Office in a Small City por Edward Hopper

Teus olhos na escuridão. 52

Uma aventura perigosa na clandestinidade.
O mapa de um escândalo.
Um segredo potencialmente devastad
or.

Na sexta-feira dessa mesma semana, a Cleo passou por meu ponto, deixou um papelzinho dobrado ao lado de meu GP e continuou andando com sua tablet e uns papéis nas mãos. Nós nos comunicamos frequentemente por mensagens, no personal, mas isso agora era parte de seu charme e de sua feminilidade, fazer algo diferenciado, delicado, artesanal – e, de certa forma, associado à sua paixão por bibliotecas e volumes impressos. Desdobrei o recorte retangular.

Vamos folhear livos esta noite?

Sim. Em meu apartamento. Pedi uma pizza e um refrigerante que ela quis. Deixei umas Blue-Fs para ela, e um pequeno estoque de minha cerveja preferida, Tincobell, estava garantido.

“Já pensou em ter uma biblioteca? Digo, uma biblioteca mesmo, tamanho grande”, perguntei a ela enquanto deitava gelo em seu copo.

“Já pensei sim. Mas aprendi com alguns autores que a gente acaba sentindo uma espécie de culpa por não conseguir ler tudo o que temos, tudo o que adquirimos.”

“Borges disse algo assim. Cortázar também.”

“Vários outros. Acho que isso é bem recorrente.”

“Você leu tudo aquilo que tem na sua casa?”, perguntei, enquanto servia uma fatia de pizza a cada um de nós.

“Um-hum”, não muito convincente.

“É mesmo?”, levantei-me e fui à geladeira pegar uma long-neck minha.

“Um-hum.”

“Mentindo de novo?”, falei, de costas para ela, de pé ao lado da mesa, destampando a garrafa com a mão.

Senti um tapa no ombro. “Bo-bo…”, ouvi seu sorriso. “Bobo! É quase verdade.”

“Quase verdade?”, repeti de forma interrogativa mas neutra, sentando-me de frente a ela.

“Porque tem uns que eu não terminei. Que eu parei no meio. Porque achei chatos. Uns clássicos.”

“Clássicos antigos? Clássicos novos?”

“Os dois. Você nunca parou um livro no meio não?”

“Claro que sim. Às vezes, na página 10. Filosofia, principalmente.”

Eu me sentia muito bem com ela. Voltar a esse universo de livros e autores fazia distrair de minhas tristezas mais recentes, a morte de meu pai e o envenenamento do Fução, e de minhas ansiedades atualizadas, em especial a que me revisitava toda vez que antevia seriamente a publicação próxima de meu tópico-bomba.

“Quantos autores que você conhece tiveram coragem de fazer alguma coisa ousada fora dos livros?”

“Como assim, Marco?”

Fui buscar outra cerveja. “Não sei, eu quero dizer que… Nada. Não importa.”

O fato de a Cleo ter se formado há pouco tempo, de estar ainda integrando a equipe da Facto como uma novata na profissão e ser bem mais jovem do que eu influenciava seu comportamento, forjando-lhe um papel em cena, algo que ela parecia assumir com gosto e malícia, como se buscasse em mim um orientador ou uma referência, o que também configurava, de certa forma, uma maneira charmosa de ela tentar me conduzir, por sua vez. Eu percebia isso tudo. Não me deixava enredar. Permanecia atento, interagindo como alguém de seu mesmo nível. E ela entendia que eu assimilava os efeitos de certos gestos seus, simulando alguma infantilidade, sem me afetar, como se os absorvesse e os fizesse esvanecerem-se em seguida.

Sobrou pizza, continuamos bebendo: ela agora me acompanhava, com suas Blue-Fs. Eu a admirava explicitamente, mais ainda quanto eu mais bebia e liberava minha espontaneidade. Nessa noite, ela usava uns brincos muito bonitos: metálicos, vistosos. Camiseta verde-escura na qual se lia, em letras brancas: Soft power. Saia branca, justa. Sapatos com salto plataforma, tipo anabela, duas tiras pretas cruzando-se nos tornozelos até se fecharem num laço lateral, quase uma florzinha disforme.

“Marco, você está estranho. Meio quieto comigo.”

“Acho que sim. Meio carregado com umas coisas. Mas aqui, com você, eu me sinto outro, me sinto muito melhor.”

