Office in a Small City por Edward Hopper

Teus olhos na escuridão. 4

Uma aventura perigosa na clandestinidade.
O mapa de um escândalo.
Um segredo potencialmente devastad
or.

No terceiro ou quarto dia, não tenho certeza, a Cleo se aproximou de mim. Ouvi o som de seus saltinhos, seus passos curtos, lá estava ela, de pé ao meu lado, perguntando a quem deveria encaminhar uma postagem compartilhada para melhorar a qualidade da imagem contida nela. Eu lhe passei o fastpost de nosso contato externo. Ela agradeceu, simpática, com aqueles olhos inteiros, tão redondos quanto a Terra, e quase lacrimejantes. Pedi que me mostrasse a postagem. Um tigre sobre o telhado de uma casa, focinho-rosto em primeiro plano, e uns bombeiros ao fundo.

“Pede pra eles melhorarem esses olhos do tigre. Estão muito escuros.”

“É. Tem razão. Acho melhor.”

“Parece a gatinha da Alex, a Tracy, que ficava meio assim, quando fechava a cara.”

“É mesmo?”, ela riu. “E quem é a Alex?”

“Uma garota que conheci. Os olhinhos dela (da gatinha) eram azul-clarinhos, como se tivesse entrado água de piscina nas órbitas. Clarinhos como bolinhas de gude, quase transparentes. Mas então, quando ficava de mau humor, meio ranzinza, meio excêntrica, ela parecia focar em alguma coisa, concentrada, baixava só um pouco a cabecinha, e misteriosamente seus olhos pareciam ter se tornado escuros, não sei como.”

Ela acompanhou a conversa com aquele controle socioemocional de iniciante, em processo de fazer amigos.

“Já vi umas coisas parecidas. É assim mesmo. Meu namorado tem um gato cinza, a coisa mais linda do mundo. E ele tem uns olhos incríveis!”

“Quem? O gato?”

“O gato!”, ela sorriu. “Ah, já vi que é meio difícil falar com você. Que não perde a chance de uma ironia machadiana, não é? Estou percebendo.”

“Ou wildeana. Ou beckettiana. Ou… Não, não sou bom nessas coisas não. Foi só o momento. Brincadeira. Você gosta de literatura?”

“Gosto sim, muito.” Ela trocou o pé de apoio, mínimo movimento grácil, seus seios robustos oscilaram um pouco. “Tenho muitos livros, adoro.”

“Mesmo? Eu também.”

“Mas não estou falando de e-books, PDFs ou holopapers ou virtpages…”

“Nem eu. Pensei em livros mesmo. Como quando só existiam livros, mesmo! Você tem muitos?”

“Mais ou menos. Meu apartamento é pequeno, mas cabe um bom tanto.”

“Eu ainda me sinto um modesto guardião dessas velharias, sabe? Meu pai também guarda. Tem mais livros do que eu, em sua casa simples, em nossa cidade. Quando vou pra lá, sempre levo mais alguns de presente pra ele. Ou pego alguns dele, emprestados.”

“Que lindo…”

“Livros novos são cada vez mais raros, não é? O Rômulo, por exemplo, acha que não faz sentido voltar atrás, voltar aos livros: ele lê tudo, absolutamente tudo, por meio eletrônico, virtpages e tudo o mais.”

Ela e um sinal negativo, movimento de cabeça, lento e discreto, como uma professora concluindo que esse aluno aí não tem mais jeito.

“Me fale se quer ler-ver algum livro que não conhece, podemos trocar mercadorias raras”, sugeri. “Quase especiarias.”

“Ah, ah… Ótimo. Vamos sim”, ela se animou. “Quem sabe não poderíamos formar algum tipo de clubinho aqui, de leitores de livros impressos…”

Ajustei os óculos, olhei para baixo, depois para ela.

“Olha, não quero ser o rabugento nessa história. Você pode até tentar, mas acho que, por aqui, até onde eu sei, ninguém se interessa muito por essas coisas.”

“Ah, que pena. Bom, vou ver isso do tigre. Obrigada pela atenção.”

Ficou no ar a ideia de conhecermos as pretensas bibliotecas um do outro, e eu só me interessei sinceramente por isso porque sou um incorrigível admirador de livros, de todos eles, mesmo que o conteúdo não seja de meu agrado. Gosto de examinar edições antigas e novas, não resisto a farejá-los, identificando o aroma característico de determinado exemplar, como faria o Fução, a mascote de meu pai, um vira-lata simpaticíssimo e grande farejador, por vontade própria. Eu era assim com livros.

Essa breve conversa com a nova colega serviu para despertar uma lembrança meio enrustida de coisas fascinantes, como livros e filmes, música erudita e batidas de limão com leite condensado. Geralmente, esse tipo de coisa me distraía do trabalho e me fazia um pouco triste e frustrado, só por ter de estar trabalhando e não fazendo qualquer uma dessas coisas fascinantes e inspiradoras. Mas eu tinha de ler algumas facultativas, na próxima hora pelo menos, e responder ao fastpost da Heleninha, que era uma espécie de filtro do que deveríamos abordar e do conteúdo temático sobre o qual, eventualmente, valeria a pena dispensar nossa atenção. Eu tinha de lhe enviar um parecer sucinto sobre isso.

