Office in a Small City por Edward Hopper

Teus olhos na escuridão. 47

Uma aventura perigosa na clandestinidade.
O mapa de um escândalo.
Um segredo potencialmente devastad
or.

O elevador já era motivo de nossa admiração: rápido, completamente silencioso, preciso. Nem se poderia afirmar, por meio de nossa percepção corporal e de nossos sentidos físicos, se ele estava parado no térreo ou em movimento, rumo aos andares superiores desse edifício de 48 andares. E nós, de mãos dadas, contemplando tudo ali: os estreitos espelhos laterais, o teto refratário, os pontos de câmeras, os painéis sofisticados e concisos, com sinaizinhos vermelhos indicando uma espantosa velocidade, obra de uma engenharia da praticidade e da inteligência, que nos esmagava por dentro.

“Cleo, isso é tudo muito estranho.”

“Por quê?”

Eu imaginava alguma coisa que não saberia explicar direito, muito menos a ela: o pressentimento de estarmos sendo conduzidos a uma espécie de armadilha, ou algo assim, planejado para nos atrair, montado para nos observar.

“Porque o professor Vendime sempre foi muito requisitado. Não concederia assim uma entrevista a midcoms irrelevantes como nós.”

“Mas concedeu. Isso que importa.”

Para meu deslumbramento, o elevador abria as portas para a antessala do apartamento, um recorte que, por si só, seria uma excelente sala de estar, ocupado por cadeiras de vime, uma otomana, mesinha redonda com tampo de vidro e pés de ferro esmaltados em branco, margeadas por vasos de plantas, umas delicadas, outras gigantescas. Uma jovem uniformizada postava-se ali, à nossa frente, e nos cumprimentou tão logo demos um passo para fora daquela caixa de transporte. Conduzidos a uma sala maior, à sala de estar, apenas dobrando uma quina à direita, entre dois grandes vasos de cerâmica com vegetação pendente, plantas de sombra muito bem arranjadas, era como se deixássemos a cabine obscurecida de um vagão de trem rumo ao convés de um iate iluminado pelo dia oceânico, trocando a estreiteza elegante do primeiro ambiente pela amplitude elegante do segundo.

“Vou comunicar a dona Meridiana que vocês já chegaram. Com licença.”

Não nos ofereceu assento. Saiu de nossa vista com seu passo treinado, silencioso, inaudível, por conta de seus sapatos brancos, macios e flexíveis. Ficava entendido que isso cabia à anfitriã, chamada para entrar em seguida, como uma ação transcorre no palco de um teatro.

“Dona Meridiana?”, cochichou a Cleo.

“Sim, sim. O que tem isso?”

“Nada.”

Ela batia levemente a bolsa, que segurava com as duas mãos, na parte da frente das coxas, gesto delicado que se fazia acompanhar por uma leve oscilação de seu corpo. Os móveis finos, leves ou pesados, a disposição dos objetos decorativos, as obras de arte em forma de discretas esculturas, jarros, vasos, quadros emoldurados com filigranas imitando ouro, até mesmo a cor das paredes foram depois comentados, elogiados e criticados pela Cleo, entendida nesse tipo de coisa: ela achou que o conjunto não era coerente, não configurava homogeneidade quanto ao gosto dos habitantes. Segundo ela, alguns itens revelavam notável bom gosto, enquanto outros declinavam a um esforço artificial de enquadramento e a uma flagrante e lamentável pieguice. Janelas altas, permitindo que a claridade natural do dia atuasse como fonte de iluminação plena do ambiente, podendo ser controlada por cortinas de chintz amarelo. Eu entendia que devêssemos permanecer de pé até a chegada da tal dona anfitriã, mas já adivinhava que nos sentaríamos em duas cadeiras ante uma mesa de centro retangular, de tampo claro, que nos havia de separar de quem se sentasse na poltrona em frente, uma cadeira estofada, de espaldar alto, de um verde-bandeira desgastado, tratando-se da cor, não do tecido, tão bem conservado quanto o que revestia as nossas cadeiras. De qualquer forma, estávamos ali: admirados e submissos, retidos pela especial influência de um lugar sagrado.

