Office in a Small City por Edward Hopper

Guia de mistérios urbanos

Que fenômenos são esses? E por que se ocultam em meio ao caos das grandes cidades?
Talvez, como nas bibliotecas, a milhares de páginas significativas faltem ainda a faísca de uma necessidade ou de uma teimosia que as desperte.

“[…] o universo é comparável a essas criptografias nas quais não valem todos os símbolos e só é verdade o que sucede cada trezentas noites.”

                 – Jorge Luis Borges, Tlön, Uqbar, Orbis Tertius

Devo a inexistência de Paineira Branca, bem como a descoberta de realidades extraviadas ou mal pressentidas, a uma fita cassete notadamente ordinária, contendo apenas ruídos contínuos que de longe remetiam aos sons primordiais do universo, captados por Penzias e Wilson em sua experiência de resultados desconcertantes.

Quando vim para cá, eu também estava enganado. A máscara de concreto e movimento que faz a cidade real esconde, entre os dias mais límpidos, o que passo a relatar e do que somente dou uns poucos casos que me chegaram às mãos por golpes de sorte, e estão anotados, na íntegra de seu horror, em um caderno clandestino que mantenho a salvo do alcance dos adultos.

A flor escura e irreal, o título cabalístico que me tentaram a levá-la (falo da fita cassete) pouco ou nada revelavam acerca da chuva de chiados intermináveis que eu ouvia. À parte as infatigáveis tentativas de vanguarda, que excitam nossos contemporâneos, em geral mais extravagantes que talentosos, irritei-me com a persistência de ruídos que eram toda a música. O vendedor não encontrou o produto em nenhum de seus catálogos, e recusou-se a trocá-lo. Ninguém conhecia o trabalho ou os músicos, acrescendo-se que não constava da capa o nome da gravadora, o que eu não havia notado. O endereço do distribuidor dava-se por letras microscópicas:

Av. dos Exploradores, 554 – Paineira Branca – Capital

Antes de atirar a fita ao lixo, decidi escrever à distribuidora, para isso recorrendo ao guia postal, na falta do código de endereçamento. O bairro não constava da lista, e isso me confundiu. Com o mesmo nome, eu o confirmei no mapa da cidade, dessa vez não encontrando a rua, que também não constava da classificação alfabética. Amigos arriscaram que o bairro talvez tivesse o nome mudado, embora não recordassem ter ouvido alguma vez sobre ele, o que aguçou ainda mais minha perniciosa curiosidade. Tantas falhas nos catálogos e uma fita quase abstrata tornavam-se incômodas quando precipitadas de uma só vez em meu cotidiano.

No sábado, tomei um ônibus para a confluência de certa avenida com a praça triangular que, de acordo com o mapa, demarcava Paineira Branca pelo lado sul. Mas o bairro que se abria desse ponto em diante era nada menos que o bairro seguinte, o que deveria tocá-lo ao norte. Com isso, ficava claro para mim que Paineira Branca não existia. Porém, os mapas de que eu dispunha atestavam os quase oitocentos metros do bairro a partir do triângulo. E ali estava: PAINEIRA BRANCA. Fechei e abri os olhos. O que estava acontecendo?

O que só hoje sei. Paineira Branca é uma região fantasma, embora integre de alguma forma a geografia urbana. Não existe, mas há pessoas morando lá. Aristides Leão Miqueias, por exemplo, é um discreto morador de Paineira Branca, e seu endereço foi descoberto na seção de crediário de uma grande loja. O caminhão de fato entregou sua mercadoria. Mas nem os carregadores nem o motorista sabiam dizer ao certo a localização de sua casa, pois muitas compras foram entregues nesse dia. Nenhum deles se lembrava de haver presenciado qualquer anormalidade no trajeto, o que não tornava o caso menos estranho nem mais.

