinar o nosso cão. Para envenená-lo. Não acha que isso é um sinal, uma espécie de recado?”

Silêncio e fumaça suave.

“Pode ser um sinal. Sim.”

“Mas como alguém saberia sobre o meu pai, sobre o Fução…?”

“Quem quer saber, fica sabendo. Uma estratégia antiga: ferir alguém do entorno. Alguém que você ama. Ou pensa que ama.”

Essa sua frieza poderia ser útil em muitas situações e servir a diversas finalidades, até mesmo salvá-la de algum momento de perigo. Mas eu me incomodava quando ela respondia assim, enquanto eu lhe expunha algo que discretamente transtornava minhas emoções.

“Você, em nenhum momento, perguntou se eu queria continuar”, comentei de mau humor, quase ressentido por isso.

“Não.”

Ela não propunha começar logo a sessão, como de hábito, e isso me fazia pensar que estivesse forjando um tempo para que eu me posicionasse, atualizando nossa relação ou mesmo servindo para que ela me conhecesse e me analisasse cada vez mais.

“Estou correndo mais riscos agora, não é?”

Murmúrio de refrigeradores adormecidos.

“Mais do que antes. Deve estar sendo monitorado. Mas não sei. Suponho que sim. É algo previsto, nesses casos.”

“Comecei a receber ameaças”, falei sem rodeios. “Pelo personal. Pelo Afluente. Não acha que tudo isso está relacionado?”

Fim das nuvenzinhas brancas: ouvi que ela apagava o cigarro, esmagando-o no fundo de algum cinzeiro.

“Pode ser. É comum agirem assim, em retaliação. Executar pessoas próximas. Animais de estimação. Um tipo de cerco que tem suas funções. Intimidatórias, em primeiro lugar.”

Fiquei irritado com sua indiferença.

“Assim? Só isso? Estou sofrendo ameaças que parecem sérias e vi nosso cão ser assassinado covardemente, cruelmente…”

“Não lhe perguntei se queria continuar, nem estou perguntando agora. Você é livre. Eu lhe disse, sim, que sua segurança poderia ser ameaçada. Que ficaria exposto, depois da divulgação do seu texto. Você estava e está consciente disso. Não estava? Não está?”

Tive de admitir que sim, embora não me recordasse perfeitamente dessas falas dela, em encontros passados.

“Sim, você disse!”, respondi irritado.

Ela, depois de um silêncio talvez necessário para avaliar minha impulsividade: “Isso não é uma brincadeira. Você aceitou participar. Aceitou continuar. Eu nunca o forcei a nada. E se quiser parar agora, eu não tenho como forçá-lo a prosseguir.”.

Eu tinha de reconhecer que ela estava sendo honesta. Agora, o silêncio era meu. Meu tempo de aceitar. Compreender, assimilar.

“Podemos continuar? Vamos em frente. Anote aí…”

Pensei, por um momento, que havia perdido minha mãe porque o governo federal propagava, primeiro, que não havia epidemia alguma, que aquilo era uma farsa veiculada pelas mídias; depois, que alguns medicamentos baratos poderiam evitar o avanço de um vírus letal e até mesmo curar os infectados. Agora, o Fução pagava com a vida (e nós, com nosso sofrimento) o preço de se buscar a verdade e de se pretender justiça. Eu estava ali, naquele bunker silencioso, com uma pessoa que não conhecia, pronta a começar, como uma mestra determinada, um novo ditado.

“Espere um pouco. Espere um pouco…”

Eu não podia culpá-la de nada. Ela estava ali, pontual e metódica. Desde o início, eu tinha ido até ela porque queria, porque quis. As coisas pareciam confusas para mim, mas de alguma maneira tudo convergia, tudo era real, tudo evoluía conforme nossas intenções, minhas e dela, conforme avançávamos, fazendo girar uma engrenagem que vibraria surdamente até o desfecho de um poderoso golpe, à luz das liberdades democráticas, com a divulgação de uma grave denúncia. Senti menos uma tristeza que um desejo inflamado de reagir a tudo, reagir a mim mesmo. Recoloquei os óculos escuros, levantei-me e olhei para ela, um borrão escuro entre outros escuros. Avancei um passo em sua direção.