A anfitriã apareceu, vinda de algum outro espaço nobre, e nos cumprimentou com um sorriso pequeno e controlado. Era a segunda esposa do professor Vendime. Mulher de origem aristocrática e muito bem adestrada quanto a regras de etiqueta, em geral. Nenhuma palavra, nenhum gesto, nenhum movimento envolvendo o ato de deslocar-se de um ponto a outro sobre os pés soavam aleatórios.

“Por favor, queiram sentar-se.” Apontou as duas cadeiras que já se haviam consolidado em minhas apostas. “O Heródoto vem em seguida. Já vou chamá-lo. Fiquem à vontade.”

Nós nos levantamos à chegada do professor Vendime, o que ele imediatamente conteve com modéstia e um gesto de mão. Auxiliado por dona Meridiana e apoiado em uma bengala, assentou-se devagar (não solenemente, mas com certa dificuldade), como resultado de dois ou três movimentos fracionados e irregulares, em seu trono tranquilo e ainda seu, por direito.

“Boa tarde, jovens.”

Não nos sentíamos ainda aptos a relaxar e assumir a descontração da normalidade: estávamos fascinados e como prostrados, no interior de um templo. Diante de um monstro. Uma lenda.

“Professor, é uma grande honra. Eu fui seu aluno na Federal de Cruzeiro do Norte.”

Ele me olhava fixo, cansado. Não sorriu uma única vez, em todo o tempo que estivemos lá. Mas não se mostrava antipático ou arrogante, apenas sua boca permanecia ligeiramente aberta e configurando uma curva para baixo, como se estivesse sempre em dúvida e prestes a dizer alguma coisa.

“Eu não lecionei no norte”, disse ele educadamente.

Sua esposa falou perto de seu ouvido, com carinho e paciência.

“Lecionou sim. Por seis anos, amor. Cruzeiro do Norte, cidade-satélite aqui da capital. Sua medalha de honra ao mérito, aquela com o cordão violeta, de que você tanto gosta, foi uma gentileza deles.”

“Ah… Sim? Que seja.”

Heródoto Vendime tinha 64 anos quando lecionou em meu curso, à minha turma, um ano antes de se aposentar e seguir país afora, ministrando palestras disputadíssimas, enquanto seu livro principal já era um clássico. Isso foi há onze anos: eu tinha 21, lembro-me perfeitamente. Portanto, agora, ele devia contar com 75, quando muito. Por isso, era impressionante sua decadência física. Parecia um ancião decrépito, o que não condizia com o homem dinâmico que eu conhecera, que se deslocava com agilidade pelo tablado à frente da sala de aula, que falava clara e energicamente, expondo, com notável racionalidade, seus pontos, suas teses, seus argumentos, o professor que subia e descia as escadarias da Cruzeiro do Norte, muitas vezes seguido por algum grupo de estudantes sorridentes e apaixonados.

“Podemos gravar nossa entrevista, professor?”

“Ahn? Ah! Sei.”

A Cleo ativou seu personal, certificando-se de que o recurso de gravação passava, a partir daí, a registrar as nossas vozes. Esticou o braço roliço, deixou o aparelho sobre a mesa de centro.

“Vou deixar vocês à vontade”, informou dona Meridiana. E saiu, passos de um felino adestrado, rumo a alguma outra divisão do extraordinário apartamento.