Em meio às minhas especulações, soube que, num autoposto do Jardim Afonso, uma senhora abasteceu o carro pagando com um cheque da agência Paineira Branca. O cheque era emitido contra o Banco do Estado. Um de seus departamentos enviou mensagem via telex pedindo confirmação sobre a agência (que até então nenhum funcionário havia observado na relação de unidades) e recebeu de volta a seguinte resposta:

ALF K7
1118347 + BET
GA

ALF PP
1118242 * BR
RF 2407. 1960

20.05.1985 RP/SP PAINEIRA BRANCA/DEP INV

AGÊNCIA ATIVIDADE NORMAL. NÃO COMPREENDIDO MOTIVO SOLICITAÇÃO.  CASO DÚVIDAS FAVOR CONSULTAR RELAÇÃO AGÊNCIAS/CÓDIGO MALOTE ONDE CONSTAM DADOS NECESSÁRIOS.

SP.RP
1118242
1118347
LIT.GMU.PP

Não constavam.

Aos poucos, fui coletando mais desses enigmas inusitados e constatei sua (ir)realidade em maior número do que imaginava, assim desafiando as ideias feitas e os pensamentos classificados.

No rótulo de um vidro de geleia, há o endereço da fábrica: Av. Maestro Grunewald Prokahas. Embora não se situe em Paineira Branca, essa avenida não foi jamais encontrada. Uma vizinha, de quem ouvi a história, escreveu à fábrica pedindo confirmação do endereço. Dois dias depois, obtivera uma resposta lacônica: o próprio endereço do remetente, impresso à margem de um envelope comercial vazio, deveria bastar para dissipar-lhe as dúvidas. Mas, em vez disso, consolidava o fantástico.

Outros mais:

– no edifício do Ministério da Justiça, há um pavimento a que nunca se tem acesso, e por isso ninguém sabe se ele existe ou não;

– na Rua dos Indigentes, a casa de número 231 não pode ser encontrada durante o dia, mas só ao cair da noite, quando o morador retorna do trabalho. De acordo com a lista telefônica e alguns serviços de crediário, esse obscuro cidadão, que toda noite traz as chaves da porta da frente, é o sr. Rufino de Andrade Soares, mas como ele também nunca foi visto por alguém, não há provas de sua existência real. A casa 231, dizem, só existe vinculada a ele e como uma projeção de sua obstinada crença;

– a 8a edição de um livro sobre as grandes fraudes nacionais foi acrescida de processos recentes, com isso remontando o volume às mais de setecentas páginas cuja impressão ficou a cargo da Gráfica Nove Irmãos, conforme logotipo ao final do texto. A gráfica também é uma fraude. A questão de incluí-la entre as outras no mesmo livro mantém uma polêmica infinita e finalmente parece ter tornado sua publicação impossível;

– no Centro Velho, há um edifício ao qual falta o sétimo andar, embora três escritórios funcionem nesse pavimento e embora uma jovem tenha se suicidado saltando por uma de suas janelas. Uma testemunha contou que ela era uma espécie de ninfa;

– como Paineira Branca, existe outro bairro, chamado Vila Melusina, ou melhor, não existe. Ouvi também sobre Parque Paraíso, Vila Nossa Senhora Aparecida e Jardim Bom Jesus, mas parece que nada disso é verdade;

– o Muro dos Milagres, como conhecido, é um ponto típico frequentado por fiéis que lambuzam sua sombra com os muitos círios que deixam ali, plantados no cimento. Ninguém sabe o que há do outro lado. Se alguém segue o muro em sua extensão, acaba saindo em praças e largos que se abrem a outros bairros já conhecidos. Vindo da zona norte, em função de se chegar a ele por trás, ocorre que não se encontra o muro em parte alguma.

Que fenômenos são esses? E por que se ocultam em meio ao caos das grandes cidades? Quem sabe quão extenso é o rol de respostas que apenas aguardam pacientemente pelas perguntas? – talvez, como nas bibliotecas, a milhares de páginas significativas faltem ainda a faísca de uma necessidade ou de uma teimosia que as desperte.