“Não se aproxime”, ela avisou com voz firme.

Fiquei ao lado da mesa imediatamente à frente da sua. Nunca estive tão perto dela, nunca estive tão perto de enxergá-la melhor, bastando que eu baixasse um pouco os óculos, descendo-os sobre o nariz. Mas não fiz isso.

“Me diga quem você é. Vamos fazer isso juntos. Vamos lutar juntos!”

“Não chegue mais perto. Não se arrisque assim.”

“Por que não? Você está armada?”

“Não cometa esse erro. Não vale a pena.”

“Você tem uma arma, é isso? Me diga.”

“Sei que você ainda está tentando descobrir quem eu sou. Não está?”

“Parei, por enquanto. Mas estava sim. Estava, isso mesmo! E o que esperava? Não contava com isso?”

“Você está sendo fraco, impulsivo. Você está me traindo. Traindo nosso trato. Não faça isso. Será um erro. Uma estupidez de sua parte. E eu desapareço. Não tente mudar as regras. Volte ao seu lugar.”

Parei onde estava. Continuava olhando para a escuridão-ela. Um borrão, uma mancha. Nem mesmo algo próximo a uma silhueta.

“Não estamos lutando juntos. Você é livre. Faça o que bem entender. Não publique o que não quiser publicar. Não volte mais aqui, se não quiser.”

Fiquei completamente sem ação. Imobilizado. Meus olhos nublaram-se por conta própria, como se uma fumaça irreal preenchesse o ar à minha frente por algum tempo. Voltei ao meu lugar, acomodei-me sem alarde. Troquei os óculos. Segurei com as duas mãos a pasta cinza-clara cedida por meu pai, o que conferia a esse simples objeto, esse novo item participante de minhas ações clandestinas, um valor especial. Olhei para baixo, para a pasta e para o tampo da mesa, sua superfície toda. Soltei os elásticos devagar, tirei de dentro meu bloco de anotações e uns papéis. Já me sentia melhor. Não menos ansioso, porém mais sereno. O que corria em meu sangue nesse momento demandava minha “frieza de astronauta”. Minha sensatez, minha decisão. Eu tinha de me apegar a isso.

“Eu quero tudo”, falei a ela com voz calma, tentando imitar sua serenidade, sua objetividade, enquanto me preparava para escrever. “Quero tudo o que puder me passar. Não importam os riscos. Quero o fim de tantas mentiras. De tanta injustiça. De tantas misérias. Quero o fim desses abutres. Desses bandidos, desses vermes. Quero o mesmo que você. Quero vingança. Quero derrubar a República.”

Disse isso tudo sem alterar meu tom de voz. Senti que ela se orgulharia de mim por isso. Imaginava que sim.

“Vou lhe passar o suficiente. Se quiser continuar, terá o suficiente. Se não para derrubar a República, pelo menos para desferir-lhe um golpe duro. Cirúrgico e surpreendente. Como eles não esperam. Como eles não conheceram ainda.”

Contei a ela o meu plano. Publicaria, como havia feito com o tópico sobre a restauração do Estádio, um texto principal, focando nos pontos relevantes da trama toda, de maneira que o Ministério Público e a Polícia Federal pudessem contar com elementos consistentes, por onde começar. E que todos os leitores compreendessem facilmente.

“Tenho um blog pessoal, em que publico trechos, que acho significativos, de meus tópicos já publicados. Ou comentários sobre assuntos que que não fazem parte de meu trabalho. Eu não o uso muito. Vou agendar a publicação automática de outros textos que darão continuidade ao primeiro. Como uma coleção de artigos. Ou mesmo apenas uma sequência de informações, sem a necessidade de textos complementares. Imagens de documentos, registros. Deixo agendadas as publicações. No blog, não há limites de linhas ou de caracteres, como são as seções da Facto. Pensei em não apenas elencar informações, mas ter o cuidado de redigir textos claros, facilmente compreensíveis, até mesmo atraentes. Pode ser um por dia, ou por semana. Pensando melhor, nem isso: deixaria todos lá, disponíveis. Com certeza, os investigadores os encontrariam pelas redes, com palavras-chave apropriadas. Assim, acabarão se tornando públicas todas as informações que está me trazendo. Todas.”