Soubemos depois que o professor Vendime não era mais tão requisitado como pensávamos – como eu pensava, pelo menos. Ao contrário: ele próprio reduzira gradativamente suas atividades e optara pelo isolamento. Não tinha mais contato com o mundo acadêmico, editorial ou midiático. Estava doente. Ninguém sabia o que era. Fato irônico, não havia sobre isso qualquer notícia real como também nenhuma facultativa. De alguma forma, ele conseguira sair de cena. Sorrateiramente. Magistralmente. Sem que seu afastamento fosse noticiado! Era algo em que eu pretendia e precisava pensar mais. Tentar compreender esse viés das mídias, que ele lograra, eu não sabia como, não imaginava como, driblar e anular completamente. Seu isolamento talvez tivesse começado a ganhar corpo cerca de uns quatro ou cinco anos antes, pelo que me lembrava, a julgar pelas notícias sobre suas viagens pelo interior do país, algumas ao exterior, e sobre suas palestras sempre muito aplaudidas. Na verdade, eu estava atônito. Ele não parecia ser o mesmo homem. E eu nunca dera atenção à falta de notícias sobre ele e sobre seu ostracismo autoinduzido.

“Professor, eu gostaria de começar perguntando o que o levou a escrever sua obra-prima, Subverdades e recondução das massas.”

“Ah! Sei. Lembro. Mas você agora está com um namorado novo, minha querida?”

“Como é?”, fez a Cleo bem-humorada, estreitando um pouco os olhos.

“Seu namorado, esse aí. Você não era casada, Isabel?”

 “É Cleo”, ela sorriu, tímida.

“Cleo? Cleo mesmo? Ah! Sei.”

Ela nem se virou para mim, buscando alguma cumplicidade. Seguiu firme com a entrevista, prevendo que teria de editar certos trechos da gravação.

“Queria saber como surgiu a ideia de escrever esse que viria a ser o seu trabalho mais importante, professor.”

Ele usava um terno cinzento, camisa branca, gravata preta, sapatos também pretos, estes primando pelo zelo de quem o teria lustrado impecavelmente, de maneira muito profissional. Parecia vestido para uma de suas aparições públicas. Mas nem isso era assim. Nos tempos mais ativos de sua celebridade, seus trajes eram discretamente descontraídos e de cores bem arranjadas. Rosto pálido, quase inexpressivo, pele seca, rugas suaves. Cabelos muito ralos, brancos, bem aparados, soltando pontas meio enroladinhas, muito discretas, por trás das orelhas. Parte de uns tufos minúsculos, no alto do crânio, parecia flutuar. Um homem em preto e branco. Um homem em tons de cinza. Eu estava quieto, inerte. Sem piscar. Horrorizado.

“O senhor viveu um tempo em que as facultativas eram ainda bem limitadas e também alvo de processos judiciais. Quando o senhor acha que isso mudou, fundamentalmente?”

“Ah, minha querida. Sei. Não houve um ponto de mudança, não houve um evento demarcatório. As pessoas trabalham muito, precisam se divertir.”

“Como? O senhor… poderia explicar melhor?”

“A vida comum, a vida diária, a nossa realidade, tudo isso é muito insuficiente, muito limitado e aborrecido, compreende? As pessoas precisam ir ao cinema, se divertir. Fazer fofocas, fazer escândalos. Ler notícias falsas…”

“Não existem mais salas de cinemas, professor.”

“Como?” Ele girava sutilmente a cabeça, alguma dificuldade de audição, e parecia compreender logo em seguida. “Ah, sim. Por certo.”

Eu observava agora que sua pele não era apenas seca, mas de uma palidez indefinida, declinando a cadavérica. No fundo, eu não queria acreditar no que via. Seus olhos, mesmo entre pálpebras estreitas, pareciam brilhar como num líquido. Passavam-me a impressão de que ele estava se apagando. De que seus olhos eram um último ponto que o sustentava, uma última defesa a se render, como no visor de algum aparelho antigo, ao fim de uma transmissão, quando a escuridão preenchia a tela e um pontinho luminoso ia se retraindo, até desaparecer.

“Mas o senhor considera, em seu livro, que isso ultrapassou a ideia de simples entretenimento…”

“Ahn? Isso. Aí começa outro capítulo.”