Prosseguindo. O metrô da capital é um dos mais modernos do mundo e pode ser visto, pela exatidão de seu planejamento, como um triunfo da racionalidade, estando próximo ao que os homens práticos consideram perfeito. Isso não o torna isento de misticismo, e também aí se observa a evidência de singularidades intrigantes. Vale lembrar que, em uma de suas linhas, o trem nunca chega à última estação. O que parece mais surpreendente é o fato de ninguém saber, ou procurar saber, para onde o trem vai depois. Nos painéis de orientação, mostra-se a seguinte sequência final:

●  Marcondes
●  Santo Inácio
●  Largo da Fonte
●  Remoinho

Na primeira, todos desembarcam. As duas últimas são inacessíveis. De acordo com o mapa, onde deveriam ser as saídas do subterrâneo, encontram-se, na verdade, um convento de freiras enclausuradas e uma praça oval com um monumento aos estudantes mortos durante o Regime. Isso (as duas últimas estações) constitui um mistério ao qual, até hoje, nenhum utilitário do metrô prestou a devida atenção.

Ainda sobre o metrô. Um professor de Física relatou-me sua curiosa experiência. Ele já havia desembarcado inúmeras vezes na estação Largo da Miséria (que dá para um terminal de ônibus), em busca de livros raros, num sebo que conhece. Em uma quarta-feira chuvosa, quando tornou ao local, deparou-se, à saída da estação, com uma paisagem inteiramente diversa. “O que encontrei”, diz ele, “foi uma vila de edifícios em construção, todos eles inacabados, planejados nas mais audaciosas linhas arquitetônicas, como eu jamais vira até então. Não havia mais o terminal de ônibus, um posto do correio, um aleijado vendedor de bilhetes, o viaduto e umas poucas árvores que ainda resistiam, apesar dos maus-tratos. Fiquei atônito.”

Não sem motivo. Era toda uma aglomeração de edifícios que desaparecia, dando lugar a novas e estranhas construções pela metade – e isso, da noite para o dia! Três dias antes, ele havia comprado um opúsculo sobre radioastronomia no mesmo sebo. Por que ninguém reparava naquelas bruscas modificações?

Afetado por uma espécie de choque racional, esse professor submeteu-se a um tratamento psiquiátrico logo após ter voltado ao Largo da Miséria, onde tornou a encontrar o terminal de ônibus, o aleijado, tudo quanto antes havia ali, na véspera da chuva de quarta-feira, na mais perfeita ordem. Essa terapeuta, que usava um grande relógio de pulso, sugeriu que as pessoas talvez fossem… outras – daí não parecerem surpresas, embora ela mesma não pudesse esclarecer satisfatoriamente tais suposições. Atreveu-se a deduzir que o professor teria entrevisto, entre a bruma da atualidade, uma imagem do futuro. Isso agravou o estado mental do paciente. Em suas sessões, ele confessou-se principalmente aturdido por haver presenciado tal manifestação do sobrenatural sem mesmo ser um iniciado em qualquer outra ciência que não a sua.1 Apesar de leigo, lembrava-se de ter sido avisado: pesadelos turbulentos atormentaram-no na noite anterior à metamorfose urbana.

O cidadão empenhado em desvendar um desses focos de sombra acaba desistindo em razão de uma ou outra coincidência que lhe obstrui o caminho. Um pneu furado, uma avenida em obras que o força a desviar-se, alguém que lhe esbarra e o faz se atrasar, chuvas repentinas, telefonemas sinistros nos quais uma voz soturna se desculpa pelo engano. Foi também o que me aconteceu. Pequenos contratempos, que mais tarde recordei em função disso, induziram-me muito cedo a mudar de ideia.

Até hoje me encontro com um velho vendedor de livros chamado Giorgio, cuja banca fixou-se definitivamente na Praça da Prata. Na verdade, ele não negocia apenas literatura de ficção. Encontram-se, ao fundo de suas prateleiras, certos títulos sobre ocultismo, magia branca e doutrinas esotéricas. Segundo ele, por trás de sua aparência dinâmica e em meio à cegueira do século, a cidade dos homens encerra uma infinidade de enigmas que resistem às investidas de nossos pobres sentidos, e é regida por leis que não se dão a compreender. Ouço dele sobre os curiosos que ousaram decifrar tais incógnitas mal acobertadas no cotidiano. Por exemplo, sobre um brilhante profissional da informática, condenado pelos deuses urbanos do congestionamento a permanecer 66 dias no mirante de um arranha-céu, que pagou sua pena tendo de encontrar palavras que definissem exatamente as cores do crepúsculo. Toda manhã, ao apresentar seu relatório, mencionava nauseantes variações de um mesmo matiz – e descobria outros.

