Office in a Small City por Edward Hopper

Teus olhos na escuridão. 50

Uma aventura perigosa na clandestinidade.
O mapa de um escândalo.
Um segredo potencialmente devastad
or.

Dormi no apartamento da Cleo na primeira noite após minha longa viagem de volta. Foi bom ter sua companhia, seu apoio, sua solidariedade. Mas, sendo muito sincero, eu não queria estender isso além de um único dia. Minha mente se atropelava entre mil ideias, tentava discernir prioridades. Na próxima segunda-terça, no Café Silene, eu tinha outro encontro pontual e talvez rico em surpresas. Sabia que estava sendo monitorado de alguma forma, sendo seguido nas ruas. Meu namoro com a Cleo passava oculto aos olhos de nossos colegas. A entrevista com o professor Heródoto Vendime era agora um segredo nosso. Meus registros sobre o grande escândalo de corrupção silencioso se acumulavam, meus segredos se acumulavam, minha ansiedade se acumulava. Em algum momento, uma coisa e outra haveriam de sair das sombras, ganhar a atenção de alguém, contaminar o mundo.

Estava pensando nisso quando fui para casa nessa noite. Carregando comigo decisões e indecisões. Cuidados e silêncios. Concentrado, associando ideias, disperso quando tudo parecia se encaminhar para algo acima de minhas forças. No caminho da saída do metrô para o prédio onde eu morava, um sujeito grandalhão me esbarrou com força, quase me derrubando. Acabei arremessado contra a mureta mais próxima, de um cercado em obras, e não cheguei a cair. Foi muito repentino: eu não o percebera senão no último instante, quando já sentia a pancada. Por pouco não gritei que esperasse, parasse. Não valia a pena. Conferi meus bolsos, meu personal, chaves, cigarros: parecia estar tudo em ordem. Meu mecanismo interior, que mantinha em forma minhas desconfianças, induzia-me a pensar que aquele esbarrão, forte e direcionado, não acompanhado por um pedido de desculpas, havia sido intencional. Cheguei a ativar o personal para ter certeza de que o aparelho todo não havia sido substituído, com algum habilidoso golpe de ilusionismo. Eu estava apenas a duas quadras de casa. Guardei o personal no bolso, ergui a cabeça e já ia seguir em frente quando vi, sem que procurasse muito, uma jovem vestida com roupa de ginástica, calça moletom, tênis azul-escuros, casaco com capuz: se não estava imaginando coisas, ela se parecia muito com a garota que eu vira em frente ao edifício onde morava o professor Vendime. Parada ali, olhando alguma coisa em seu personal, digitando sem pressa. Disfarcei e fui me aproximando dela, cabeça baixa, fingindo deslocar-me ao acaso. Era ela mesma, com seu nariz afilado, pele de uma palidez chamativa, seu rosto singular. Minha pulsação acelerou-se. Mantive a calma enquanto planejava, no instante seguinte, abordá-la com o pretexto de conseguir uma informação qualquer.

“Moça…”

Sem tirar os olhos de seu personal, ela iniciou um movimento, seguiu andando a passos rápidos e ritmados, próprios de quem pratica caminhadas e corridas. Seus pontos auditivos poderiam servir para justificar a resposta de que não teria ouvido o que eu dizia. Mas ela devia ter me visto, com certeza teria percebido minha aproximação.

“Moça!”, gritei.

Agora ela corria. E eu passei a persegui-la com toda vontade, tentando não esbarrar nas pessoas, algo com que ela não parecia se importar, enquanto fazia curvas e dobrava esquinas com grande agilidade. E eu, como um predador obstinado, redobrava meu fôlego, para não perdê-la de vista. Não me sentia fora de forma nem estava acima do peso, mas ela realmente se revelava muito bem treinada, e minha perseguição quase cinematográfica durou pouco. Eu a perdi de vista. Ela simplesmente desapareceu.

Ofegante, suado, olhei ao redor, sem chances de tornar a identificá-la por ali. Era e mesma que eu vira antes, tinha certeza. No bairro nobre onde residia o professor Vendime, tão distante do meu. Minha respiração foi voltando ao normal. Decidi que não contaria nada disso à Cleo. Ela já andava estranhando minhas atitudes, e certamente diria que esse teria sido outro de meus surtos de exagero paranoico.

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