“E algum risco de a desinformação moldar a mentalidade das pessoas e a própria cultura de um povo.”

“Ah! Isso mesmo. Você deve se lembrar, Elizabeth: o mestre Tolstói já nos ensinava que a mentira é o único privilégio dos homens sobre os outros animais. Sabe por quê? Por causa de nossa criatividade, de nossa imaginação prodigiosa.”

Ele lidava com o óbvio. A frase era de Dostoiévski. Então, após uma sequência de perguntas, respondidas em parte com a repetição de obviedades, em parte confusamente, o professor Heródoto Vendime declarou:

“Às vezes, minha querida, a verdade também é necessária.”

Ficamos paralisados. Era por aí que tínhamos de nos enveredar. Ele devia reter pensamentos interessantes e filosóficos, sem a pretensão de se fazer filósofo, que poderiam nos impactar justamente em função de uma lógica aparentemente infantil.

“A verdade também é necessária”, continuou, “até mesmo com grande precisão, quando se trata de propósitos científicos, por exemplo. Para se calcular com exatidão a esfericidade da Terra (um ponto sempre polêmico, sabemos disso) ou a distância das galáxias. No mais, ela pode ser dispensada, em grande parte, compreende?”

A jovem uniformizada surgiu, silenciosa, trazendo uma bandeja com um baldinho de gelo, açucareiro, adoçante, uma jarra e copos prontos, com suco de lima para todos nós.

“Com licença.”

“Ah! Esse é o meu?”, prontificou-se o professor. “Sei.”

Peguei meu suco e, nesse momento, passei a esquadrinhar o teto alto, seguindo com os olhos o friso guilochê, avaliando a iluminação ambiente e o que mais fosse possível absorver, por curiosidade e inércia. À esquerda de onde se sentava o professor Vendime, via-se um trecho de parede ostentando inúmeros certificados e diplomas, molduras buscando alguma padronização. Virando a cabeça discretamente para a direita, divisei, em uma parede lateral, como projetada para comportá-la, uma tapeçaria rebuscada, na qual se mostravam entidades míticas e pássaros exóticos, vivendo calmos em uma floresta em tons de azul, com árvores que nunca existiram, nascidas de contos de fadas. Logo que acabou de tomar um primeiro gole de seu suco, o professor Heródoto pareceu apressar-se a dizer algo, como se de repente se animasse a dissertar sobre o conteúdo de seu conhecimento.

“Parte de nós vive cegamente”, disse ele num momento de lucidez estendida. “Muitos de nós não querem lidar com a verdade. Porque ela é cansativa, pouco atraente. Mentiras e calúnias são coisas antigas, minha querida. Wolsey, em menos de uma semana, destruiu a reputação de Anne Boleyn, e ela acabou decapitada por ordem de seu marido.”

Ele estava falando de Henrique VIII. Amostra mínima de sua vasta cultura.

“Ela não teve tempo de se defender…”, comentou a Cleo.

“Não, querida, não é só uma questão de tempo. Depois que alguém mancha a reputação de alguém, fica difícil restaurá-la, conservá-la intacta, torná-la ao estado original. Sementes de dúvida continuam flutuando, contaminando tudo, e sempre restará uma parcela de pessoas influenciáveis que sinceramente as retêm. É um golpe sujo. E às vezes mortal.”

“Sim. Já vimos escolas fecharem por causa de boatos infundados, que levaram à ruína de seus proprietários.”

“Por certo. Recentemente, pelo que vi através das mídias, uma facultativa teve grande repercussão ao denunciar fraudes nas obras de restauração do Estádio… do Estádio…”, esqueceu-se do nome. Em meu silêncio, eu me dizia, como se lesse um verbete enciclopédico: “O Romualdo Século é o estádio mais conhecido do país: um ícone monumental da arquitetura e do esporte nacionais.”.

“Perdão, professor: aquela matéria que denunciava a fraude na reconstrução do Estádio não era uma facultativa”, a Cleo esclareceu.

