Office in a Small City por Edward Hopper

Teus olhos na escuridão. 44

Uma aventura perigosa na clandestinidade.
O mapa de um escândalo.
Um segredo potencialmente devastad
or.

Na noite esquecida que nos encobria no Café Silene, eu e minha interlocutora invisível organizávamos cada passo que poderia estruturar meus textos, meus tópicos, meus posts, que eu agendaria em meu blog, para publicações automáticas futuras. Pelo menos, era esse o plano até então. Encontrei, sobre a mesa, um envelope com papéis, quando cheguei.

“Seus cigarros”, falei, enquanto lhe atirava um maço de Malpro.

“Muito obrigada. Continua um dedicado cavalheiro.”

Gentleman, cavalheiro…. – mas, em vez disso, eu me sentia, em grande parte, um cachorrinho obediente. Abri o envelope. Imagens de fastposts e de mensagens escritas à mão: umas, apenas breves recados, de três ou quatro linhas; outras, configurando quase um longo parágrafo. Eram evidências consistentes, preciosíssimas.

“Isso vai facilitar as coisas. Você deve associar essas cópias a alguns itens relevantes que vou lhe passar ainda hoje.”

“Consegue aquele controle geral, feito por algum administrador, como aquela caderneta com as anotações da quadrilha do Estádio?”

“Não. Não sei se isso existe, propriamente. E, se existir, está fora do meu alcance. Não tenho como penetrar a contabilidade deles. Isso é outra história. Consigo tudo pelas margens, pelas pontas soltas, por outros meios. Que vão se associando e fazendo sentido. Que formam o panorama geral. Não tão complexo quanto o esquema da restauração do Estádio. Mas bem articulado e inteligente.”

“Parece irônico. Um esquema bem mais poderoso e… menos complexo que o outro.”

“Mais inteligente. Menos burocrático. Com muita capilaridade, chegando aos políticos interioranos e tesoureiros de partidos minúsculos. O fato é que funciona bem.”

Fiquei repassando os papéis que tinha em mãos e dispondo-os sobre a mesa entre espaços que me pareciam convenientes. Falava sem levantar os olhos, sem me desviar deles.

“Você se tornou o pior pesadelo dessa gente. Como conseguiu coletar tanta coisa?”

“O próprio primeiro-ministro me passou muitas informações. Porque quis. Porque confiou em mim. Gostava de conversar comigo. Gostava de minha proximidade.”

“Há quanto tempo isso vem sendo… vem sendo…?”

“No segundo ano do primeiro mandato do De Castro, essa empreitada silenciosa já começava a render pequenas fortunas. E prometendo amplitude, com a convocação de mais interessados e sugestões de aperfeiçoamento. Um jornal chegou a publicar, referindo-se a uma organização semelhante, em escala bem menor, que funcionava apenas em uma capital do país, que o esquema era tão eficiente que acabava sendo herdado pelos políticos dos mandatos seguintes. Mesmo que fossem detidos os corruptos atuantes, um grupo de sucessores poderia dar continuidade a tudo aquilo.”

“Não me lembro disso. Não devo ter acompanhado. Que capital?”

“As facultativas enterraram rapidamente essas especulações. Foi bem rápido mesmo. Um caso exemplar. A jornalista que havia publicado a denúncia foi acusada de difamação e quase perdeu seu registro de profissional. Se insistisse, talvez perdesse a vida. Jogo que segue.”

“Sabe o que aconteceu com ela?”

“Não. Não deve ter acontecido nada. Com o sucesso dos ataques à sua reputação, o problema tinha acabado. E ela devia ter pouca coisa em mãos. Poucas evidências, pouco acesso a algo mais consistente. Nem adiantaria, se ela insistisse. Já estava desacreditada. Destruída pelas facs. Definitivamente.”

Continuei espalhando os papéis sobre a mesa. Assumindo minha posição como receptor de perigosas novidades. Ela retomou sua fala – sóbria, clara, ponderada – enquanto expunha o que havia de maquiavélico e sinistro no poder político vigente. Enquanto abria, a cada encontro, a cada conversa, com cautela e elegância, sua prodigiosa caixa de Pandora.

“Você se refere aos três meninos assassinados na periferia? Não, isso não tem relação com o senador. Ele apenas tinha contato com os líderes do tráfico na região. Negócios. Não estava envolvido nesse sumiço. […] Sim: a evasão dos lucros da mineradora Vila Rica e o superfaturamento da barragem ficou a cargo do pastor Aranha. […] e aquela suspeita sobre a aquisição da casa extravagante do senador, filho dele, no mesmo condomínio onde também moram importantes chefes das milícias. Por isso, cada vez que um desses milicianos de média hierarquia era assassinado, o senador vinha a público dizer que não tinha nada com a história. […] Tudo isso, de um jeito ou de outro, é protegido pelos complicados tentáculos que começam no grupo de confiança do primeiro-ministro. Eles não têm escrúpulo algum. São grandes canalhas, grandes cínicos, homens que parecem não existir na realidade, de tão sórdidos. […] Não, não dê muito destaque ao deputado Beltrão. Ele é peça pequena. Tem discursos populistas fortes, como encarnando um gigante. Mas, para seus pares da mesma estrutura organizacional, não passa de um anão. […] Sim, isso deve vir entre os primeiros itens. O De Castro inspeciona pessoalmente esses três comparsas. […] Há um tom insidioso em certas facultativas, você sabe, que retratam os mais pobres como responsáveis por seu próprio destino. Que são produtos de um meio que eles mesmos criaram. Resultados de seus ancestrais mais próximos, pais e avós, que teriam sido vencidos pelo alcoolismo. Pelas drogas. Ou simplesmente pela preguiça de trabalhar. Enquanto isso, as verbas destinadas a projetos sociais, educação e saúde, para os que mais necessitam, acabam desviadas para contas particulares. Para alguns, no topo da pirâmide dos esquemas, isso gera fortunas. Há dois meses, o senador Ubaldo comprou um apartamento em Paris. […] O caso da menina? Sim, foi um dia que parou a nação. Um dos rapazes foi morto pela polícia, escondido no resort. O outro se entregou. Mas logo ganhou liberdade novamente. Os dois tinham relações muito próximas e de certa influência com figuras do governo. Quando isso tudo chegou ao De Castro, ele aceitou facilmente, prudentemente, o argumento de que se deveria encerrar o caso e destruir, tanto quanto possível, quaisquer provas que incriminassem os amiguinhos.”