“Me conta o que é. Por que carregado? Coisa do trabalho?”

Peguei sua mão, afastei minha cadeira e fiz um sinal para que se sentasse sobre minhas pernas. Ela se ajeitou rapidamente ao meu colo, sem soltar seu copo de cerveja. Seus brincos oscilaram. Beijou-me de leve, queria continuar a conversa.

“Escondendo alguma coisa de mim, não é?”

“Mais ou menos. Não quero que se preocupe com coisas que…”

“Por que não me conta? Nós temos que dividir essas coisas, não acha? Afinal, eu sou ou não sou a sua namorada?”

“É sim”, disse eu já meio embriagado.

Ela inclinou a cabeça e me beijou, intencional e carinhosa, com sua boca linda.

“Que delícia…” falei ao seu ouvido, olhos fechados. Era o que de melhor e mais sincero me ocorria, com toda a força de uma verdade: um beijo delicioso em sua boca linda. Ela voltou ao assunto.

“Me diga. Até quando nós vamos fingir que somos apenas colegas, na redação?”

Com não sei quantos mL de Tincobell, que eu bebia no bico, multiplicados em meu sangue, eu receava dizer algo inconveniente, cometer alguma gafe lamentável. Essas garrafinhas traiçoeiras, fadas indutoras de nossas ações e reações mágicas, podiam nos enfeitiçar tanto para o bem quanto para o mal.

“Você se incomoda se a gente estender isso por mais tempo? Você não se sente melhor assim, com a nossa privacidade preservada?”

“Não.”

Peguei um de seus seios grandes, consistentes, por cima da camiseta de algodão. Soft power. Ela assistia aos meus movimentos, respirava em alguma outra frequência, minimamente distinta da que lhe servia um minuto antes.

“O que importa é estarmos juntos”, eu disse, como na fala de algum personagem de telenovelas.

“Não, não é só o que importa”, ela murmurou, meio arrepiada de tesão. “Precisamos ser mais. Precisamos ficar juntos, morar juntos. Fazer planos…”

“Tão bom ter você…”

“Tão bom ter você também. Mas não pode ficar escondendo coisas de mim. Isso me entristece, me preocupa. Ouviu o que eu falei?”

Eu estava a ponto de levá-la para a cama – ou para o sofá mesmo, que ficava logo ali. Mas ela me detinha sutilmente. Não queria deixar dissipar a neblina de dúvida quanto a eu ficar escondendo, o tempo todo, alguma coisa. Ela precisava de algo mais, para ir em frente.

“O que você quer saber, Cleo? Não são problemas seus.”

“Como você pode falar assim comigo? Como não são problemas meus? Você não quis que eu acompanhasse você no enterro do seu pai. Por que não? Nós estamos juntos. Eu poderia ter ido, ter… ficado do seu lado, só isso. São momentos que temos que dividir, com compreensão e carinho. Marco, olha pra mim. Nós temos que nos ajudar, meu querido.”

Tomei outro gole de minha cerveja, deitando a garrafa a um ângulo de 45 graus, na prática engolindo a metade que faltava, até o fim. Com um movimento sutil de meu corpo e de minhas pernas, eu a fiz oscilar ao meu colo, trazendo-a para bem junto de mim e prendendo-a com mais força.

“Cleo, me escute. Você pode não acreditar em mim…”

Contei tudo a ela. Tudo.

“Marco…”, ela murmurou, quase sem voz, levando a mão à frente da boca, como se fora uma personagem do Romantismo. Soltou-se de mim, deu a volta à mesa.

Tudo de que me lembrava: desde as primeiras mensagens da informante no personal, no dia da festinha da Alice, até o último encontro com ela, três dias atrás. A fonte do tópico sobre o Estádio. O que tinha acontecido a ela e por que tinha decidido denunciar todos.

“Marco…”, agora em voz baixa, bem mais audível. Já tínhamos dado algumas voltas em torno da mesa. Ela parecia se contrapor aos meus passos, de maneira simétrica e proporcional, evitando-me como se eu pretendesse agarrá-la ou algo assim.

“Marco!”, disse ela um pouco mais enfática, não como se duvidasse do que ouvia, mas como se estivesse diante de algum tipo de ameaça que, até uns minutos antes, nem de longe poderia prever.