“Ah, não? Como não? Sei. Bom. Que seja. Na verdade, isso não importa.”

Não importa?!, pensei. Como não importa? Não importa saber se uma denúncia é real ou não? Bebi um pouco mais de suco. Minha boca estava seca. Minha garganta também, embora eu não houvesse dito uma única palavra nos últimos muitos e muitos minutos. Eu secava rapidamente.

Em seguida, a Cleo perguntou se ele havia notado um crescimento acelerado das facultativas no atual governo e pediu que comentasse o avanço menos gradual e menos perceptível das facs na última fase do presidencialismo.

“O De Generis já estava consciente disso”, declarou o professor Heródoto depois de um gole em seu suco e um ah! um pouco estendido, de prazer. “Não foi propriamente um incentivador das facs, ele não se importava muito com isso. Mas já dava sinais de que era um entusiasta dos novos tempos.”

Por uma coincidência irônica, o último presidente constituído de nossa história, antes que se estabelecesse o parlamentarismo, fora diagnosticado, nos últimos meses de seu mandato, com uma espécie de demência associada a um grau de amnésia grave, tendo sido substituído pelo vice, que cumpriu oficialmente suas atribuições até que um novo governo assumisse. Magro, rosto escaveirado, bigode branco como nos tempos dos homens virtuosos que posavam para retratos, sua calva se estendia quase até a nuca, onde os cabelos brancos, finos e lisos, que nasciam ao norte de suas orelhas grandes e verticais e desciam ao sul da região cervical, flutuavam com pontas soltas que nem tocavam seu pescoço. Uma carreira política controversa e beirando o ridículo. E era dele a frase que prenunciava a ascensão da democracia plena: “Diga o que quiser. Acredite quem quiser.”. Liberdade total. Conquistas da nova era. Diga o que quiser… passava a ser o mantra do Mundo Livre, em nosso país. Em suma, liberdade de expressão extrema, como nunca antes. Até mesmo os neonazistas perderam força, de tanto que se expunham e de tanto que pregavam, entusiasmados, seus ideais – tão conhecidos por todos, tão desgastados, pouco interessantes, obsoletos, antiquados, anacrônicos.

A figura caricata e decrépita do presidente De Generis era a própria ilustração do fim de um período geológico da velha política: olhos miúdos, diagnosticado com um princípio de demência que talvez caracterizasse o Alzheimer, uma última figura pública encarnando o ocaso de uma longa sequência de presidentes, quase um espectro de si mesmo, no limite da obsolescência. Mas, de alguma forma, quase heroicamente, ele nos havia legado as bases dessa liberdade total, retomada e aperfeiçoada pelo governo seguinte, consignada como um trunfo do parlamentarismo, do qual o jovial primeiro-ministro Luiz Castello de Castro era agora a principal referência. A cara da nova era.

De Generis morreu pouco tempo depois do final de seu mandato, que não completou oficialmente, em uma clínica psiquiátrica de alto padrão – segundo parentes próximos, sem saber quem era, sem consciência do país em que estava vivendo. E morrendo.

Luiz Castello de Castro tinha pouco mais de 50 anos quando venceu as eleições e assumiu seu primeiro mandato. Um homem digno de atenção. Formação de atleta, fora medalhista na natação, quando jovem. Os ternos de qualidade que usava revelavam seu físico bem cuidado, seu porte elegante. Inteiramente calvo, rosto anguloso e másculo, sorriso agradável e na medida certa, e isso quer dizer que expunha um sorriso lindo em certas ocasiões, associado a uma risada, outro discreto e não menos contagiante em outras. De uma inteligência notável, carismático e com visível capacidade de liderança, ele contrastava, quase como num jogo de caricaturas, com o presidente afastado, idoso, intelectualmente limitado, administrador medíocre que há tempos conduzia a política do país com apatia e má vontade.

