Office in a Small City por Edward Hopper

Teus olhos na escuridão. 51

Uma aventura perigosa na clandestinidade.
O mapa de um escândalo.
Um segredo potencialmente devastad
or.

“Eu já comentei com você que estou sendo seguido”, falei, olhando à frente, esquadrinhando viciosamente todas as garrafas e seus rótulos, na grande estante de vidro ao fundo do balcão. Nem me lembrei de lhe passar os cigarros, como sempre fazia. “Pensei que estivesse sugestionado, exagerando um pouco. Mas, dessa vez, tive certeza disso.”

A escuridão, à minha esquerda, que eu nem me atrevia a encarar, por acaso contrastava com o brilho anêmico das garrafas de vidro, por trás de proteções de vidro, sob aquela única luz fraca que parecia alimentar meu tédio, enquanto meus olhos deslizavam de um rótulo a outro, sem enxergar os nomes das bebidas, mas identificando cores e formas.

“Como pode ter certeza? Alguma alteração no seu personal?”

“Não. Uma mulher com roupa de ginástica, que eu tinha visto duas semanas antes, em um bairro distante do meu, tornou a aparecer, quase na minha cara, sem disfarçar muito. Era a mesma pessoa! Até que eu me aproximei dela para perguntar alguma coisa, pedir uma informação, por exemplo, e ela… saiu correndo, como se tivesse sido flagrada. E desapareceu nas quadras seguintes.”

Minha comparsa, com a calma de sempre. Nenhum fio de fumaça partiu de seu bunker improvisado.

“Você já deveria estar prevendo isso.”

Deveria sim, porque, a bem da verdade, ela já havia me alertado sobre riscos, que eu não visualizava concretamente, que moldavam uma noção disforme entre minhas suposições.

“E você? Sente ou percebe que está sendo seguida também? Por algum estranho? Em algum momento, que seja?”

“Não. Não estou.”

Fiquei quieto. Suas respostas costumavam ser definitivas.

“Esse tipo de vigilância, à moda antiga, ainda é recomendada. Quem tem algo a esconder, evita os meios eletrônicos: podem-se distinguir seus contatos com facilidade.”

Quando ela falava, tudo se tornava claro e simples. O que, para mim, podia ser visto como elemento de alguma comédia de espionagem do século 20 ainda funcionava de maneira consistente, logrando resultados práticos.

“Outra coisa. Quando estou aqui, meu personal revela que estou aqui. Certo?”

“Há muito tempo é assim.”

“Portanto… agora mesmo posso estar sendo observado. Digo, quando eu sair daqui…”

“Sim.”

“E o mesmo vale para o seu personal, não é? Alguém sabe que você está aqui. Não sabe?”

“Meu personal está em outro lugar. Com uma pessoa de confiança. Eu nunca o trouxe comigo, nesses nossos encontros.”

A cada explicação dela, eu me surpreendia como um menino bobo. Mas claro: como ela não teria pensado nisso? Como se deixaria flagrar por conta de um dispositivo eletrônico, um artefato tão corriqueiro? Por isso, também, ela não poderia chamar um aero. Nem mesmo um veículo terrestre, um Landwagen, que hoje é menos comum. Como ela iria embora da cafeteria? Pensei em me esconder ali por perto e observar. Já tinha isso como uma ideia nova, súbita e fixa. Lembrar de me esconder. Emboscá-la. Talvez segui-la, indefinidamente.  Até aonde fosse. Sem que ela soubesse. Seria maravilhoso.

“Enquanto nada acontecia, enquanto você não divulgava nada comprometedor, até um dia antes de você publicar, em sua revista, o artigo-denúncia sobre o Estádio, não havia motivo algum para sermos observados.”

Era verdade. Fazia sentido.

“Sim, mas agora…”

“Agora, como eu o preveni, você, provavelmente, quase certamente, deve estar sob vigilância.”

“Entendi”, murmurei, quase tremendo.