O silêncio dela não pareceu muito entusiasmado. Enquanto isso, eu repensava, tentando identificar alguma bobagem ou ingenuidade no que havia acabado de expor.

“Acho uma boa ideia”, ela disse. “Mas você está pensando em tudo como um trabalho de rotina. Uma tarefa simples. Uma extensão de sua atividade jornalística. Não é. Depois da divulgação do artigo principal, não sabemos o que pode acontecer. Não subestime isso.”

 Mais uma vez, engoli à força a saliva, um pouco por constrangimento, por continuar tratando algo tão sério como uma simples exposição de textos informativos, um pouco porque não queria que ela, após tantos encontros, continuasse me vendo como um ingênuo incorrigível.

“Você pensa no Mundo Livre, na democracia, eu sei. Mas essa transparência tem um limite. E esse limite garante o que há de obscuro e sinistro por trás das aparências. Você sabe dos Desaparecimentos, não sabe?”

“Sei. Pouca coisa. Não oficialmente. Não pela imprensa, quero dizer.”

“Estamos vivendo tempos sombrios, senhor gentleman. Pense nisso. Pense nisso com atenção. Com cuidado. Nós nos apoiamos na ilusão bem construída de um Mundo Livre e do direito de expressão pleno. Mas há também um contrapeso muito forte, sempre em andamento.”

“As facs encomendadas, por exemplo…”

“Sim. Uma fase obscura de nossa história. Que parece clara. Que é assim justamente por parecer tranquila e transparente. Com a evolução da liberdade completa, formaram-se pilares de sustentação para proteger o invisível. Para proteger as ações escusas,  perniciosas, dos que possuem muito capital. Para proteger os interesses dos que administram o poder. E os nossos olhos não alcançam além de um horizonte delimitado. Nossos olhos se acostumaram à escuridão.”

Fiquei quieto, ouvindo. Ela parou aí.

“O que… você acha que vai acontecer? Digo, depois que denunciarmos toda a quadrilha…”

“Seus textos, como sugeriu, publicados em sua revista e em seu blog, serão o equivalente a um tapete de bombas. As facs não serão suficientes para atenuar o impacto que eles causarão. Os criminosos irão negar tudo, é previsível. Mas a pressão das mídias será muito grande. Porque não estamos falando de uma mera suspeita. Estamos entregando aos lobos a carne fresca do escândalo em grande escala. E como há muitos envolvidos, fica até difícil imaginar uma mera substituição de funções. Suplentes assumindo vagas, cargos preenchidos às pressas por partidários e aliados: nada disso será simples, porque muitos deles estão envolvidos. Cairão como as pedras de uma trilha de dominó. Cairão uns sobre os outros, desordenadamente.”

“Você acha que…”

“Esta nação de inocentes pode se tornar um lugar perigoso, senhor gentleman. Não subestime isso. Você continuará correndo riscos. Não se iluda.”

Fiquei quieto. Pensando em tudo.

“Ouviu com atenção o que eu disse?”

Fiz que sim, com um gesto lento de cabeça, aluno atento. Com a voz um pouco mais fraca, ela iniciou uma nova sequência de narrativas, nomes e números. Pela primeira vez, senti algum matiz de cansaço em sua voz.

“Vamos em frente. Anote aí…”

Saí de lá muito agitado, mas contido. Como se fosse, a qualquer momento, sofrer uma espécie de convulsão ou desmaio. Eu estava (quase com a sensação absurda de me utilizar de força física) fazendo girar a roda dentada de uma temível engrenagem, na escuridão. Juntando peças. Colando pontas. Trançando fios. Ajudando a confeccionar uma bomba.

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