Office in a Small City por Edward Hopper

Teus olhos na escuridão. 54

Uma aventura perigosa na clandestinidade.
O mapa de um escândalo.
Um segredo potencialmente devastad
or.

A segunda-feira sugeria ser mais um dia normal para a nação e para a imprensa. Uma pré-jovem desaparecida. Guarda costeira e uma importante apreensão de drogas contrabandeadas. Jovem de 19 anos assassinada brutalmente pelo namorado. (Quando eu era estudante, não entendia como alguém conseguia escrever uma fac sequer sobre casos assim, tão contundentes, tão explícitos, mas publicou-se, no mesmo dia, que a moça era agressiva e havia ameaçado o companheiro, antes de ser morta por ele, quando tudo indicava que isso, claramente, não era verdade.) Julgamento do atacante Nanderson, recém-escalado para a Seleção, acusado de ocultar o corpo de sua ex-amante, com ajuda de milicianos. A cantora Cindy Baccanera anuncia sua gravidez. Petroleiro venezuelano, transportando armas russas em compartimentos secretos, detido em uma costa remota do Nordeste, incidente que deve exigir habilidades diplomáticas para não se transformar em uma crise internacional. Novo ataque do chamado estuprador do campus: a vítima conseguiu escapar de ser morta e promete uma descrição detalhada do agressor. Moradora de um bairro nobre da capital e uma jiboia em seu jardim. Depois da meia-noite, será possível assistir a uma chuva de meteoros, olhando-se para o Noroeste. Emitido um alerta de baixa umidade do ar em toda a região da capital. Visita de um cientista norte-americano, convidado a palestrar com o patrocínio da igreja mais rica do país, trazendo a confirmação de que nosso planeta teria mesmo em torno de 6 mil anos de idade, considerando-se alguns ciclos anteriores ao Dilúvio. Lançamento do livro A verdade por trás do 11 de setembro, reforçando a denúncia de que uma associação de milionários teria financiado os ataques, ao contratar a Al-Qaeda, grupo terrorista que haveria de se tornar, à época, a ong mais famosa do mundo.

Tirei os óculos, apertei os olhos entre os dedos. Não me sentia disposto a trabalhar, tendo em vista meus planos de publicar o tópico sobre a grande quadrilha do De Castro na quinta-feira, um futuro tão próximo – tão ansiosamente próximo!

Na terça, sugeri que a Cleo fosse comigo ao Prime Time, após o horário de trabalho. No caminho, eu ia olhando para os lados e para trás, tentando identificar algum de meus perseguidores. Não vi nada. Ninguém.

“Para de andar assim, se torcendo desse jeito, mas que ansiedade!”

Pedimos lanches veganos e cerveja.

“Uma Blue-F para a minha namorada aqui”, indiquei, logo que a conhecida enérgica atendente passava por nós.

A funcionária inclinou sutilmente a cabeça para o lado, em tom de ceticismo, e quase sorriu. Eu lhe sorri com malícia, mas não adiantou. Num instante, ela se virou, partiu de volta aos fundos do bar. A Cleo me olhou apaixonada, deitou a cabeça em meu ombro, ergueu-a de novo e ficou me olhando de frente, com seus olhos fortes e brilhantes. Há muito tempo eu não tinha mais a minha mãe. Agora, nem meu pai. Nem mesmo o querido Fução. Tinha um mundo medíocre, falso e traiçoeiro à minha frente, ao meu redor. Mas meus sentimentos, minha atração e meu carinho pela Cleo só cresciam. E se enriqueciam de cumplicidade.

“Então? Vamos bater uma sinuca hoje, minha parceira?”

“Não.”

A brava guerreira voltava com nosso pedido. Ela sempre entendeu tudo.

“Se precisarem de alguma coisa diferente, me chamem.”

De uma inteligência, de uma sutileza admiráveis. Alguma coisa diferente! Genial essa senhora. Eu quase lhe disse: “Sim, queremos alugar um quarto! Tem algum no andar de cima?”. Mas ela já estava servindo outros fregueses, ágil como uma ratazana experiente.

“Vou ficar de home office amanhã”, a Cleo avisou.

“É mesmo? Por quê?”