Depois de outra rodada de perguntas, ao final de uma dessas respostas longas e explicativas, quase perdidas, em um momento ou outro, para a evasão argumentativa, para o desvio flagrante, ele concluiu:

“… e agora, esse tempo seco, essa longa estiagem, veja bem. Nunca aconteceu isso antes, minha querida. As coisas estão sempre mudando.”

Saí de lá abatido. A Cleo também ia meio quieta, mas não tão impressionada quanto eu. (Talvez por não tê-lo conhecido antes.)

Lá fora, em frente à entrada do edifício, acendi um cigarro e fiquei observando as pessoas, o tipo de residências e pequenos comércios próximos. Tudo ali era limpo, fresco e verde: passeios arborizados, canteiros esteticamente planejados. Uma jovem em traje de ginástica, tênis pretos, calça de moletom também preta, justa, revelando a forma de suas pernas bonitas e vigorosas, casaco azul-marinho com capuz – a única parte que estranhei, porque não estava tão frio nesse dia –, estava encostada a uma parede, na calçada em frente, concentrada em seu personal. Vi que seu rosto era estreito, de pele muito clara; seu nariz, afilado e pontudo; que ela passava por uma mulher bonita, tanto quanto eu conseguia defini-la da distância em que me encontrava.

“Marco, eu sei o que você deve estar pensando. Fala comigo.”

Soltei uma porção de fumaça, girei meus olhos para os dois lados da rua, como se quisesse alcançar toda a perspectiva que nos confinava ali.

“Como ele conseguiu isso?”

“Isso o quê?”

“Ele simplesmente desapareceu das mídias. Nós todos nos esquecemos dele. Em nossa memória acomodada, ele estaria por aí, por toda parte, dando entrevistas, palestras, falando de seu livro e de tudo no mundo.”

A Cleo sempre se afastava um pouco de mim quando eu acendia um cigarro. Ficou dois ou três passos distante, sem me olhar, bolsa a tiracolo, imitando minha atitude displicente de ficar observando tudo ao redor.

“Isso foi realmente uma jogada de mestre”, ela disse, seguindo com os olhos um veículo terrestre que passava, uma van branca, de vidros escuros. “Deve ter sido assessorado. Algum especialista. Não sei…”

“E ele está doente. Envelhecido. Confuso, além do normal. Você não imagina como ele era ativo, articulado, vivo, quando lecionava na Cruzeiro do Norte.”

“Isso impressionou você, eu vi.”

“Sim. Mas, à parte isso, sua decadência física e mental deve ter sido muito rápida. Muito vertiginosa. Ele parecia um ancião debilitado. Um patriarca longevo.”

“Ele tem 76 anos. Olhei na EncicloNova. Nasceu em 1972.”

Fiquei fumando e olhando qualquer coisa enquanto pensava. A garota com roupas de ginástica era a única pessoa que ainda estava lá. Porque havia pouca gente na rua, e quem passava por ali apenas passava, sem pressa, ou transitava, entrando e saindo, entre os condomínios próximos. Nesses bairros finos, é comum que haja pouca gente à vista.

“Vamos cumprir o que prometemos à esposa dele?”

“Claro que sim. Dei minha palavra a ela.”

A Cleo havia dado sua palavra. Sua palavra! Valendo um tratado assinado. Selo de confiança. Eu também havia prometido algo à minha informante, que não pôde, tanto quanto eu mesmo, confiar na minha palavra. Um aero passou por ali, voando muito baixo, e isso quase nos assustou.

Apaguei o cigarro. “Vamos embora, Cleo. Preciso… Preciso pensar mais sobre isso tudo, preciso…”

Ela se aproximou, encostou o rosto em meu peito. “Não precisa não. Relaxe um pouco. Foi uma grande coisa a gente ter vindo aqui, ter visto o Vendime, ter falado com ele. Foi uma grande coisa.”

Seguimos abraçados, cúmplices e carregando um segredo, até a estação Monteiro Infante do metrô.

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