Ela mencionou outro crime do qual eu não me lembrava ao certo. Claro que aquele episódio, como tudo o mais, não desaparecia de todo, pois remanescia naturalmente arquivado em alguma dimensão de nosso psiquismo. Apenas restava perdido entre tantas informações acumuladas.

“Isso faz dois anos, sim. Eu só não sabia que tinham encontrado os culpados. Não sabia mesmo. Alguma coisa deve ter escapado da imprensa, na época, enquanto se davam os desdobramentos.”

“Não escapou. As informações eram distorcidas. Faziam crer que os assassinos não eram os assassinos. Criavam dúvidas absurdas sobre eles. E a população ainda estava sob influência do aval de autoridades policiais e militares, gente honrada que garantia, em coletivas, que o caso estava aberto e que eles estavam envidando todos os esforços para identificar o monstro que teria feito aquilo. Posso trazer mais detalhes que você não vai encontrar pesquisando nas redes. Por enquanto, anote aí os nomes completos dos três assassinos.”

Passei pelo menos mais meia hora registrando dados.

“Só um minuto. Sobre essas festas, organizadas pelo ministro de confiança do De Castro…”

“Ah, sim. Eles fazem festas sofisticadas. Fora do alcance das mídias. Em lugares estonteantemente luxuosos e inacessíveis. Parte delas, em propriedades particulares. Coisa de milionários. A uns poucos quilômetros da capital.”

“Tudo com dinheiro público, imagino.”

“Não tudo. Quase tudo.”

“Você participava dessas festas?”

“Participei de algumas. São maravilhosas.”

“Sei.”

“Mas acontece também outro tipo de festas. Só de homens. Contratam as eventuais mais caras da capital. Algumas, de cidades próximas. Lembro de terem me contado, certa vez, sobre uma das convidadas ter sido capa de uma revista. Um destaque, abrilhantando uma noite especial. Só por isso, ela deve ter deslumbrado nossos compatriotas.”

“O que seria uma noite especial para essa gente? Comemoração de algum golpe bem-sucedido, talvez? Estou só divagando. Imagino coisas assim, entre homens, mas não com tanto… com tanto… Com eventuais tão bem remuneradas.”

“Existe uma agenciadora para elas. E quem negocia com essa respeitável senhora é o competente e habilidoso ministro da Economia.”

“O ministro da Economia?! Sério? O Calixto? Religioso, pai de família…”

Ela deve ter tido vontade de soprar uma baforada de fumaça na minha cara, se pudesse alcançar-me.

“Não me decepcione. Não me diga que alguma vez acreditou no moralismo ridículo de algum desses pilantras.”

De novo, aquela sensação de ser um tolo exemplar.

“Não, mas não é isso. Mesmo desconfiando da hipocrisia deles, é surpreendente que arranjem eventos desse tipo, levianos, lascivos, que se envolvam tão diretamente com isso. E dessas festas, você participava?”

Sufoquei com um daqueles silêncios opressivos.

“Não.”

“Desculpe. Fui indelicado, eu sei. Coisa de jornalista, entenda. Me desculpe.”

“Mas conheço duas mulheres que me passam o que acontece nessas festinhas exuberantes. Elas se divertem me contando detalhes e improvisos.”

“Bom, mas… Acho que isso já não é da minha conta.”

“Não é. Mas é bom saber que justamente o senador que finge ser oposição se dá muito bem em companhia do primeiro-ministro e das acompanhantes de alto nível que os organizadores lhe fornecem, de brinde.”

“Certo. É muita informação de uma só vez. Vamos pensar. Vou focar nos pontos principais. Trabalhar o texto. Guardar toda essa parte aqui para desdobramentos, em outras publicações. Acho que, em três ou quatro dias, consigo montar um tópico conciso e consistente.”

Juntei os papéis. Deixei de lado a caneta. Um gesto que significava: chega por hoje.

“Na próxima semana, vou lhe trazer pelo menos duas informações relevantes. Vitais para se compreender essa segunda etapa dos pagamentos.”

“Certo. Quer que eu lhe traga o que escrevi até agora?”

“Não.”

Fechei a pasta, guardei nela os rascunhos, o bloco de anotações. Já me levantava, pronto a me despedir, quando decidi contar: “Eu queria aproveitar para lhe dizer que… uns dias atrás… na rua… no meu horário de intervalo para o almoço… alguém estava me seguindo.”.

Um último silêncio. Nada mais. Chamar um aero. Encerrar a noite. Ir para casa. Voltar na semana seguinte.

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