“O Edison me passou um fastpost comunicando a data, disse que estava revendo a escala do trabalho presencial, que eu estava incluída nesse novo esquema de revezamento, e assim por diante.”

“Eu não fiquei sabendo de nada. Geralmente, essas escalas são disponibilizadas para todos, em rede, mesmo para os que irão continuar presencialmente. Bom, não importa, nem quero saber. Não quero saber de nada disso. Quero um beijo gostoso…”

O Gabriel apareceu, vindo do fundo mal iluminado do Prime Time.

“Eu estou lá”, apontou, “com uns amigos. Vi vocês aqui.”

“Quer sentar com a gente?”, sorriu a Cleo.

“Não, obrigado. E se quiserem ir lá, sentar com a gente…”

Ele flagrou nosso beijo e nos via agora bem juntos, encostados um no outro, no sofazinho vermelho que se colava à parede. Seu rosto, como de costume, não moveu um mínimo músculo para deflagrar uma expressão qualquer. Ele poderia ter perguntado algo sobre nós, talvez apenas sorrir, que fosse, por causa da surpresa de ter deparado com nossa presença ali, como um casal. Mas não disse nada. E não sorriu.

No dia seguinte, só troquei uma conversa rápida com a Cleo na parte da manhã. Coisa de namorados, nenhum tema em especial. De volta ao trabalho.

O Copernicus Superstar programava mais uma de suas expedições à Antártida. Recebemos, de nossas agências conveniadas, imagens e trechos de uma entrevista com Plínio Vecchi, o capitão do navio. Havia um clima de ansiedade positiva envolvendo cada uma dessas expedições, e o capitão, dessa vez, declarou, com otimismo, que os cientistas do grupo estavam cada vez mais próximos de conduzir a embarcação ao encontro do Muro de Gelo, o que demarcaria um dia histórico. O Canal 1054 transmitia uma entrevista ao vivo com Gema Vila Real, uma das vencedoras do prêmio Fac Plus Ultra. (Alguém, o Hélio ou o Rômulo, havia selecionado esse canal para deixar sintonizado no telão.) Com seu sorriso de col-5 clonágenos e seus olhos astutos, ela reforçava a importância das facultativas para estimular a imaginação e o questionamento das pessoas, para manter “o equilíbrio da sociedade, o equilíbrio do mundo”. Uma mulher de pescoço curto, aparentando quarenta anos, enquanto todos sabem que tem mais de sessenta: o que é verdade em seu rosto? O que é verdade nela toda? O que a faz pensar que todos se enganam, não apenas uma maioria? Por que algumas pessoas nunca sabem se uma matéria qualquer é uma facultativa ou um fato? Como podia uma notícia sobre algo real passar por uma notícia falsa? E como podia uma notícia falsa passar por uma notícia verdadeira? (O experiente professor Heródoto, ele próprio, viu o tópico-denúncia sobre o Estádio como uma notícia falsa!) E ali estava Gema Vila Real: sorrindo, olhos estreitos, atravessando o tempo como podia. Sempre autoconfiante e motivada. Sempre inspiradora e contagiante. Nada pode dar errado. As facultativas não só vieram para ficar como evoluíam cada vez mais. Aperfeiçoavam-se. Profissionalizavam-se. Chegavam ao status de arte, dado o talento reconhecido de alguns de seus redatores, talento de que ela própria era uma portadora inegável. Em meu GP, com acesso à transmissão, congelei a imagem e ampliei lentamente o foco, esquadrinhando detalhes de seu rosto, de seu sorriso, de seus olhos. Meu tópico seria publicado no dia seguinte. Gema sorria, apertando os olhos, reprimindo rugas, irradiando confiança. (Em minha imaginação, via seu rosto craquelar-se de repente, como um espelho trincado, um vidro estilhaçado por um tiro, e seus cacos irregulares caindo tela abaixo, no vazio.) Recordei o que minha informante noturna dissera sobre o efeito imediato dessa publicação: sobre não haver facs suficientes para atenuá-lo. Ela previa um golpe mortal. De Castro não poderia continuar no cargo, assim como alguns outros de seu alto escalão. E, sem mandato, ele acabaria na cadeia. Ela foi genial.

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