“Observe cada detalhe, no lugar onde mora. Se alguém não invadiu sua casa. Não mexeu em nada. Se o recepcionista do prédio não lhe disse algo diferente do normal, se não tentou criar uma conversa sem motivo aparente…”

Isso me arrepiou. Se esse tipo de intrusão estivesse de fato ocorrendo, eu não tinha percebido nada ainda. Um agente treinado poderia mexer no que bem entendesse, em qualquer parte de meu apartamento, sem deixar vestígios, sem tirar um mínimo objeto de lugar, sem fazer cair um grão de sal.

“Voltando ao personal. Quer dizer que você o deixa em casa, vem até aqui sem ele?”

“Não. Deixo com uma pessoa de confiança, já disse.”

Sim. Portanto, ela poderia pegá-lo de volta e se deslocar normalmente. Eu ficava encaixando as peças, contente por saber um pouco mais sobre ela, sempre um pouco mais, apesar dos descaminhos angustiantes gerados por todas as suas evasivas. Ela bem poderia frequentar aquelas mesas durante o dia. Uma freguesa como outras. Cappuccino, pão de queijo, torta holandesa… Talvez lendo um livro.

“O ministro do Turismo é só uma marionete”, ela me esclarecia. “Foi instruído a delegar ao secretário a organização disso tudo. Há mais dois sujeitos importantes aí: o ministro da Infraestrutura e o bispo da Igreja Jesus de Todos. Eles devem ter estendido os tentáculos da rotina do dinheiro também, porque entrou muita gente do estado e do município, no caso. Com isso, o governo federal não podia controlar a organização diretamente.”

“Entendi. Mas quem assessorava quem?”

“Não era assim. Eles tinham que dividir responsabilidades. O bispo foi parte importante nisso. Ele e seu filho desviaram muitos milhões. Observe que a igreja dele, de um ano para o outro, deu um salto significativo em termos de patrimônio, em termos de suas finanças.”

(Esse mesmo bispo, após a divulgação do escândalo, fez um pronunciamento duro e em tom ameaçador, repudiando energicamente as leviandades da imprensa. Por pouco, não nos amaldiçoou a todos, o que, na prática, não mudaria nada, como também não ajudaria a melhorar as coisas para ele.)

Ela discorria sobre a personalidade de alguns deles, sempre no mesmo tom de voz.

“Um populista fajuto, à moda antiga. Como nos tempos do presidencialismo. Apesar de tudo que aparenta, eu o acho um fracassado. Um homem raso, sem talento. Era um dos últimos a receber a gatinha.”

“Sobre essa gíria deles, gatinha… Seria um código, envolvendo a figura de um gato?”

“Não. Já ouvi gaitinha. Talvez tenha origem em gorjetinha. Não sei.”

Em outra fase da conversa, ela tornou a falar sobre seu envolvimento com o De Castro.

“Participei ativamente de sua campanha eleitoral para o segundo mandato. Fui um de seus braços direitos. Lutei por ele. Agora, quero acabar com essa máfia toda. Levar esse canalha à cadeia. Arruiná-lo, definitivamente.”

“E ele a manteve no cargo, mesmo depois de…”

“Sim. Talvez ainda lhe restasse alguma consideração por mim. Ou apenas queria continuar contando com a minha eficiência. Foi um grande erro. Talvez o maior de sua carreira política. De sua vida mesmo. Só que ele ainda não sabe disso.”

“Não se deve deixar um aliado ferido na estrada, dizem.”

“Sim. E ele me manteve no cargo, talvez pensando nisso. Com algumas restrições. Eu não podia mais ter acesso a certas planilhas e recibos. Mas já estava ferida. De certa forma, eu havia me tornado um problema. Que ele administraria fácil. Só que o desfecho que ele preparou para mim foi muito humilhante. Muito mesmo. Agora é tarde. Ele não faz ideia do que eu estou lhe preparando. E a todo o seu séquito de criminosos.”