Na tarde de ontem, em São José do Bom Termo (RA), foi registrada mais uma aparição da Virgem Maria, no nicho de uma gruta, em uma das muitas cavernas que tradicionalmente caracterizam os arredores da cidade. Motivo de grande comoção, o evento chamou a atenção do mundo. Milhares de fiéis se aglomeraram em frente à gruta, sussurrando preces emocionadas. Duas pessoas passaram mal e tiveram de ser socorridas […] Hoje, pela manhã, o Vaticano se pronunciou oficialmente, confirmando o milagre […]

Uma fac fraca, amadora. São José do Bom Termo é uma cidade bem pequena, situada em meio a uma vasta planície, ligada a duas cidades próximas por rodovias precárias, e não há qualquer sinal de cavernas na região. Seria aconselhável substituir fiéis por pessoas, generalizando: teria melhor efeito se todos houvessem presenciado a tal aparição, o fantasma esbranquiçado da Virgem na gruta, não só os fiéis da Igreja, como também os descrentes e os devotos de qualquer outra religião. O Vaticano não confirma milagres assim, tão rápido, apenas algumas horas depois. Os especialistas da Santa Sé atendem a uma série de procedimentos antes de concluir formalmente que alguma fantasmagoria avulsa como aquela configure de fato um milagre. O Vaticano mesmo, em sua opulência, foi construído e sustentado, ao longo de séculos, por facs bem mais engenhosas do que essa. Meu parecer foi breve e negativo, também porque, com a ascensão das igrejas do Cristo Quântico, a Igreja Católica, com suas entidades antigas, pontuando romarias e efemérides, vinha perdendo o interesse por parte da população e do público leitor, em geral.

Apaguei o cigarro. Comecei a redigir algo de minha percepção sobre mais três facs que a Heleninha havia me passado, direto no corpo do fastpost, dando início à tarefa. Nós, ali, da Facto, tínhamos um nível bem melhor do que esses autores de facultativas claramente obscurecidas por falhas. Com exceção da Alice e do Robinho, todos nós éramos graduados, diploma universitário, poderíamos produzir uma série de subverdades com reconhecida qualidade técnica. Segundo nossos professores e de acordo com um padrão consensual das academias, uma boa facultativa tem que passar a impressão de ser “quase real e muito convincente”. Eu já ouvira rumores de que meu colega, o Tato, era mais bem remunerado que a maioria de nós, por ser talentoso com isso. Era visível que ele ostentava um padrão de vida mais sofisticado do que aquele que a maioria ali alcançava. Acompanhava a moda e se vestia bem. Morava em um condomínio a que, imagino, nenhum de nós teria acesso facilmente. E estava agora com um White Ghost K-3 47, um belíssimo esportivo terrestre lançado no ano passado, o que ajudava a completar a noção que construíamos sobre ele e sobre sua condição socioeconômica. O Tato era o que fazíamos de seu nome, Octavio Germano: alto e bem proporcionado, cabelos loiros e finos, repartidos de lado, quase sempre untados por algum produto que os fizesse menos esvoaçantes a cada passo, e uns olhos azuis marcantes, que ele sabia manipular muito bem, ora fixando-os em alguma coisa, sem mover, nem de leve, uma pálpebra, ora tendo-os agitados, deslocando-os de um lado para outro, como se acompanhasse uma partida de tênis em algum vídeo de alta velocidade. O Edison tinha especial consideração por ele. Dia sim, dia não, ficavam os dois conversando por um bom tempo na sala do editor-chefe, sabe-se lá se atualizando pautas, trocando ideias sobre os objetivos da revista ou fofocando sobre mulheres. Dava para ver suas silhuetas cinzentas por trás do vidro translúcido, verde esmaecido, bloqueado em parte por faixas horizontais opacas e ásperas, à moda antiga, como era comum nas repartições públicas, no século 20. Fora isso, o silêncio lá dentro era abafado, quase uma vibração, e só se ouvia alguma risada por conta da distração deles, quando perdiam a noção do sigilo e do volume. Cheguei a pensar que o Tato não estava onde merecia, que ali era tudo um tanto modesto para seu padrão e para suas ambições, e que ele, mais cedo ou mais tarde, acabaria contratado por um periódico maior, mais influente, quem sabe até por algum veículo de jornalismo televisivo, que pudesse incrementar-lhe a remuneração, talvez já bem satisfatória, em signos virtuais. Com sua beleza clássica, estereotipada, seria bem aproveitado pelas mídias visuais.

O Edison, deixando sua sala, andando entre os pontos: “Pessoal, já mandei um fast com os nomes para o rodízio da próxima semana. Quem tiver algum problema com isso, me retorna, vem me falar.”.

Final da tarde.

“Ô Marco”, tapa em meu ombro. “Me diz. Que que você vai fazer hoje?”

“Nada. Ficar por aqui. Depois, pra casa.”

“Vamos comer alguma coisa por aí, bater uma sinuca, tomar uma cerveja…”

“Que foi? Problemas com a Valquíria de novo?”

“Não, não é isso. Quer dizer, mais ou menos. Não seja chato. Preciso me divertir um pouco, descontrair, esquecer umas coisas…”

O Arthur, com sua barba negra e estreita, sempre bem aparada, cabelos curtos, quase espetados, cobrindo apenas o alto da cabeça, a meio caminho das têmporas, sendo na região das orelhas e da nuca aparados com maquininha 1, era um bom colega, quase um bom amigo, tinha confiança em mim. Via-se, por seus antebraços e parte do peito entre a camisa meio aberta, que ele tinha pelos muito pretos, era peludo em geral, e eu imaginava que, se ele deixasse de aparar a barba e os cabelos, não dependeria de feitiços ou noites de lua cheia para se transformar rapidamente num urso.

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