Tudo o que estava acontecendo atualmente no país, toda a desonestidade em larga escala, toda a podridão dos políticos e religiosos envolvidos em fraudes gigantescas, com o apoio de facultativas encomendadas, recorrentes, intoxicando todos os órgãos de imprensa, envenenando as pessoas com doses prejudiciais de indiferença e dúvida.

“Marco…”, ela repetiu, girando a cabeça lentamente, olhando para baixo enquanto se deslocava devagar, levando as duas mãos aos cabelos.

“Vem aqui, comigo.” Estendi-lhe a mão, ela aceitou o gesto. Deixou-se conduzir até o escritório, onde se erguia a cartolina com as fotos das mulheres mais interessantes de minha vida no momento, todas sob minha suspeita. “Lembra disso?”

Ela fez que sim com a cabeça. Aturdida, pensativa, parecia sem forças para falar. Postou-se diante do painel ilustrado, seguindo com os olhos, uma a uma, cada imagem colada ali. Chegando à última, afixada no canto, à direita, percorreu o caminho visual inverso, como certificando-se do que estava vendo.

“Não sei quem é ela”, expliquei, um pouco avariado pelo álcool. “Não descobri nada. Não consegui nada. Talvez não seja nenhuma delas. O certo, como ela mesma dizia, é eu não saber. Não saber. Ouviu o que eu disse? Dei minha palavra a ela. E continuei mentindo…”

A Cleo finalmente olhou para mim. Pegou uma de minhas mãos e a apertou, solidária e medrosa. Eu continuava olhando a coleção de fotos, todas elas, quase comovido.

“Marco”, encarou-me com seus olhos líquidos. “Eu entendo que você não podia me contar. Claro que sim. Mas você pensou no perigo que é isso tudo?”

“Muitas vezes.”

“E você nem sabe quem é essa mulher! Como pode ter certeza de que ela não está enganando você, inventando coisas para se vingar?”

“Não tenho como saber. É como uma aposta. Tenho que aceitar que seja tudo verdade. E que diferença faz? Se ela estiver mentindo, nós venderemos a matéria do mesmo jeito.”

“Marco, isso não é honesto. Não é ético.”

“Cleo, esqueça essa conversinha de coisas éticas! A República vai desmoronar. Depois do escândalo que levou à prisão o governador e seus comparsas, eu entendi que podia confiar nela. Ela me havia prometido um conjunto de evidências tão fortes que ninguém poderia ignorá-las. Ninguém conseguiria negar sua precisão, a montagem final do quebra-cabeças. Nenhuma facultativa seria suficiente. E agora, tudo isso está comigo, em minhas mãos.”

Tudo se esclarecia para ela: desde que falara comigo, e eu estava num ônibus, a caminho do Café Silene, até a morte mal explicada do Fução. Contei-lhe, finalmente, o que faria em seguida, na quinta-feira próxima. O ato decisivo. O tópico passando por cima do Edison, por cima de todos. Presas e garras contra predadores insaciáveis. Uma bomba-relógio arquivada em meu GP. Um torpedo pronto a destroçar a blindagem supostamente sólida dos mais poderosos e dos menos poderosos, dos parasitas de todos os tamanhos.

“Você também prometeu a ela que não contaria nada a ninguém. E acabou de me contar. Bom, eu sei, isso é o que menos importa diante disso tudo.”

“Tem razão. Eu devia isso a ela. O sigilo combinado, pactuado. Não fui muito honesto quanto a isso, reconheço. No mais, fui sim, como acertamos entre nós, desde o início. Não deveria mesmo ter lhe contado, eu sei. Mas agora eu entendo: foi por uma boa causa.”

“Que boa causa?”

Eu a beijei com força. “Você.”

Um sinal sonoro muito leve se fez ouvir, vindo da sala. Como não estávamos ouvindo música, isso despertou nossa atenção. Voltamo-nos ao mesmo tempo, intrigados. Fomos à sala. Era o personal da Cleo.

“Eu tinha certeza de ter desativado meu personal”, disse ela, tomando-o entre as mãos e conferindo a tela de entrada. “Que estranho…”

Teus olhos na escuridão. 51 – anterior

Teus olhos na escuridão. 53 – próximo

Comprar

Na Amazon

por

Publicado em

Comentários

Comentar