Expliquei a ela que pretendia fazer algo parecido com a publicação do tópico sobre a reforma do Estádio: um texto principal, com a máxima condensação dos pontos mais significativos para se compreender o funcionamento do esquema todo, como naquelas atividades lúdicas de revistinhas infantis, em que se propõe ligar os pontos para formar um desenho, em que se liga um ponto a outro e, ao final, visualiza-se, por exemplo, uma girafa ou um dinossauro.

“O mais das informações deixarei agendado em meu blog particular, de forma que todo o material fique disponível publicamente, logo em seguida. Pensei em chamar o tópico ‘Das influências escusas’. Já tenho uma boa parte rascunhada. Acho que vai gostar.”

Um silêncio tranquilo. Imaginei que ela estivesse sorrindo quando disse: “Me jogue um cigarro, cavalheiro. Esqueci de pedir.”.

Isso sempre significava, propriamente, jogar-lhe um maço de cigarros. Eu tinha me esquecido de lhe oferecer. Peguei do bolso, joguei o maço em sua direção, à altura imaginada de seu peito, de suas mãos, descrevendo uma curva suave para cima.

“Qual você me trouxe hoje?”

“Trouxe o Concert.”

Ela rasgou o lacre, acendeu um cigarro. Já era tarde. Soprou uma mancha de fumaça quase esférica; pareceu-me ouvi-la suspirar de prazer. Senti que estava na hora de ela anunciar que interrompêssemos a conversa, para continuá-la na semana seguinte, como vinha sendo e acontecendo. Porém, fui surpreendido por uma declaração muito simples.

“Era isso o que eu tinha. Não tenho mais o que lhe passar.”

Fiquei inerte, lábios um pouco descolados. Não previa essa conclusão abrupta, concisa, embora razoável. Sim, já era muito o que eu tinha. Muito mesmo. Apenas imaginei, como enganado por algum comodismo mental, que ela sempre tivesse algo mais a me contar.

“Então… Não vamos nos encontrar na semana que vem?”

“Não.”

“Posso vir aqui sozinho, no mesmo horário, e ficar pensando em você. Em tudo o que me proporcionou. Acredite, sou capaz disso.”

“Não venha mais. Não volte mais. Na semana que vem, este lugar estará todo às escuras. E a porta da frente, eletronicamente bloqueada.”

Teria sido esse um último lance de minha incapacidade de antecipar o óbvio. Eu não era assim sempre. Isso só me acontecia sob influência de algo ou alguém fascinante, como se um poder magnético ou gravitacional causasse distúrbios à minha passagem.

“O que vai fazer? O que vai acontecer com você?”

“Preciso apenas que me garanta que não publicará seu texto até a semana que vem. Só depois do próximo sábado.”

“Sim. Como quiser. Combinado. Mas por que isso?”

“Vou sair em férias. Nos próximos três ou quatro dias, no máximo. Viagem agendada. Para outro país. Para não voltar.”

Fiquei quase triste com esse lance inesperado.

“Sério? Você disse que não participava diretamente dos esquemas, que não ficou com nenhum dinheiro. Que não ganhava nada com isso…”

“Disse. É verdade. Mas é claro que os agentes do governo irão descobrir a minha identidade. É só uma questão de tempo. O próprio De Castro perceberá rapidamente de quem terão partido os disparos. Não será preciso investigar muito. Ele saberá que fui eu. Eu nem seria julgada. Seria sequestrada. Meu corpo seria picado em pedaços. Tribunal ilegítimo. Sentença clandestina. Código de honra entre ladrões. Alta traição.”

Quase lhe perguntei sobre mim, sobre o que deveria fazer. Mas não, eu não era um pré-jovem. Não era um recém-formado, um novato. Tinha de me cuidar, após toda essa empreitada. E ver as coisas por um novo ângulo. De que me serviria ter ouvido dela algo como: “Cuide-se.” – pois era isso mesmo o que eu tinha de fazer.

“Não pensei nisso. Nos riscos que enfrentarei depois de publicar um texto com essas denúncias todas. Nem mesmo quanto ao anterior, sobre o Estádio.”

“Deveria ter pensado.”