Um desses aventureiros era também o gerente geral de um banco com sede no exterior. Ele foi obrigado a percorrer os bairros periféricos contando, um a um, todos os barracos que se plantavam nas encostas e nos terrenos sem fim dos subúrbios. Ao completar a volta, ele tinha de recomeçar a contagem, pois novos casebres já se erguiam nos degraus dos morros, o que alterava sua estatística continuamente. Uma jovem estudante de Direito não se livrou de uma árida penitência: ela teve de passar três dias e duas noites numa fila infinita, que dobrava vários quarteirões, arrastava-se lentamente e não levava a parte alguma, nem mesmo (como era de se supor) a algum posto da Previdência.

Um dos fatores que concorrem para a proliferação de tais mistérios nos centros urbanos é justamente o excesso de população. Por ser densamente povoada, a metrópole serve de cenário ideal a seu nebuloso desenvolvimento. A pressa diária e as tantas pessoas que ocupam cada espaço desse emaranhado de situações simultâneas ofuscam as chances de se entreverem as evidências. O velho Giorgio afirma que alguns desses cidadãos já estão mortos há muito tempo, mas nem eles próprios parecem ter entendido isso, e continuam vagando pelas ruas mais movimentadas. Como não é simples distingui-los dos outros, dos que se entendem vivos, essa estranha faceta do real convive diariamente, e sem ser notada, com o resto das atribulações que infestam nossa vida prática. Até mesmo certas divindades arriscam-se a transitar pelo centro comercial em plena luz do dia, sem que ninguém as perceba, embora um garoto tenha identificado a morena de longos cabelos, entretida ante uma vitrine de calçados, como sendo Iara, a Mãe d’água – ele a reconheceu por meio de uma figurinha na qual seu rosto aparecia de frente.

Tais lendas, mescladas ao sonho do real, alertam para o caráter sofismático e insuficiente das tentativas de se compreender, somente com a razão, o universo. O velho cidadão deu-me ainda algo sobre a densidade concreta das situações no presente e sobre a persistência de certos resíduos pretéritos entre a confusão metropolitana. Ele crê que nem tudo desaparece definitivamente e que certos objetos ou pessoas passam, mas continuam insistindo no tempo, pois nem sempre desejam deixar a realidade. Talvez outros mistérios se somem a esses, e os cidadãos nunca sejam bastante astutos para desvendá-los ou mesmo para percebê-los, assim como eu não fui.

Apesar de tudo, do tempo escasso e das poucas informações de que disponho, creio ter finalmente descoberto algo sobre Paineira Branca. Uma cigana vendedora de bilhetes disse-me que o bairro realmente existiu em outro tempo, talvez há mais de um século, e que atualmente só pode ser encontrado uma vez por ano, na noite de São Bartolomeu. Por meio dela, eu soube também da existência de uma irmandade conhecida como Confraria das Sacolas, na qual cada iniciado leva uma sacola com algumas verduras e cumprimenta somente outro iniciado com sua respectiva sacola. Se um cidadão sai de casa levando uma sacola, eles lhe acenam e sorriem, confundindo-o com um de seus sectários.

Com o pouco que me resta, e considerando-se o cansaço de tantos dias estéreis, basta que eu abrevie este relato enquanto o tempo não me confunde com a morte, enquanto não desapareço também. Mas antes, quero deixar um recado que talvez sirva a outros curiosos: se algum cidadão quiser corresponder-se comigo, por favor, escreva. Porém, no caso de receber alguma resposta de minha parte, certifique-se de meu endereço como remetente e observe a data da postagem no carimbo do correio. Pode ser que o endereço não exista mais, e que eu esteja escrevendo de algum quarto solitário em meu próprio passado.

São Paulo, 1985

1 A física clássica também teve de se curvar a novos conceitos, com o passar dos séculos, deixando de se ater exclusivamente às teorias mecanicistas de Newton e Descartes, por finalmente se dar conta de que o universo é muito mais complexo.

Inconsistência dos retratos

Outros contos em Lisette Maris em seu endereço de inverno

Imagem: Edward Hopper. Circle Theater. 1936

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