“E você, não pensou em me oferecer um plano, uma saída? O mapa de um bunker, uma rota de fuga? Uma ajuda para me livrar de possíveis consequências?”

“Não. Você está nisso porque quer. Entrou nisso porque quis. Não posso lhe oferecer nada.”

Fiquei parado, pensativo. Então lancei, como um torpedo, uma frase breve e decisiva sobre o desfecho de todo o processo.

“Uma opção seria eu não publicar nada.”

Achei que ela fosse reagir, indignada, considerando essa possibilidade, depois de ter me passado tantas e ricas informações, ao longo de muitas semanas. Mas ela conservou sua neutralidade habitual.

“Você é livre.”

Não publicar. Talvez guardar o dossiê para o futuro. Ou enviar anonimamente a algum outro midcom. Seguir minha vida como antes. Sem nenhum problema quanto a isso. Uma fumacinha leve soltou-se da escuridão. Ela não demonstrou nenhuma decepção, nenhuma preocupação com a possibilidade de eu arquivar o dossiê e não revelar nada a ninguém. Já tinha vivido seu momento catártico. Foi firme e coerente em suas convicções, até o último dia, até ouvir de mim a possível decisão de renunciar ao risco.

“Então… Você vai mesmo desaparecer?”

“Já arranjei tudo. Vou viver em uma cidade no campo. Documentos falsos. Uma amiga me espera.”

“Pode, pelo menos, me dizer se é algum país do Mundo Livre?”

Nem eu imaginava que alguém pudesse desejar viver em um dos dois países lacrados por regimes autoritários que ainda existiam no mundo.

“Pode apostar.”

“Bem, isso elimina o Califado do Poente e a Republica Popular de Nosotros”, concluí, em tom mais leve, procurando não me entristecer muito. “Sobram 256 nações a serem investigadas. Alguma chance de me contar depois? Anos depois, talvez? E me oferecer pousada quando eu sair de férias?”

Ela pareceu sorrir, pelo tom de voz que me chegava.

“Não. Certas coisas devem ficar para trás. Devem ser esquecidas. Sair de cena. Para sempre.”

Eu me sentia exausto. Mas grato a ela por tudo. Não imaginei que pudesse me envolver assim, de maneira tão pessoal, em algo tão grande e tão perigoso, algo que, em um mundo realmente livre, seria um grande lance de sorte, um trunfo inestimável, o divisor de águas na carreira de um jornalista midcom.

“Estou me sentindo melhor”, ela disse. “Exagerando um pouco, eu poderia até mesmo morrer em paz.”

Pareceu-me a primeira vez que ela teria declarado algo assim, por conta própria, algo pessoal e tocando o sentimentalismo. Acendi um cigarro também.

“Já que chegamos até aqui”, falei, recostando-me um pouco mais, simulando relaxar, “o que me impede de investigar mais sobre você? De tentar saber quem você é, em que país vai se exilar… Afinal, eu sou livre.”

“Não perca tempo com isso. Não pense mais em mim. Pense apenas no que eu lhe proporcionei. E em como será a história de nosso país daqui em diante.”

Era pedir muito à minha curiosidade. Mas entendi que seria inútil continuar essa investigação mal orientada. Em pouco tempo, o governo saberia sobre ela, sobre o que teria feito, eu só não podia contar com a sorte de que divulgassem tal informação.

“E se eu for pego, detido, interrogado… Por que não contaria tudo, incluindo você e este lugar, nessa história toda? Por que eu não faria isso?”

Um último fio de fumaça branca, de seu Concert, flutuou até mim.

“Para agradar a uma dama.”

Foi a última vez que nos falamos. A última vez que eu não a vi. Pronto para partir, agradeci por tudo e lhe disse adeus. Foi a última coisa que eu lhe disse. E a última coisa que ela deixou de responder. Ciente de que, na semana seguinte, aquela mesma porta de vidro translúcido estaria trancada e de que não haveria ninguém lá dentro, me esperando na escuridão, decidi não voltar para conferir isso. Não voltei mais ao Café Silene. Não naquele horário escurecido, quase imergindo em um sonho.

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